Introvertendo 118 – Hora de Dormir

Dificuldades de sono são frequentes em muitos autistas, inclusive na vida adulta. Mas o contrário também pode ocorrer. Por isso, nossos podcasters contam suas experiências de como era o sono na infância e hoje, e histórias de sono em relação a outros parentes autistas. Participam: Paulo Alarcón, Tiago Abreu e Yara Delgado. Arte: Vin Lima.

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Transcrição do episódio

Tiago: São duas horas da manhã. Você vira de um lado para o outro e o sono não vem. Quando finalmente dorme, parece que o despertador tocou em seguida. É de manhã, hora de levantar. Se você tem problemas com sono, chegou a sua vez. Está no ar mais um episódio do Introvertendo.

Introdução

Tiago: Um olá pra você que escuta o podcast Introvertendo, que é o principal podcast sobre autismo do Brasil e que às vezes tem pessoas que dormem demais e dormem de menos. Meu nome é Tiago Abreu, sou jornalista, diagnosticado com autismo em 2015 e eu posso dizer que eu sou um pouco agraciado. Eu sempre tive um sono razoável mas eu passei por uns maus bocados durante um certo período.

Yara: Olá, aqui é Yara Delgado de Sorocaba, autista, mãe de autista, diagnosticada também aos 35 anos de idade, e sono é complicado. Olha, posso dizer que eu cresci dormindo razoavelmente bem. Agora, depois de adulta, a coisa mudou de cabeça para baixo.

Paulo: Olá, eu sou Paulo Alarcón, diagnosticado em 2018, e eu não tenho problema para dormir, mas tenho problema por dormir.

Tiago: como o título do nosso episódio presume, hoje nós vamos falar sobre sono, sobre descanso e também distúrbios do sono, que são muito comuns em autistas. Vale lembrar que o Introvertendo é uma produção capitaneada por vários autistas e que conta com assinatura da Superplayer & Co.

Bloco geral de discussão

Tiago: Distúrbios do sono são muito comuns em casos de transtornos do neurodesenvolvimento, como é o caso do autismo. Não necessariamente todos os autistas têm problemas pra dormir, mas uma parte significativa possui. E ao falar sobre desenvolvimento, a infância é um ponto fundamental de ser discutido. Então neste episódio nós vamos voltar ao nosso passado e relembrar algumas coisas que ocorriam naquele período e o que definem o nosso sono hoje. Primeiro queria saber de vocês, na infância, vocês tinham esse sono desregulado?

Yara: Da minha infância, não tenho muito como pegar informações, a minha mãe infelizmente é falecida já, minha avó também, mas da fase que eu já tinha uma consciência, foi até que tranquilo. Eu fui uma criança que conseguiu crescer numa determinada disciplina. A minha dificuldade começou ali por volta da puberdade, quando eu tinha muito mais dificuldade pra conseguir adormecer e era como se ao acordar eu não tivesse descansado, muitas vezes. Então, eu passei e passo ainda por muitas dificuldades em relação a essa questão do sono. Hoje, atualmente, tenho tanto dificuldade para adormecer, dependendo da fase que eu tô vivendo, quanto essa questão de quando eu acordo muitas vezes parece que nem sequer eu dormi.

Paulo: Na minha infância eu não tive problema com sono desregulado, na verdade eu era bem disciplinado em horário pra dormir, horário pra acordar. E durante o dia também eu não tinha o costume de dormir. Era das 9 da noite às 7 da manhã, e eu dormia. Sempre estive nesse padrão até mais ou menos a adolescência que eu tive momentos em que a desregulação do sono era no sentido oposto de ficar com sono o tempo todo.

Yara: Ou seja, a gente passou a infância aparentemente com o sono um pouco mais regulado. O Pedro, que é meu filho mais velho e é diagnosticado com autismo também, a fase de bebê dele foi absolutamente normal em relação ao sono, ele nunca nenhum problema, nem eu, nem um sintoma assim de sonambulismo, de sono muito agitado a noite. O Luan, que está com dez meses, demonstra uma sensibilidade a claridade. Eu fico um pouco atenta a isso, mas fora isso tudo bem também, demorou um pouquinho pra entrar no ritmo, mas nada de diferente também. Então aparentemente essa fase de bebê aqui na nossa família foi OK e por incrível que pareça quem tem o sono muito, muito agitado aqui em casa é o meu marido que também é autista. E ele tem o sono bastante agitado, dependendo do dia ele precisa de uma certa claridade no quarto senão ele tem pesadelos, é quase certo que se não tiver o quarto iluminado, de alguma forma, ele vai ter pesadelos.

Tiago: Eu também sou um caso em que há essa normalidade a ser observada. Mas um porém, minha mãe diz que quando eu era recém-nascido eu fui aquela criança que trocou o dia pela noite, tinha dias inclusive que meu pai ficava reclamando durante a noite falando que ele queria dormir e eu não deixava ninguém dormir, porque era essa troca de horários, mas depois as coisas foram se estabelecendo. Uma das características do autismo é a questão de rigidez e essa rigidez pode se manifestar de diferentes formas: na rotina, na forma como você entende as questões cotidianas, mas na questão da rotina, o meu sono estava diretamente relacionado. Por exemplo, quando eu tinha ali cerca de cinco, seis anos, eu lembro muito bem que os meus pais gostavam de assistir o programa do Ratinho, quando tava naquele auge de 2000, 2001 e eu lembro muito bem que quando começava o programa, eu era proibido de assistir, porque afinal não é recomendado para idade de uma criança de cinco anos e eu ia deitar. Deitava, acordava todos os dias às sete horas da manhã e assistia meus desenhos, fazia tarefa, preparava para ir pra escola. E era sempre regrado dessa forma. Era tão regrado que eu lembro que até mais ou menos uns seis, sete anos, eu não sabia o conceito de amanhecer. Eu deitava à noite, quando eu levantava era dia e eu não sabia como é que era essa transição. No dia que eu vi ao vivo a questão do amanhecer foi um negócio muito louco pra mim. E eu lembro disso até hoje, porque foi numa viagem, a gente tava saindo no final da madrugada da Bahia pra voltar pra Minas, que era onde nós morávamos. Então, ao longo da vida, a minha questão de sono foi sempre muito bem estabilizada. Depois eu vou contar como é que foi realmente o momento que eu tive problema com o sono.

Paulo: Eu tive bastante esse problema de não ver o nascer do sol porque também era ultra regrado o meu horário de dormir e acordar e quando eu fui ver era justamente nessas épocas em que tinha viagens. Na minha família, os meus avós moravam longe, né? Então, eu tava no litoral de São Paulo, meus avós maternos na região serrana do Rio e meus avós paternos no Chile. Então sempre que a gente ia fazer a visita que é a mais comum pro nosso avós maternos, era saindo três, quatro horas da manhã pra chegar lá na hora do almoço. A mesma coisa nas vezes que a gente foi visitar os avós paternos, passava alguns dias aí de viagem de ônibus. Eu sou extremamente hipossensível. Não interessa quanta luz tenha, quanto ruído tenha desde que seja algo que eu consiga de alguma forma me acostumar, né? Mas tempestade, cachorro latindo, são coisas que eu estou acostumado, já cheguei a dormir de pé em ônibus quando eu ia pro trabalho de manhã e me segurava ali na barra do ônibus e dormia.

Yara: Isso é interessante porque eu sou hipersensível e meu marido é hipossensível. Pra mim o barulho incomoda tremendamente. Ele, se tiver dormindo, a casa pode estar caindo que ele não acorda. Ele gosta de claridade, eu gosto de dormir no escuro. Eu tenho que me adaptar, porque coitado, eu não vou deixar ele passando pesadelo todas as noites, né? Então é uma adaptação que eu tive que fazer com muita paciência e às vezes assim dá uma certa irritação, mas são coisas que a gente tem que se adaptar. É uma vida conjunta e tem que se adaptar.

Tiago: Olhando esse contexto familiar e de parentes, a gente já falou algumas vezes aqui no Introvertendo que existe aquela ideia do fenótipo ampliado do autismo, que você vê características do autismo em várias pessoas, mas não necessariamente essas características fecham o diagnóstico. Então, eu tenho vários parentes, principalmente do lado materno, que tem muitos problemas graves de sono. Meu avô, por exemplo, tinha muita dificuldade pra dormir. Eu tenho um tio que inclusive os traços de autismo nele são muito fortes, eu tenho sempre a suspeita de que ele é autista, ele tem um sono péssimo, muito péssimo mesmo. E nesse contexto de distúrbios do sono, principalmente às vezes na vida adulta, a gente passa por alguns tratamentos que envolvem certas medicações. Em 2019 foi publicada uma metanálise falando exatamente sobre medicamentos para distúrbio do sono em transtornos do neurodesenvolvimento como autismo. Entre os produtos estudados para avaliar a evidência de que funcionam ou não, foram abordados melatonina, eszopiclona e zolpidem. Dentre esses produtos, a melatonina foi que apresentou evidência de melhora do sono. E aí eu queria saber de vocês: vocês fizeram algum tratamento nesse sentido, tomaram alguma dessas medicações em algum momento da vida?

Yara: Eu, particularmente não, desses medicamentos, não. Eu nunca tomei um medicamento especificamente para distúrbio do sono, mas o medicamento que eu tomo pra conter as comorbidades do autismo bem controladas automaticamente já ajuda nessa questão do sono, porque uma das coisas que me atrapalhava tremendamente na hora de dormir é que eu tinha uma impressão assim de como se o dia passasse diante dos meus olhos numa velocidade de metrô, sabe? Era como se eu visse reflexos do dia passando na minha mente naquela velocidade que o metrô passa e aquilo me chamava muita atenção. Quando eu me deito é quase certo que eu vou ouvir o meu ouvido fazendo aquele apito que muita gente que tem autismo também tem essa sensibilidade. E às vezes eu chego a ouvir três sons diferentes ao mesmo tempo no meu ouvido. Isso me deixa muito irritada. Eu acabava ficando agitada na hora de dormir e irritada. Aí você pega uma situação em que de repente veio justamente uma crise e dentro do autismo é comum você ficar com aquele pensamento, eu chamo de pensamento circular. Antes dele terminar pra você tirar suas conclusões, ele começa tudo de novo e fica uma coisa circular. Ao invés de tirar uma conclusão em um minuto, às vezes você pode demorar dez minutos pra chegar numa conclusão, porque é como se o seu processamento reiniciasse. Imagina, isso é o inferno na Terra, né? Você ficar assim, às vezes sofrendo com o ouvido, te incomodando e no meio de uma crise, os pensamentos não estão fluindo, fica aquela espécie de ecolalia e isso me deixava muito, muito agitada. Eu tomo um medicamento específico que dá muito certo pra mim na questão de controlar esses pensamentos que ficam repetindo e eu fico mais calma, então eu consigo administrar melhor por conta disso. Mas eu acordo mais ou menos umas cinco, seis vezes, todas as noites. Se tiver frio, ainda junta uma preocupação materna de: “será que as crianças estão cobertas?” Então são muitos desafios da minha parte nessa questão da qualidade do sono. E pra pegar no sono o que eu uso é ler, a leitura me ajuda bastante e eu leio no Kindle, ele é apropriado para a leitura não atrapalhar pra pegar no sono. 

Paulo: Bom, sobre o uso da medicação, quando eu comecei o meu tratamento farmacológico para o autismo, num primeiro momento foram a risperidona e sertralina e isso derrubou eu. Eu chegava a situação de eu ir dormir e só de fato acordar e só me sentir realmente acordado depois do meio-dia. Antes disso eu estava imprestável, mesmo acordando no horário normal que eu deveria acordar. Eu cheguei no ponto em que no meio de reunião eu dormia, eu tenho problema também de sentar no carro e dormir em qualquer lugar que esteja que eu esteja minimamente confortável eu durmo. E aí por causa disso eu passei a tomar uma medicação especificamente para me manter acordado. Pra eu não ser tão afetado por esse sono repentino e conseguir me manter desperto a maior parte do dia. E hoje eu estou numa situação em que está bem equilibrado. Quando está lá pelas 9 da noite já começa a sentir o sono mesmo e daí até no máximo 11 da noite eu tô dormindo feito pedra e aí consigo acordar também no horário em que eu preciso tocar as minhas atividades sem nenhum problema a mais.

Tiago: Até o final do ensino médio, eu tinha um sono razoável, sempre tive uma rotina de deitar cedo, às vezes quando dá dez da noite, dez e meia eu já estou deitado, mas durante a graduação, tudo se desregulou. Os compromissos aumentaram porque eu trabalhava e estudava ao mesmo tempo e eu vi a minha ansiedade aumentar. Durante esse período também tive um depressão e eu me consultava com uma psiquiatra da UFG, eu relatava frequentemente essa dificuldade pra cair no sono e acordava um pouco na madrugada e tinha processo de insônia. Ela testou várias classes de medicamentos comigo, ao longo de um ano e meio, dois anos com o objetivo principal da depressão, mas também melhorar o sono. Alguns antidepressivos ajudam mais nesse processo do sono e também abrem o apetite. O melhor remédio em termos de sono pra mim foi a mirtazapina, que pra algumas pessoas elas viram praticamente zumbis, mas pra mim funcionava muito bem, eu tinha um pouco de maior dificuldade pra acordar, mas nada que acordar uns dez minutos antes do meu horário normal não resolvesse. Foi muito bom pra mim, eu consegui descansar melhor, mas eu acabei engordando. Por isso eu mudei várias vezes as classes de medicamentos. Numa dessas ocasiões, ela me receitou zolpidem e tomar esse medicamento foi praticamente beber água, não fazia efeito algum, eu não percebi nenhuma melhora, nenhuma piora, meu sono continuou o mesmo e aí depois de um tempo ela até tentou passar um remédio natural, que também foi como beber água, fazia efeito nenhum. Eu tenho ouvido muitos relatos sobre melatonina, falando que funciona bem. E pra finalizar, eu queria que vocês dessem algumas dicas pra quem tá ouvindo a gente e que talvez até nesse processo de pandemia em que as rotinas mudaram, a vida tá diferente, como ajustar o sono, como ter um sono melhor?

Paulo: Acredito que primeiro começar a se desligar de todos os estímulos fortes, de notícias, de rede sociais, todas as telas até um período aí de pelo menos uma hora antes do horário que você deseja dormir. E começar a ler, acredito que a leitura funciona bem como uma uma forma de relaxar e de desviar seu foco para algo que não incomode e tentar também manter um um padrão de estabelecer um horário de dormir no horário de acordar que você tem que seguir o máximo esse esses horários que eventualmente o seu corpo também vai acostumar. Fora que muitas vezes aí é um problema que eu vejo com a com a minha esposa, a Bela, é que ela tem situações que ela cede ao sono no meio da tarde, por exemplo, ela tem mais dificuldade para dormir à noite. Então, ter essa disciplina de horário de dormir, horário de acordar e tentar se manter acordado é uma forma boa de regular o sono. E se dessa forma também não estiver resolvendo, existem médicos especializados no sono, alguns psiquiatras, mas existem outros especializados na saúde do sono que podem ajudar bastante.

Yara: É, no meu caso, minha rotina da parte de sono é um pouco mais complexa, porque como eu tenho filhos, eles gostam, às vezes, que eu fico com eles, tal, normalmente, eu acabo fazendo assim, eu deito fico com o Luiz, dou uma atenção pra ele e tal, rapidinho, ele dorme muito rápido. Luiz é muito engraçado, se ele quiser dormir, ele vai dormir em cinco minutos e vai dormir super bem e depois vai acordar no outro dia e tá ótimo. Eu não, se eu quiser dormir, parece que tem que ter toda uma preparação mas fora isso tem as crianças, então eu fico um pouco com o Luiz, nisso o meu bebê já tá dormindo normalmente. Aí depois eu vou ficar com as crianças, aí eu deixo as crianças, aí sim eu vou ter o meu momento, vou deitar na cama, vou ficar lendo com uma luz ali bem regulada para não me incomodar e vou ler até pegar no sono, basicamente. Eu tenho um edredom, ele tem que ser especificamente de algodão, não pode ser nem muito quente, nem muito geladinho. Eu tenho o meu edredom, ninguém mexe nele. Eu sou até ciumenta. É meu melhor amigo. E assim, eu não consigo dormir com determinadas roupas, é engraçado. Eu não gosto de estar com roupa pesada na hora de dormir, eu tenho que sentir o edredom, a dificuldade vem mesmo é às vezes no outro dia quando a gente percebe que você dormiu, mas parece que ainda tá essa parte eu acho que é mais desafiante para mim, a parte do acordar, eu não me incomodo se eu tiver que dormir às cinco horas da manhã de tanta coisa que tinha pra fazer, tudo tem, mas no outro dia acordar cansada, aí é muito ruim, né?

Tiago: Com certeza, durante essa pandemia as pessoas têm desenvolvido principalmente a dificuldade de conseguir dormir pela ausência de exercícios físicos. Porque existem várias formas de você gastar energia, uma delas é fazendo caminhada, fazendo academia, tem gente que vai transar, e várias dessas atividades não são possíveis. Então, se eu puder dar algumas recomendações, eu diria que vocês estão corretíssimos em dizer para evitar eletrônicos, eu, por exemplo, às vezes já desligo o computador umas sete horas da noite. A segunda coisa é evitar bastante outras luminosidades, então, por exemplo, eu uso cortina no meu quarto, isso me ajudou muito ao sono e, claro, o acompanhamento terapêutico nem que seja online é muitas vezes importante. Se você tem histórias de dificuldade de sono pra contar pra gente, escreva que nós leremos na nossa sessão de leitura de emails. Tenha um bom sono da próxima vez que você for dormir.

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