Introvertendo 125 – Autistas em Cidades de Interior

Seguindo os passos do episódio anterior, decidimos abordar como é a vida de autistas em pequenas cidades pelo interior do Brasil. Neste episódio, Paulo Alarcón e Tiago Abreu falam sobre as diferenças de municípios como Caçapava (SP) e Paratinga (BA), e trazem também depoimentos de dois autistas: Suelem Lamim, que mora no interior de Minas Gerais, e Rafael Henrique, que reside no interior de Pernambuco. Arte: Vin Lima.

Links e informações úteis

Para nos enviar sugestões de temas, críticas, mensagens em geral, utilize o email ouvinte@introvertendo.com.br, ou a seção de comentários deste post. Se você é de alguma organização, ou pesquisador, e deseja ter o Introvertendo ou nossos membros como tema de algum material, palestra ou na cobertura de eventos, utilize o email contato@introvertendo.com.br.

Apoie o Introvertendo no PicPay ou no Padrim: Agradecemos aos nossos patrões: Caio Sabadin, Francisco Paiva Junior, Gerson Souza, Luanda Queiroz, Marcelo Venturi, Priscila Preard Andrade Maciel e Vanessa Maciel Zeitouni.

Acompanhe-nos nas plataformas: O Introvertendo está nas seguintes plataformas: Spotify | Apple Podcasts | DeezerCastBox | Google Podcasts e outras. Siga o nosso perfil no Spotify e acompanhe as nossas playlists com episódios de podcasts.

Notícias, artigos e materiais citados e relacionados a este episódio:

*

Transcrição do episódio

Tiago: Um olá pra você que escuta o Introvertendo, que é o principal podcast sobre autismo do Brasil e que sempre reforça que autistas estão em todos os lugares. Meu nome é Tiago Abreu, sou jornalista, host deste podcast, diagnosticado com autismo em 2015 e apesar de não ser alguém do interior, tenho profundas ligações com diferentes cidades pequenas do país.

Paulo: E aí pessoal, sou o Paulo Alarcón, falando de Caçapava, São Paulo, diagnosticado em 2018 e se você já deixou um rastro de lama por onde passou, você vai se identificar muito nesse episódio.

Tiago: Hoje a discussão é um pouco uma continuação do episódio lançado na semana passada em que nós falamos sobre autistas na cidade grande e desta vez nós vamos discutir como é a vida de autista em cidades pequenas de interior, as diferentes vivências nessas regiões e o contraste com a cidade grande. Vale lembrar que o Introvertendo é um podcast feito por autistas cuja assinatura é da Superplayer & Co.

Bloco geral de discussão

Tiago: Antes da gente partir pra discussão propriamente dita, é importante traçar um recorte do que que nós vamos falar aqui neste episódio. Até porque quando nós gravamos o episódio Autistas na Cidade Grande, nós falamos sobre metrópoles. Aqui a nossa discussão é municípios que tenham cerca de quarenta, trinta, vinte mil habitantes, tem muitos municípios pelo país que tem essa quantidade populacional e falar um pouco como é a vida de autistas nesses lugares considerando também que existem diferenças regionais e a vida de um autista no interior de São Paulo é bem diferente da vida de um autista que mora, por exemplo, do interior do Pará.

Paulo: Sim, realmente. Moro há quatro anos já na cidade de Caçapava, São Paulo. Ela não é uma cidade tão pequena assim, mas ela fica bem ofuscada pelas cidades em volta. É uma cidade que é cortada pela Dutra, com uma presença boa de fábricas como a fábrica da Nestlé. Porém, quando você passa cinco quilômetros de distância da rodovia, vira uma área rural mesmo. Eu moro no limiar entre a área urbana e a área rural, não loteamento cercado por fazendas e chácaras.

Tiago: A vida em cidades de interior pode ser permeada de algumas dificuldades e eu confesso que não teve pauta na história do podcast mais difícil do que essa. Só pra vocês terem uma ideia, eu passei semanas procurando autistas em cidades muito pequenas que pudessem participar desse episódio junto com a gente, mas eu não consegui. No entanto, eu consegui relatos de dois autistas que moram em cidades de interior e que mandaram áudios pra gente. Pelas questões de internet e também de tempo eles não puderam estar aqui participando, mas eles mandaram áudio e eu vou reproduzir então. O nosso primeiro áudio é da Suelem Lamim, que mora no distrito de Angustura no município de Além Paraíba, em Minas Gerais. Vamos rodar o áudio.

Suelem: Meu nome é Suelem, eu moro em Minas Gerais em uma vila chamada Angustura. Eu vivo aqui desde que eu nasci, exceto por um período de seis anos no qual eu fiz faculdade e me mudei pra uma cidade maior. O meu diagnóstico de autismo veio em 2018 aos 27 anos. Eu vejo a tranquilidade como um fator muito positivo para um autista que mora no interior. Aqui é muito silencioso, não há trânsito, não há também circulação de pessoas. Então, muitas vezes as ruas são desertas. Pode acontecer também de eu ser a única cliente do mercado e isso é muito bom. O ritmo é, naturalmente, mais lento, também vejo como positivo, além do contato com a natureza. Eu também penso que a chance de se ter uma sobrecarga sensorial aqui é bem menor do que numa cidade grande, justamente pela falta de tantos estímulos. Eu acho que algumas coisas podem ser bem difíceis para um autista que mora no interior. Eu acho difícil conseguir fazer amigos aqui, por exemplo. Porque não encontro muitas pessoas com gosto parecidos. Então, eu não tenho amigos especificamente na vila onde eu moro, mas tenho muitas amizades pela internet e aqui a conexão nem sempre funciona, nem sempre é boa. Então, eu não consigo manter o contato com esses amigos com a frequência e a qualidade que eu gostaria. Isso pode ser bem frustrante. Não há também muito espaço de socialização e de inclusão pra o autista ou pra outras pessoas com deficiência. Eu faço tratamento com psicóloga e terapeuta ocupacional, mas não aqui onde eu resíduo, e sim na sede do município, que fica uma hora e meia de distância daqui. É um lugar bem agradável e o atendimento é gratuito, mas tem essa questão de ter que pegar um ônibus, passar por todo esse processo, me deslocar daqui. Então, eu diria que isso é negativo.

Tiago: Muito obrigado, Suelem pela mensagem, eu conheci a Suelem por meio do Willian Chimura. Então, Willian, muito obrigado também. E o nosso segundo áudio vem do Rafael Henrique, que tem 18 anos e que mora no município de Carpina, em Pernambuco. Então, vamos rodar o áudio dele também.

Rafael: Olá, pessoal. Meu nome é Rafael Henrique, tenho 18 anos e minha mãe descobriu o meu autismo quando eu tinha um ano e seis meses através de uma neuropediatra, chamada Adélia Henriques. Viemos morar no interior do estado de Pernambuco em Carpina há 13 anos. Os pontos positivos da minha cidade é que é tudo mais tranquilo, os alimentos são mais naturais e muito deliciosos, as lojas, mercados e lojas de guloseimas são mais perto e para todos e há lugares como as praças, para passear, lugares grandes para visitar. E não há muito engarrafamentos, e gosto muito das igrejas que tem umas missas muito maravilhosas e as festas, campanhas e eventos de Carpinas são incríveis e muito boas. Os pontos negativos da minha cidade é que não há muito tratamento para o Transtorno de Espectro Autista e eu não interajo muito com meus amigos da escola, mas eu geralmente converso com eles, mas tenho pouco de dificuldade e as escolas particulares daqui não estão capacitadas e adaptadas com acessibilidade às pessoas com deficiência. Aqui existe um alto índice de violência muito grande. O bairro que eu moro é bastante vulnerável.

Tiago: Muito obrigado, Rafael, pelo áudio e eu queria agradecer algumas pessoas que me ajudaram bastante nesse processo de busca por autistas que moravam em cidades do interior. Então, queria agradecer ao Francisco Paiva Júnior da Revista Autismo, a Gabriela Bandeira do portal Olhares do Autismo, o Alexandre Costa da Casa da Esperança e o psicólogo Victor Eustáquio, todos vocês pelo apoio na hora de caçar fontes e foi realmente difícil, mas essa missão foi cumprida. Eu queria saber de você, Paulo, você nasceu em Caçapava? Porque você falou que mora aí só quatro anos, explica aí um pouco pra gente.

Paulo: Na verdade, eu nasci no estado do Rio de Janeiro, em Petrópolis. Eu morava em uma república na cidade vizinha de São José dos Campos. A gente chegou a conclusão de que as casas e apartamentos lá estavam muito caros e a gente considerou a cidade vizinha porque o deslocamento não ia ser tão pesado e o valor era consideravelmente mais baixo. Moramos numa casa tamanho médio que em São José dos Campos não dava nem o preço de um apartamento de quarenta e oito metros quadrados.

Tiago: Ah, entendo. No meu caso, eu sou completamente urbano (risos). Nasci em São Paulo, morei um tempo na região metropolitana de Belo Horizonte, moro em Goiânia atualmente, às vezes estou em Porto Alegre, mas a minha cota de interior vem por causa das minhas origens. Então, eu nasci em São Paulo, mas a minha mãe e meu pai nasceram no interior da Bahia. Minha mãe nasceu em Paratinga, meu pai nasceu em outro município chamado Serra Dourada. Eles namoraram desde a infância, minha mãe só conheceu a cidade de uma forma geral década de 1990, quando ela tinha ali seus vinte anos e de Paratinga ela foi direto pra Brasília. Imagino que o impacto na vida dela deve ter sido muito grande porque até aos 20 anos de idade, em média, ela só tinha morado no campo. Então, eu sempre cresci nessa dinâmica de uma família que está no plano urbano, mas meus pais sempre tem esse contato então com as cidades interioranas. Quando eu era criança, sempre viajava de BH pro interior da Bahia, pros municípios de Paratinga, Bom Jesus da Lapa, aquela região ali do Vale do São Francisco e eu acabei criando esses laços. Fiquei muitos anos sem visitar lá e em 2016 fiz um retorno e essa reaproximação me levou também a fazer meu TCC, na época quando eu fazia graduação em Jornalismo, em um livro sobre o município de Paratinga, que eu falo bastante sobre sertão, sobre interior e etc. Durante esses 3 anos de pesquisa de livro, eu passava o período de férias em Paratinga, vivendo quase como um membro da população, ficava um mês, um mês e meio na cidade e registrava as coisas em livro, fazia entrevistas, conversava com as pessoas, interagia. Então, de certa forma, eu sou quase um cidadão paratinguense. Então isso também me dá uma certa tranquilidade para poder falar um pouco aqui sobre a experiência de ser autista e estar numa cidade pequena, porque Paratinga tem 30 mil habitantes, mas mais da metade da população mora na zona rural. Então, Paulo, você que mora aí em Caçapava, eu queria que você listasse então quais são os pontos positivos que você enxerga de ser uma pessoa que mora numa cidade de interior dentro da dinâmica do estado de São Paulo.

Paulo: Caçapava é uma cidade muito tranquila. É raro você ver gente tocando som alto na rua, o máximo de trânsito que acontece em Caçapava é a questão da linha do trem que corta a cidade. Quando passa um trem muito grande, ele forma ali um pequeno congestionamento até a passagem do trem, mas fora isso não há trânsito na cidade. O ambiente, no geral, ele tem menos estímulos, como outdoors. A qualidade do ar aqui é excelente. Sempre que, por alguma razão, eu tenho que ir pra São Paulo, eu sofro muito com a poluição. Eu sempre volto com o nariz sangrando.

Tiago: Fazendo um paralelo com Paratinga, imagino que as cidades do interior da Bahia são bem menos urbanas que as cidades do interior de São Paulo. No caso de Paratinga, eu também observo que a tranquilidade é uma vantagem, principalmente na zona rural em que há certas regiões em que as casas são muito distantes de uma das outras, então existem localidades que são cinco casas no máximo, tem um clima familiar nesse sentido, a qualidade do ar também é alguma coisa muito boa. Mesmo sendo uma região da caatinga, onde há uma seca significativa, no período da chuva, principalmente nas áreas onde tem matas, o ar é muito agradável, você sente realmente o ar correr. Diferentemente daquela coisa do ambiente muito urbanizado e seco. Eu moro em Goiânia, Goiânia é uma cidade quente. Tem épocas do ano, por exemplo, agora em agosto e mais fortemente ainda em setembro e outubro, que é muito complicado. A umidade do ar chega a 10%, é clima de deserto mesmo. Eu penso que a questão dos estímulos do ambiente são muito importantes, porque quando você mora numa cidade grande como a gente falou no último episódio, dependendo do ambiente que você tá, são muitas coisas que mexem com você e autistas que tem transtorno do processamento sensorial com certeza devem sofrer em alguns lugares. Em cidades do interior é muito mais difícil você achar pichações, de você realmente ver uma combinação desastrosa de cores em prédios, embora também a gente saiba que alguns lugares no interior não tem nenhuma arquitetura propriamente dita. No caso de Paratinga, há uma certa influência neobarroca com algumas coisas meio art déco, mas mesmo assim tem alguns lugares que não tem muito apelo estético. Então de certa forma acaba sendo menos estímulos porque a cidade é menor.

Paulo: Caçapava tem uma umas características bem interessantes. A área mais afastada do Centro realmente não segue um padrão de arquitetura. Mas é típica casa de roça. No bairro onde eu moro já muda um pouco porque ele é um loteamento, então tem muitas casas um pouco padronizadas, mas são casas de estética agradável. Depois se aproximando um pouco na região central, ali tem o centro histórico da cidade, porque Caçapava é uma cidade antiga, do século XIX.

Tiago: Paratinga também é uma cidade antiga, eu acho que a primeira ocupação lá se não me falhe a memória foi em 1680, é a cidade mais antiga de toda região, de certa forma, depois de Jacobina. No histórico do Brasil, a ocupação começa no litoral e à medida que esse território do Brasil é ameaçado em relação a Portugal começam as doações de sesmarias. E aí algumas pessoas começam a desbravar o interior para poder se apostar desse território do Brasil. Então Paratinga fez parte desse processo aí no final do século XVII. Então Paratinga tem muita influência neobarroca, principalmente nesses prédios mais antigos, um pouco de art déco, que foi o que foi preservado no final do século XIX e início do século XX, mas esse clima interiorano que você falou também se observa bastante lá. E partindo pros pontos negativos, já que a gente fez os nossos elogios, agora é o momento de fazer críticas também. Paulo, queria que você começasse falando quais são os problemas de morar numa cidade do interior sendo autista?

Paulo: O primeiro de todos os problemas é a infraestrutura. Em todos esses quatro anos, só nas últimas três semanas que eu morei numa rua asfaltada. Isso me causou muitos problemas, porque na época da seca é um poeirão que sobe cada vez que passa algum carro. Na época da chuva vira um atoleiro, eu já passei vergonha por sair de casa, ir pra algum lugar e deixar um rastro de barro, já tomei xingo da moça da limpeza da empresa onde eu trabalhava.

Tiago: Mas a cor da terra aí é aquela terra de cor roxa ou de cor mais neutra branca?

Paulo: É aquela terra meio avermelhada.

Tiago: Ah sim, então é a terra tipo roxa, que é um horror. Aqui em Goiânia, por exemplo, que é uma cidade completamente urbana, às vezes você não tá nem andando perto da terra, mas só o fato de você pisar no asfalto, quando você chega em casa, você percebe que tem um monte de poeira vermelha assim. Esse tipo de terra é horrível. E ainda mais quando chove.

Paulo: Sim. A questão de calçadas, pra quem é cadeirante, é impossível de andar. Tem a questão dos ônibus, que são bastante limitados quando você compara com as cidades vizinhas como Taubaté e São José que você tem ônibus no máximo a cada meia hora, e no no domingo aqui é um ônibus cada três horas.

Tiago: Paratinga também tem esses problemas de infraestrutura, aliás, eu falei sobre isso no meu livro. E infraestrutura é uma questão muito carente no país de uma forma geral, quando a gente pensa nas capitais, por exemplo, a gente já tem vários problemas e fica ainda mais fortes no interior. Em Paratinga, em especial, a questão das calçadas é uma coisa intransitável. Você tem calçadas extremamente altas em uma parte, isso no centro. E aí, em seguida, ela abaixa, ela sobe de novo, ela abaixa, ela sobe de novo. Frequentemente quando eu estou pela cidade, eu corto o meu pé e tropeço. Cidades de interior geralmente tem muitos idosos, então é um tipo de infraestrutura da cidade que não valoriza ninguém, não valoriza tanto as pessoas com deficiência, as pessoas andantes que já vão ter dificuldade, e os idosos que certa forma, se a gente pegar uma certa conceituação de deficiência, também estão dentro de uma perspectiva de deficiência. É muito complicado pensar que essas cidades muitas vezes são feitas pra alguém, porque realmente não existe um padrão a ser estabelecido. E quando a gente fala sobre acessibilidade, não é só de um ponto de vista também arquitetônico. Então muitas cidades do interior são mal sinalizadas. Paratinga começou a receber placas de trânsito a partir do ano de 2018 e semáforos também. Então, realmente é um negócio muito complicado. Você falou sobre transportes, Paulo, Paratinga nem tem transporte coletivo. Uma cidade que a parte urbana tem 10 mil pessoas, o que tem é ônibus da prefeitura para poder levar as crianças da zona rural pras escolas da zona urbana e só. Ou às vezes tem ali um um morador que faz um transporte fretado ali, mas no geral não existe transporte coletivo. Uma coisa curiosa que eu queria contar é que nessas viagens que eu fiz pra Paratinga e escrevi o livro, eu conheci uma banda em que todos os integrantes tinham baixa visão. Eles se consideram em certa medida cegos, porque eles enxergam muito pouco. E pra tudo que eles queriam fazer, eles dependem dos parentes, dos irmãos ou de familiares próximos que enxergam. Pra ir pra outros lugares, eles precisam de uma carona, na hora de chegar na zona urbana, eles precisam que alguém segure pela mão deles. E aí eu conversei com uma das integrantes e ela falou pra mim que queria ter essa autonomia de ir pro lugar onde eu quisesse. Ela disse que as pessoas têm uma perspectiva dela de como se ela fosse uma criança, como se ela fosse uma total dependente. A forma como essas cidades são estruturadas é uma forma completa de exclusão para pessoas que tem certas deficiências. Pra nós autistas já parece difícil, pra outras pessoas, por exemplo, que não enxergam, é mais complicado ainda.

Paulo: Sim, realmente. A própria rua também é toda esburacada e a manutenção é mínima. Quando acontece manutenção é só na região central, nas regiões mais afastadas do centro não existe manutenção tanto de calçadas como das vias em si. A sinalização também é mínima, pessoal seguia mesmo pela memória da estrada, porque não tem separação a pista da direita da esquerda.

Tiago: Nossa (risos). É engraçado você ter falado sobre isso, porque eu lembrei que Paratinga tem um sério problema com isso também, porque por ser uma cidade muito antiga tem muitas ruas que elas são em calçadas de pedra. E aquele calçamento de pedra se for bem feito é perfeitamente transitável, ele é até bonito esteticamente, porque demonstra a antiguidade da cidade. Só que lá tem alguns lugares que parece que as pedras foram jogadas e fizeram de qualquer forma. Então você não consegue nem andar com velocidade nos carros, por exemplo, porque senão você destrói o carro inteiro. E como a prefeitura da cidade lida com isso? Primeiro, Paratinga não tem um sistema de esgoto realmente completo, embora tenha até uma empresa. A água que é tomada pela população vem do Rio São Francisco, é uma água que vem suja, inclusive, então as pessoas sempre têm que usar um filtro, alguma coisa pra beber água, porque aquela água não é usável às vezes nem pra fazer comida. Você tem o sistema de esgoto que deveria ser construído para dar conta de toda essa questão, mas não. A prefeitura vai pegar aquela rua, aquela avenida de pedras e vai jogar asfalto em cima, simplesmente. O asfalto não vai durar, obviamente, porque você tá numa região em que a temperatura, o clima é muito pesado, então em menos de um ano, dois anos, tudo fica esburacado e além de tudo você não resolve os problemas de esgoto e saneamento. Então, tinha uma época que a cidade fedia muito, porque o esgoto corria a céu aberto.

Paulo: A água aqui atinge condições mínimas, mas eu dou preferência por usar um filtro também por precaução.

Tiago: Você usa filtro de barro, como muita gente no interior? (risos)

Paulo: Eu tenho o filtro de pia, mais o filtro de barro, aí eu tiro a água do filtro de pia e passo pro filtro de barro.

Tiago: Ah (risos), legal, legal. É muito curioso isso que você tá falando, porque demonstra também que existe uma diferença muito grande entre você morar numa cidade do interior de São Paulo, onde o índice de urbanização é muito maior e de morar em outras regiões. Eu lembro, por exemplo, quando eu fui em Belém, que é uma capital e lá a questão do saneamento era pior do que eu vi em algumas cidades do interior da Bahia, do interior de Minas e do interior de Goiás. Então até na capital a situação lá era complicada, imagina nas cidades do interior do Pará? Uma coisa que eu percebo muito em Paratinga, que é muito complicada em relação às cidades, as grandes capitais, está relacionada aos acessos aos serviços de saúde e educação. Você percebe essa dificuldade também aí?

Paulo: Sim. Aqui em Caçapava toda questão de saúde acaba passando pra cidades vizinhas, ou São José ou Taubaté. Não existe psiquiatra que atende pelo meu plano de saúde, isso porque é um dos principais planos de saúde do Brasil e um dos que tem mais cobertura aqui na região. Não existe psiquiatra que atende no meu plano aqui em Caçapava, também não existe uma instituição de saúde mental específica pra Caçapava. Normalmente o pessoal daqui vai pras duas cidades vizinhas. Num centro espírita daqui na cidade tem uma moça que dá orientação sobre o autismo porque ela trabalha na prefeitura de Taubaté. Agora tô fazendo uma avaliação neuropsicológica, a pedido da psiquiatra que a empresa que eu trabalho pediu um laudo e essa avaliação também tá sendo feita em São José dos Campos, porque em Caçapava não há neuropsicólogo que atende particular ou plano ou pelo SUS, nada. É muito limitado também o hospital aqui da cidade, ele deixa bastante a desejar, tem uma capacidade muito limitada de acesso, de tratamento, tanto em número de leitos como em infraestrutura mesmo. Então, muita gente se vê obrigado a ir pro hospital regional da cidade vizinha, ou mesmo ir pro hospital municipal da cidade vizinha. Em Taubaté existe um Hospital Regional do Vale do Paraíba, que é o nome aqui da região e muita gente vai direto lá, ou vai no Hospital de São José dos Campos.

Tiago: Isso ocorre também em Paratinga, me parece uma política de concentrar as ações de saúde em cidades, mas isso é muito complicado. Por exemplo, no caso de Paratinga, a grande cidade mais próxima é Barreiras, que fica cerca de 300 km de distância. Meu avô, inclusive, morreu em 2001 porque ele sofreu um acidente doméstico, ele não tinha atendimento em Paratinga, foi pra Barreiras, não tinha atendimento e de lá ele foi transferido para Brasília, em outro estado. Esse tempo foi crucial para que ele morresse dias depois. Então realmente o acesso ao serviço de saúde, tanto pública, quanto privada, realmente muito difícil, ainda mais o autismo que demanda um cuidado especializado. E do ponto de vista de educação, já quero entrar, que no caso de Paratinga, quem quer fazer ensino superior tem que sair e ir pra alguma outra cidade. Isso é muito ruim, porque muitas cidades do interior ficam sem seus jovens, porque eles terminam o ensino médio e aí eles ficam sem perspectiva do que eles vão fazer, porque eles não conseguem emprego, ou se eles querem estudar, eles tem que ir pra fora ou fazer EAD. Então a gente perde muita gente e essas pessoas vão, geralmente, pras grandes cidades, ou trabalham em subempregos ou eles ficam estudando, mantendo essa distância pra depois de muito tempo voltar.

Paulo: A situação da educação aqui é menos pior, porque aqui tem uma escola do SESI, né, por conta das indústrias, uma ETEC do estado de São Paulo. Existe até uma universidade privada que atende aqui alguns polos EAD, mas o grosso das universidades ficam nas vizinhanças. Como a universidade de Taubaté ou em São José que tem o ITA tem a Unifesp, tem a Unesp, tem outras universidades privadas como a UNIP Anhanguera e a Anhembi Morumbi. Mas assim, pelo menos é possível você viver em Caçapava e fazer faculdade na cidades adjacentes.

Tiago: Ah, sim, menos pior do que em algumas outras regiões do país, de certa forma. Em Paratinga, você tem uma quantidade limitada de cursos que você tem na região já. E você sempre tem que viajar ou pra Bom Jesus da Lapa, ou pra Barreiras, ou pra Guanambi, que é mais distante, para poder fazer alguma atividade. Agora, tem um ponto que eu não sei se ocorre aí com você em Caçapava, porque Caçapava parece ser mais urbano, mas quando eu ficava em Paratinga, uma coisa que me incomodava muito é que, primeiro, a minha família é bastante conhecida na cidade, tem muita gente, tanto na zona rural na zona urbana. Eu tenho um primo que foi presidente da câmara da cidade, tem uma carreira política lá dentro. Então, toda vez que você está lá, parece que você tem que interagir com todo mundo. No início eu era desconhecido, ninguém me conhecia, então no máximo alguma pessoa cumprimentava que eu nem conhecia e dava um olá. E isso era bem chato porque as pessoas são muito emocionais, se você não cumprimentar elas, elas acham que você se acha, enfim, essas coisas de interior. E todo mundo conhece todo mundo. Então, toda vez que eu interagia com as outras pessoas para fazer entrevistas e etc, o pessoal perguntava assim: “de que família você é?”. Então, eu tinha que apresentar o currículo. Eu falava assim: “olha, eu sou neto de sujeito tal”. E falavam assim: “ah, eu era muito amigo do seu avô, seu avô era uma pessoa honrada, era uma pessoa isso e aquilo”. É algo muito cansativo das interações sociais. Todo mundo conhece todo mundo, pras pessoas terem fofoca sobre você é muito fácil, é muito difícil você passar despercebido.

Paulo: É, aqui também tem esse problema. Mas isso gerou algumas situações bem engraçadas. Porque eu e a Bela não temos família aqui, a gente simplesmente veio parar aqui de paraquedas. As pessoas vem perguntar se a gente conhece fulano, enfim, pessoas conhecidas aqui da cidade, a gente não conhecia. Perguntava de quem que a gente era parente também, a gente não tem parente aqui. A galera se conhece, já reconhece a gente nas ruas, sabe? Particularmente eu não reconheço ninguém, porque eu tenho um sério problema para reconhecer pessoas, a gente já é razoavelmente conhecido aqui na cidade, na região. No bairro que a gente mora no lado da cidade tem infraestrutura limitada de ônibus e a gente conhece Uber, e eu reconheço pelo carro.

Tiago: Nossa, mas a cidade que você mora tem Uber? Já tô achando super avançado! Em Paratinga, não tem Uber, não tem iFood, tem nada disso (risos).

Paulo: Oficialmente não existe Uber, mas o que acontece: em São José dos Campos e Taubaté existe, então a galera daqui de Caçapava se inscreve em uma das duas cidades e opera por aqui.

Tiago: Ah, interessantíssimo, nossa, legal.

Paulo: E aí, aqui até pela limitação de ônibus e por ser uma cidade relativamente extensa, que de ponta a ponta deve ter aí uns trinta quilômetros, tem bastante demanda pro Uber.

Tiago: Realmente o tamanho é grande, mas tem um ponto que você quer enfatizar aí de ponto negativo que eu não sei se eu concordo muito. Qual que é essa questão aí? (risos)

Paulo: Ah, isso é uma coisa que na verdade veio pra mim hoje numa discussão que eu ouvi na internet que é a questão dos sons de animais de roça. Sei que tem bastante gente que se incomoda, por exemplo, com galinhas.

Tiago: Ah, a galinha realmente é um ponto, mas nossa, eu amo sons da natureza, me relaxam (risos).

Paulo: Ah, eu também gosto bastante, mas tem coisas que que podem irritar muita gente, como um galo cantando quatro horas da manhã ou vacas mugindo. Aqui na região, por ter muita chácara, muita fazenda, é comum as pessoas abandonarem cavalos velhos à própria sorte. Eu acho isso horrível, mas infelizmente acontece. E esses cavalos vem vagar por aqui pela região, pelo bairro. E ficam pastando nos terrenos sem casa, nos terrenos baldios. Com frequência, algum estaciona aqui na na frente do portão de casa três horas da manhã e os cachorros ficaram latindo.

Tiago: É, aí realmente é bastante complicado. Bom, eu acho que a nossa discussão foi bastante completa, muita coisa foi explorada, talvez quem esteja nos ouvindo tem histórias, então escreva pra gente, dê o seu depoimento, principalmente se você mora numa cidade pequena, que a gente comenta aqui na nossa sessão de leituras de emails. Um abraço, pessoal.

Site amigo do surdo - Acessível em Libras - Hand Talk
Equipe Introvertendo Escrito por: