Introvertendo 119 – Hipersensibilidade e Hipossensibilidade

Autistas reagem de formas distintas aos estímulos do ambiente e, por isso, decidimos abordar a sensibilidade do ponto de vista de hiper e hipossensibilidade: quais são os fundamentos por trás dessa ideia, características que carregamos por toda a vida e como fazemos para burlar comportamentos que nos incomodam ou prejudicam. Participam: Michael Ulian, Tiago Abreu e Willian Chimura. Arte: Vin Lima.

Links e informações úteis

Para nos enviar sugestões de temas, críticas, mensagens em geral, utilize o email ouvinte@introvertendo.com.br, ou a seção de comentários deste post. Se você é de alguma organização, ou pesquisador, e deseja ter o Introvertendo ou nossos membros como tema de algum material, palestra ou na cobertura de eventos, utilize o email contato@introvertendo.com.br.

Apoie o Introvertendo no PicPay ou no Padrim: Agradecemos aos nossos patrões: Caio Sabadin, Francisco Paiva Junior, Gerson Souza, Luanda Queiroz, Marcelo Venturi, Priscila Preard Andrade Maciel e Vanessa Maciel Zeitouni.

Acompanhe-nos nas plataformas: O Introvertendo está nas seguintes plataformas: Apple PodcastsSpotify | DeezerCastBox | Google Podcasts e outras. Siga o nosso perfil no Spotify e acompanhe as nossas playlists com episódios de podcasts.

*

Transcrição do episódio

Tiago: Um olá pra você que escuta o podcast Introvertendo, que é o principal podcast sobre autismo do Brasil e que te provoca diferentes sensações. Meu nome é Tiago Abreu, sou jornalista, diagnosticado com autismo em 2015 e eu conheço autistas que passam mal só de ver prédios mal construídos.

Michael: (Risos) Alô, Marcos!

Willian: Eu sou o Willian Chimura, eu sou diagnosticado com autismo, faço mestrado em Informática na Educação, também pesquiso autismo, tecnologia e educação, e desde criança sou fascinado por interfaces digitais.

Michael: Olá, eu sou o Michael, o Gaivota, autista real oficial desde os 14 anos e todo episódio pra mim é uma dor de cabeça nova, literalmente, porque eu não posso ouvir som agudo. E minha voz tem um tom bem agudo, então… é.

Tiago: Já gravamos um episódio sobre sensibilidade sensorial, mas ele era bem antigo, de 2018. E dessa vez decidimos falar sobre esse fenômeno também sobre o ponto de vista da hipossensibilidade. Esperamos que esta discussão seja completa. Vale lembrar que o Introvertendo é um podcast feito por autistas, cuja produção é da Superplayer & Co.

Bloco geral de discussão

Willian: Quando nós falamos sobre autismo, a gente, geralmente, fala sobre a perspectiva do DSM-5, que é um dos manuais mais atualizados que fornece as diretrizes/critérios de diagnóstico e por consequência também as características que são esperadas entre todas as pessoas que são diagnosticadas com autismo. Dentre essas características, você vê principalmente dois domínios que são atípicos, ou claro, prejudicados também (dependendo de como você vai interpretar isso e é claro, dependendo também da severidade de como o transtorno se manifesta no indivíduo em questão). O primeiro domínio de prejuízos tem a ver com a questão social e emocional, de como a gente se comunica com as pessoas: relacionamentos, o fazer recíproco, a questão de entender expressões faciais e tal, já o segundo domínio de prejuízos tem a ver com comportamentos repetitivos, interesses de atividades bem restritas, como a questão do hiperfoco, o autista se interessar apenas por aquilo que é do interesse e gostar de manter as suas rotinas e tudo mais. Porém, apesar da gente não falar tanto sobre isso, quando a gente tá falando de uma maneira superficial desses domínios, como eu acabei de falar agora, nesse segundo domingo de prejuízos, o último item do critério de diagnóstico no DSM-5 é a questão hiper ou hipossensibilidade sensorial. Quem nunca viu a clássica cena de uma pessoa com autismo em um ambiente com muitas pessoas, muito barulho? Até mesmo a própria abertura aqui do podcast Introvertendo faz referência a isso, aquela cena que a pessoa com está sobrecarregada e ela só quer sair daquele lugar. Então, isso é uma característica comum, é sim uma dificuldade comum que as pessoas com autismo enfrentam, mas ela nem de perto se resume em apenas dizer que pessoas com autismo gostam de evitar lugares barulhentos ou muito movimentados. Na verdade, a questão sensorial envolve diversos aspectos por pensar como, por exemplo, dor, temperatura, sons específicos como o Michael falou, texturas, cheiros, toques, enfim, diversos aspectos que isso pode ser manifestado de uma forma atípica entre as pessoas com autismo.

Tiago: Eu conheço vocês dois pessoalmente em contextos diferentes e uma coisa que eu percebo quando eu penso em hiper e hipossensibilidade, é que vocês têm uma dificuldade de reconhecer, por exemplo, quando vocês estão com fome. Queria que vocês falassem um pouco sobre essas formas de manifestação de hipersensibilidade e hipossensibilidade.

Michael: Isso eu vejo mais no sentido de estar relacionado com a ansiedade. Eu entendi o ponto do Tiago, eu não sentir fome, aí realmente… nesses momentos está relacionado com ansiedade nesse sentido de que ela que determina isso, mas como eu estou em episódios ansiosos, literalmente ou tô com medo por comer ou eu tô fazendo a mesma coisa por horas seguidas sem perceber que eu tô as vezes praticamente o dia inteiro sem comer, porque esses momentos cortam totalmente a minha percepção de fome. E ao mesmo tempo, quando eu vou comer nesse episódio de ansiedade eu não tenho a sensação de saciedade completamente. E daí eu acho que dá pra amarrar isso no sentido de que acho engraçado que a questão da sensibilidade ser extremamente dependente e ao mesmo tempo completamente independente da minha capacidade sensorial, que pra praticamente todos os sentidos geralmente é muito baixa. Eu tenho uma visão ruim, tenho uma audição ruim, eu tenho olfato ruim, eu tenho um paladar péssimo e por algum motivo eu tenho um tato extremamente sensível. Porque o que acontece: minha audição é muito ruim, eu tenho muita dificuldade de compreender o que as pessoas estão falando, porém quando se trata de sensibilidade, ela atua em dois extremos. Com sons muito graves é nada, não tem efeito nenhum. E pra sons muito agudos já são mais do que se sente pra me dar dor de cabeça, qualquer som assim, por mais baixo que seja, se ele tá num tom agudo, é algo extremamente irritante pra mim. Eu não tô exagerando, literalmente um som baixinho, que nem o clique de um relógio, se ele tiver agudo, já é o bastante pra dar dor de cabeça. Mesma coisa que o olfato. Pra maior parte dos cheiros é praticamente ineficiente, tanto é que eu tenho muita dificuldade de perceber se tiver alguma coisa que tá cheirando ruim ou não, porém determinados cheiros relacionados às coisas apodrecendo ou cheiros que tecnicamente seriam bons como perfumes nas coisas, eu realmente não sei descrever o porquê mas esse cheiro eu tenho uma reação quase alérgica. De novo, minha visão é ruim, eu tenho dois graus de miopia, não é muito, porém eu tenho uma dificuldade enorme pra fixar e focar minha visão. Simplesmente é difícil de ver, no geral. Tenho vários episódios que eu tenho dificuldade de ver mesmo abaixo ou acima do meu grau com óculos. Tem hora que meus olhos falam: “Não gostei dessa luz, foda-se, não vou funcionar”. E por outro lado, eu tenho uma sensibilidade à luz natural, que as vezes é simplesmente absurda. Às vezes um sol na manhã que tem um pouquinho de nuvem, eu não vou conseguir deixar o olho aberto. Na questão tátil, sou completamente sensível. Eu tenho sensibilidade a calor, eu tenho sensibilidade a frio, é mais problemático nas mãos os dois sentidos. Calor eu ainda consigo lidar bem relacionado ao corpo inteiro, contando que não seja calor úmido. Porque daí por mais que eu não esteja sentindo calor, meu corpo reage forma diferente e exagerada. Literalmente, se eu tô num lugar que tá fazendo perto de 40 graus e com uma unidade muito alta, eu vou ter que ficar trocando de camisa a cada duas ou três horas, porque a camisa vai literalmente encharcar, apesar de que o ambiente pra mim não seja extremamente agressivo no meu corpo. Como eu falei, no geral, principalmente voltado ao tato da mão, é uma sensibilidade enorme. Minha mão se machuca muito fácil também nesse sentido, então, por bastante tempo, até agora eu penso que provavelmente a sensibilidade está ligada talvez a uma pele relativamente fina. Eu tenho uma capacidade motora muito baixa, então essa sensibilidade acaba agravando demais isso porque qualquer coisa, qualquer machucado ou se está muito frio, qualquer coisa que afeta o meu tato, vai acabar piorando minha coordenação motora junto com isso. Algo que me irrita bastante, às vezes que eu falo: “Nossa, amanhã eu vou desenhar pra caramba” e faz frio. Eu não vou desenhar mais porque eu simplesmente não consigo ter coordenação motora suficiente porque tá muito frio e a minha mão não responde o suficiente.

Willian: Essa questão da fome, realmente eu tenho muitas dificuldades em sentir fome, principalmente quando eu estou hiperfocado em alguma atividade, muito engajado em alguma atividade e eu realmente acredito que possa sim ter algo a ver com autismo, apesar de que não é um um exemplo clássico que é listado ali no DSM. Porém a gente sabe que os exemplos que o DSM traz não são os únicos exemplos possíveis. Existem também outras características que podem estar associadas com o ato de comer quando se trata de pessoas com autismo, como por exemplo, algumas texturas que podem ser muito desagradáveis, que você vê uma questão de uma seletividade alimentar mesmo assim e em casos extremos muito restrita. Então pode ser que em alguns casos mais extremos elas queiram comer apenas algo de uma cor específica. Por exemplo, pode ser que as pessoas com autismo não gostem de comer nada que seja úmido, molhado, isso pode ser realmente uma grande dificuldade. Quando a gente pensa nisso, muitas das comidas do nosso dia a dia tem água. Então, por exemplo, o arroz mesmo, a gente cozinha ele. E honestamente eu tenho sim uma grande preferência por alimentos secos e principalmente alimentos que de uma certa maneira eu consigo comer de tal forma a não deixar os meus lábios ou as minhas mãos de uma certa forma lambuzados, digamos assim, porque realmente é uma sensação muito desagradável. Então eu prefiro alimentos muito práticos. E tudo isso tem a ver com essa questão sensorial um pouco diferente das pessoas com autismo que deixa esse ritual de comer um pouco mais complicado.

Tiago: É muito interessante o quanto que certas características do autismo, como a questão da hiper e hipossensibilidade, estão correlacionadas a outros aspectos como, por exemplo, a rigidez a se ter uma rotina. Então, eu percebo isso muito claramente em algumas coisas que vocês falaram. No meu caso, eu não sou uma pessoa com muita seletividade alimentar, então eu nem costumo comentar muito, mas tenho algumas hipersensibilidades curiosas. A vida inteira eu sempre fui taxado no meu ambiente familiar como fraco e frouxo, porque eu tenho uma percepção de peso diferente das outras pessoas. Então, minha mãe me chama de mole, de fraco, de frouxo, porque eu não consigo carregar peso muito bem, parece que as coisas são sempre muito pesadas, que machucam. Eu sinto uma dor e um cansaço muito fácil e muito rápido quando eu engajo em qualquer tipo de atividade física, de forma que às vezes eu pareço, sei lá, alguém com chagas, sabe? De fazer qualquer coisa e ficar muito cansado. Ao mesmo tempo eu tenho uma coordenação motora extremamente desajeitada, já falei isso aqui no podcast várias vezes. O Marcos às vezes até brinca, ele costuma dizer que eu deveria fazer fisioterapia e agora eu realmente preciso fazer porque eu tô com tendinite e eu sempre tive essa relação bastante ruim com a coordenação motora, tanto é que aqui em casa minha mãe não me chama pra fazer qualquer tipo de atividade física que precise carregar coisas, só se ela tiver realmente precisando muito. E ela vê na minha expressão facial o desespero pra mexer com qualquer coisa, assim, relacionada a peso. Minha coordenação motora é tão ruim que é muito frequente, durante a semana, eu bater a minha mão, os meus pés, minha perna, machucando em quinas, em paredes ou de formas completamente absurdas. Por exemplo, eu tropeço numa calçada lisa. Então, eu realmente tenho tudo isso muito desalinhado. E eu tenho ao mesmo tempo algumas hipersensibilidades relacionadas à temperatura. Eu fico pensando muito no fato da temperatura das cidades e dos lugares estar aumentando com o processo do aquecimento global. E cada vez mais eu sinto que eu sofro muito em algumas estações do ano, em que a seca é muito significativa ou que a temperatura sobe. Então eu tenho um problema com suor muito grande, tiro pelos da axila, pelos do corpo assim pra impedir que tenham mau cheiro, mas mesmo assim o suor é muito grande. Em toda a gravação de episódio aqui do Introvertendo, eu sempre saio com a camiseta pingando da cadeira, então tenho esse problema com suor excessivo. E ao mesmo tempo que eu tenho essa percepção de calor muito alta, eu prezo por banhos quentes. Mesmo morrendo de calor, sinto um desconforto muito grande se eu for tomar um banho de água fria, mesmo que seja pra “relaxamento”. Quando eu fazia a natação era muito complicado, porque eu tinha que entrar na piscina fazendo ali seus 10 graus, às sete horas da manhã. Ao mesmo tempo, aquilo que está ligado aos meus interesses, aos meus hiperfocos, não me incomodam. Então, eu seria de certa forma hiposensível para isso. Então, por exemplo, se eu estiver numa festa, e essa festa geralmente sempre tem músicas, eu sempre vou estar prestando atenção naquilo que está tocando e relacionar aquela música que tá tocando com um certo gênero, um certo artista, com uma certa discografia e com uma certa música. Eu posso ficar horas numa festa extremamente barulhenta, com aquelas caixas de som enormes, com todo mundo sentindo aqueles graves e agudos extremamente altos, mas eu não vou me sentir incomodado. Eu vou perceber que aquele áudio está extremamente alto, mas pelo fato de eu ter hiperfoco em música, aquilo não me incomoda. No dia seguinte, obviamente, eu vou lidar com as consequências, vou sentir aquele barulho que fica no ouvido, mas não é algo que me faz sentir mal. Inclusive, um exemplo muito interessante que eu posso dar sobre hipossensibilidade a estímulos sonoros desagradáveis, foi exatamente aquilo que a gente fez pra comemorar os 2 anos do podcast, o “Revolution Chicken 100”. Quem fez a montagem fui eu, então eu fiz ali 26 canais de áudio extremamente barulhentos, extremamente desordenados, mas era um prazer ouvir pra mim. Eu ouvi com fone de ouvido, eu ouvi com alto falante do notebook, eu entrei dentro do carro e coloquei pra tocar, enquanto isso, entre a equipe do podcast, ninguém conseguiu ouvir até o final. Então, eu acho que é um exemplo bem típico do quanto algo extremamente disfuncional, em certa medida, mas que é prazeroso pra mim, que tem uma lógica toda dentro, não me causa essa sensibilidade, em certa medida.

Willian: Meu Deus.

Michael: E especialmente pros ouvintes que não entendem dessa parte mais técnica, vinte e seis canais de áudio é muita coisa. Eu não ficaria surpreso se um projeto que tem duas, três horas terminasse com 26 canais de áudio. Mas 26 canais tocando em paralelo, praticamente ao mesmo tempo, isso é muita coisa.

Tiago: E aí relacionando essa questão pessoal, eu queria saber se vocês tem também uma hipossensibilidade diretamente relacionada a um hiperfoco que é tão estimulante ao ponto de alguma coisa que poderia te incomodar não incomodar.

Willian: Acho que é extremamente pertinente esse seu exemplo porque uma das formas da gente compreender melhor, na verdade, o que a gente geralmente chama de hipo e hipersensibilidade no autismo (na verdade, eu falei dessa forma porque realmente é a forma que a gente geralmente fala pela comunidade do autismo e que é a forma mais conhecida), não é como uma característica da pessoa. Não é a pessoa que é hipo ou hipersensível, mas sim interpretar e entender que aquela pessoa pode ter uma hipo ou hiper-reatividade, na verdade. Ou seja, a forma que a pessoa reage a determinados estímulos que estão no ambiente dela ali pode ser desproporcional dependendo da situação. E essa forma de enxergar acaba sendo mais precisa, mais acurada, porque justamente acontecem fenômenos como o Tiago acabou de citar. E eu acredito que isso aconteça entre diversos autistas, eu já vi diversas situações nesse sentido e também já vivenciei. Inclusive algo que me fez lembrar aqui são situações envolvendo jogos, por exemplo, jogos que envolvem movimentar muito a câmera do personagem e olhar para todos os cantos rapidamente. São jogos assim de ação, como jogos de tiro, por exemplo, ou até jogos que você tem personagens que fazem acrobacias, eu posso ficar hiperfocado, posso ficar fascinado por jogos assim, e no momento que eu engajo em uma atividade como essa, como jogar um jogo desse tipo, principalmente se eu estiver frente a um monitor grande com um brilho intenso, é muito fácil pra ficar com uma dor de cabeça absurda, com dor nos olhos, até mesmo ficar enjoado. E é claro, isso são sintomas comuns de alguém que vai ficar na frente de uma tela por muitas horas jogando e se divertindo ali bem mais tempo do que o ideal. O ponto é: uma pessoa típica iria começar a sentir que alguma coisa não está muito legal no organismo dela, os olhos começaram a doer, a cabeça começou a doer e provavelmente essa pessoa vai evitar um pouco à medida que ela vai sentir essa dor. Agora, neste contexto, pra mim, o que acontece é que essa dor de cabeça, essa dor nos olhos é simplesmente ignorada, eu fico hipo-reativo a essa intensidade de luz. Ou seja, a minha reação a essa exposição longa e intensa, essa luminosidade ali do monitor e a câmera girando ali na minha frente não me causa a reação esperada, como ficar tonto ou com dor e evitar. Então eu já tive muitos problemas com isso ao longo da vida, nossa… muitos mesmo e hoje em dia eu consigo me controlar. Mesmo que os meus sensores não me avisam tanto, mas eu consigo me policiar de tal maneira a não exceder o tempo quando eu estou jogando os jogos desse tipo, porque senão realmente as consequências são bem ruins mesmo.

Michael: Não chega a fazer um ano atrás, eu finalmente peguei as condições para começar a treinar tiro ao alvo com carabina a ar. E uma das coisas que me fez perder bastante tempo foi pensar que tipo de equipamento eu vou comprar, como e aonde eu vou executar isso. Quando você vai partir pro tiro, você pega um equipamento desse não pra algo recreativo e sim algo mais técnico, que nem eu tô tentando treinar pra atirar a 12 metros, mesmo que você esteja trabalhando com equipamentos que usam pressão de uma mola e ar comprimido, eles são relativamente barulhentos. No caso ainda em especial a carabina que eu acabei ficando beira a velocidade do som, então é bem comum eu acabar dando um cheirinho ou ver aquele estampido. Tipo quando chega na barreira do som e faz aquele som lindo que dá vontade de morrer quando isso acontece. Então, assim, eu fiquei bastante preocupado na hora de começar, porque por mais que seja algo que tinha bastante interesse, é a questão: será que eu vou aguentar? No final acabei até tendo oportunidade de treinar tiro com arma e fogo um pouco, tive a oportunidade de ouvir a questão do barulho na prática. Eu descobri que no final das contas o barulho ia ser o menor dos meus problemas, salvo quando acontece essas questões do projétil chegar na velocidade de som e dar um som extremamente agudo. A maior parte dos sons que eu ouço são graves. O problema que eu descobri depois e o motivo que, principalmente, eu deixo minha sessão para serem as mais intermitentes possíveis é que, apesar do som não ser um problema pra mim, a minha carabina tem uma para comprimir o ar. Pensa em uma mola de uma suspensão de uma moto. Quando aquela mola vai com tudo pra frente, de uma vez, ela vibra muito e, apesar do som diretamente não me incomodar, eu descobri que a vibração que ela causa, na hora que eu tô atirando (especialmente quando estou sem apoio) vem toda no corpo e incomoda demais ao longo prazo. E são duzentos, trezentos, quinhentos, mil tiros. Então é uma semana seguinte inteira com dor de cabeça lascada.

Tiago: Eu acho que isso é bastante comum. Frequentemente eu lido com atividades ou coisas que no momento que eu estou muito engajado com elas eu não consigo ter detalhes sobre tudo que eu tô fazendo. Uma coisa que sempre me deu muito prazer foi editar áudio, eu poderia passar horas editando áudio com a postura completamente errada, com meu corpo completamente desajustado, e isso me trouxe problemas a longo prazo e já estou sentindo. Mas no momento era tão prazeroso que eu não conseguia ter esse controle. E eu só tinha essa percepção quando eu passava do processo.

Michael: Antes do Willian entrar, eu só queria dizer para os nossos telespectadores, na verdade audioespectadores, mas… você que tá aí ouvindo o podcast super confortável na sua cadeira. Ajeita essa coluna e vai tomar um copo d’água seu desidratado do caralho!

Tiago: (Risos)

Willian: What the fuck… (Risos)

Tiago: Ah, amei, esse é o bom e velho Introvertendo.

Willian: Bom, falando sobre a minha infância, eu posso me lembrar de uma situação que era a textura de um muro. Era tão atraente pra mim, eu realmente queria sentir aquela textura, fiquei passando a minha mão ali repetidamente numa intensidade que realmente tive danos físicos a tal ponto que a minha mão começou a sangrar. Isso foi um episódio bem marcante pra mim porque eu tenho lembranças de olhar pra minha mão e pensar: “Nossa, mas como de repente a minha mão tá nesse estado”, sabe? Porque enquanto eu passava a mão no muro e sentia a textura, realmente era algo até agradável, não tinha nem sequer a percepção de ter considerado que aquilo ia me fazer mal nem nada do tipo. E outra coisa que eu faço até hoje, como eu já disse aqui anteriormente, a textura e a rigidez de determinados alimentos pra mim é mais importante do que o gosto e alguns alimentos como, por exemplo, barras de cereal, grãos, cereais matinais, eu realmente gosto de mastigar eles, assim, de uma forma bem específica, estereotipada mesmo como autistas gostam e fazer isso dessa maneira repetitiva. Não é tão intensa eu diria, mas como eu faço muito em alguns dias eu acabo me machucando. A minha gengiva, às vezes, acaba realmente ficando um pouco machucada por conta deste meu hábito.

Tiago: E é engraçado que como a gente já conviveu pessoalmente durante um período, isso me irritava profundamente, porque você tava lá no seu momento repetitivo e eu falava: “Willian, para com isso, pelo amor de Deus”, mas era tão estimulante pra você que você talvez não tinha uma percepção completa disso no momento.

Willian: Não, eu tô sabendo disso agora, na verdade (risos).

Tiago: (Risos)

Willian: Então, pra mim eu abstraí totalmente, porque realmente é uma coisa que está fora de cogitação de parar. É claro que, se me faz mal, eu deveria parar sim, inclusive a intervenção não é tão fácil.

Tiago: Mas, ao pensar em formas de resolver isso, eu não consigo encontrar uma estratégia propriamente dita. Então, eu tenho essa hipersensibilidade de carregar coisas pesadas e geralmente eu evito. Ou eu peço, às vezes, pra amigos ou pessoas próximas, lidarem com essas coisas. No caso da temperatura, eu tive que procurar uma dermatologista, porque eu queria identificar se essa reação excessiva ao calor, acima do normal, era alguma questão hormonal. Eu até fiz exames e tudo saiu normal. Eu comecei a usar mais regatas, comecei a usar ventilador com mais frequência, tentei usar sempre roupas 100% algodão, isso me ajudou bastante, porque às vezes eu usava alguns materiais em poliéster. Eu tenho tentado tomar banhos menos quentes, de forma que isso não faça mal ao meu corpo. E com relação a minha coordenação motora, eu estou pretendendo depois da pandemia em fazer alguma atividade física que me ajude nisso como natação, por exemplo. Então, não existe uma receita no meu caso, mas eu tenho sempre pensado em estratégias ou serviços que eu posso procurar pra melhorar minha qualidade de vida.

Willian: Quando a gente fala sobre estratégias para lidar, o primeiro passo sempre pra gente pensar em como melhor intervir é entender qual é o objetivo, o que mantém aquele comportamento. Ou seja, o porquê a gente faz o que a gente faz. No caso de estereotipias, do fascínio por telas, por exemplo, de escovar os dentes de uma forma repetitiva e estereotipada, por exemplo, é por causa daquela sensação boa da escova entre os meus dentes, que é algo que eu faço também. É muito fácil de identificar, pelo menos na minha perspectiva, que eu faço isso porque é prazeroso, isso me dá prazer e aí eu continuo repetindo isso. E dependendo de qual estereotipia, dependendo de qual é o comportamento que a gente está falando, a gente pode sim pensar em estratégias para se lidar. Por exemplo, no caso das telas digitais, uma das formas que eu aprendi pra lidar com isso é aumentando o brilho da tela, porém usando óculos de sol enquanto eu jogo. E isso tem dado muito certo. Por outro lado, outros hábitos e comportamentos que também são mantidos por conta dessas questões sensoriais podem ser um pouco mais difíceis, como, por exemplo, essa questão da dor. Se os meus sensores de dor não são tão acurados, eu às vezes posso me submeter a situações até mesmo de risco ou me engajar em alguma atividade que está me machucando sem notar. E, quando eu notei, eu já me machuquei. Para casos assim, às vezes a gente pode pensar em formas que a gente consegue melhorar o nosso automonitoramento, então, por exemplo, pensando também na questão da fome, eu poderia programar alarmes e também organizar a minha rotina de tal forma que as refeições do dia (pelo menos as refeições mais importantes) sejam cumpridas necessariamente. Apesar de que todas as estratégias que a gente tá falando aqui não necessariamente estão tratando o problema em si. Ou seja, no sentido dos sensores se comportarem, captarem de uma forma um pouco diferente. Nesse sentido, existe uma prática que recentemente foi considerada como uma prática baseada em evidências que é a Integração Sensorial de Ayres. E além disso, profissionais como, por exemplo, terapeutas ocupacionais, mas não exclusivamente (porém, estes são os melhores profissionais) se dedicam a trabalhar essas questões sensoriais e não somente entre as pessoas com autismo, na verdade, mas também pessoas com a condição que geralmente a gente chama de Transtorno do Processamento Sensorial. Apesar de que ele não é um transtorno que tenha um código, no CID ou no DSM, como no caso do autismo, é realmente uma condição que está presente com mais intensidade. Essas dificuldades, os desafios por conta desses sensores atípicos, eles podem sim se manifestar de formas mais severas em pessoas com ou até mesmo sem autismo ou outro transtorno associado. Então, no meu entendimento, a forma que a gente pode lidar com essas questões sensoriais é tanto pensando em estratégias de como a gente organiza o ambiente e também pensando em atividades que de certa forma fazem com que o nosso organismo talvez calibre melhor esses sensores, eu não tenho certeza qual é o referencial teórico por trás dessa prática, da integração sensorial, mas imagino eu que deve ser mais ou menos nesse sentido.

Michael: E na minha questão, meu maior problema é das coisas que eu não posso evitar. Eu vivo num ambiente ruidoso a maior parte do tempo, o lugar que eu vivo também tem variações de temperatura muito grandes. A maior parte do tempo o clima aqui é frio, e essas coisas eu não posso evitar, então tenho que lidar com isso, aprender a suportar barulho, aprender como que eu posso ajudar quando a temperatura baixa muito ou quanto o meu corpo não reage bem quando tá muito quente. E meu maior problema é suportar a ansiedade que vem junto com eles. Então, no final das contas, a minha maior forma de lidar com isso, literalmente, foi aprender a lidar com ansiedade, aprender a controlar essas coisas, pra evitar de entrar em crises ansiosas. Esse é meu ponto. Como eu não tenho como fugir das coisas, como eu não tenho que mitigar muitas dessas coisas, aprender a lidar e aprender a suportar foi a minha saída.

Tiago: E você, tem histórias de hipersensibilidade e hipersensibilidade? Conte a sua história que nós leremos aqui no podcast. Um abraço pra você.

Site amigo do surdo - Acessível em Libras - Hand Talk
Equipe Introvertendo Escrito por: