Introvertendo 01 – Diagnóstico de Síndrome de Asperger

Na estreia do Introvertendo, nossos integrantes contam um pouco do que é a Síndrome de Asperger, suas características positivas e negativas e suas histórias de vida antes e depois do diagnóstico.

Você vai saber todas as alegrias e tristezas da época da fase escolar, as situações engraçadas que só autistas passam e os caminhos que nos levaram a conhecermos e nos juntarmos em torno do podcast.

Vale acrescentar que este episódio, mais tarde, revelou para nós vários problemas técnicos os quais resolvemos a partir do segundo. Por isso, há consideráveis ecos e, em alguns trechos, é um pouco difícil de entender os diálogos. Mas confiem: Os próximos não terão esses problemas!

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Participam desse episódio Guilherme Pires, Marcos Carnielo Neto, Michael Ulian, Otavio Crosara e Tiago Abreu.

Links e informações úteis

Se você teve maior interesse em saber detalhes sobre a Síndrome de Asperger, não deixe de conferir nosso informativo: Entendendo a Síndrome de Asperger.

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Transcrição do episódio

Tiago: Um olá para você que escuta o podcast Introvertendo. Eu sou o Tiago Abreu, e nós estamos aqui para falar sobre síndrome de Asperger. Porque afinal de tudo este é um podcast feito por neurodiversos, para neurodiversos e neurotipícos. Vale relembrar que estamos falando sobre síndrome de Asperger pois todos aqui foram diagnosticados. Mas, antes de entrar no assunto, deixe-me apresentar meus colegas que estão aqui, Marcos Neto:

Marcos: Eu.

Tiago: Otávio Crosara;

Otávio: Boa tarde!

Tiago: Guilherme Henrique;

Guilherme: Presente!

Tiago: E Michael Ulian;

Otávio: É gaivota, tem que chamar ele de gaivota. Ei gaivota, faz som de gaivota aí no canto!

Michael: (imita com pouco sucesso o barulho de um pássaro)

(risos)

Tiago: Esse é o nosso primeiro episódio. No futuro, desejamos falar sobre diversos temas, bem como de nossas experiências pessoais como pessoas portadoras de autismo. Já que achamos importante derrubar um dos maiores mitos sobre pessoas dentro do espectro autista de que a gente não gosta de se socializar. E eu acho isso uma completa bobagem, visto que nós gostamos sim de ter convívio com outras pessoas.

Michael:  Menos com cariocas.

Tiago: A socialização é uma parte importante das nossas vidas. Claro que em diferentes graus e com diferentes pontos de vista. E eu acho que com esse podcast a gente pode desconstruir certos tipos de mitos e estereótipos.

Otávio: Para começar, vamos contextualizar primeiro, o que é a síndrome de Asperger.

Tiago: Acrescentando que você é estudante de medicina.

Otávio: Eu não terminei o curso ainda…

Tiago: É hora de dar a carteirada. (risos)

Otávio: Perdão, eu vou me descredibilizar um pouquinho agora. Porque eu não cheguei ainda no rodízio de psiquiatria. Eu não tive essa matéria ainda.

Tiago: Exatamente.

Otávio: Mas de acordo com o que eu estudei até o momento. Síndrome de Asperger, de acordo com o manual de doenças psiquiátricas cinco, a principal referência em doenças psiquiátricas, é uma entidade neurológica que está presente no espectro de transtorno global de desenvolvimento. É uma síndrome que atinge o nosso desenvolvimento cognitivo de diversas formas. Então você nunca vai ver por aí dois casos idênticos. Cada pessoa tem suas dificuldades, pontos fracos e fortes. Me usando de exemplo, eu não tenho a dificuldade motora que é característica para muitas pessoas com Asperger. Eu tenho uma coordenação motora muito boa. Só que, eu sou incapaz de captar sarcasmo, especialmente quando o sarcasmo ou ironia é muito sutil. Enquanto vocês conseguem de forma melhor.

Tiago: Em diferentes níveis, né.

Otávio: Em diferentes níveis.

Marcos: Eu sou uma completa porta. O Tiago também tem bastante dificuldade de compreender pessoas.

Otávio: Mas melhor que eu né?

Marcos: Não sei, o Tiago não consegue entender expressões.

Guilherme: Tem expressões que eu não consigo distingui-las, também.

Otávio: No meu caso, quando alguém diz uma hipérbole, eu tento racionalizar o que a pessoa falou. “Ah, eu vou levar um milhão de anos.” E eu imagino a pessoa de fato, levando um milhão de anos para fazer um trabalho simples.

Marcos: O primeiro pensamento é literal mesmo.

Tiago: Até porque a visualização de ideias de um Asperger é extremamente imagética. Então, aquilo que a gente lê, a gente também constrói imagens.

Marcos: Comigo, eu fui trabalhando isso com o tempo. Quando eu era criança, também tinha bastante dificuldade, não entendia sarcasmo, piadas, nada do tipo. E com o tempo foi amenizando, lá para os meus quatorze anos, já tinha uma boa compreensão.

Tiago: Sobre esse aspecto, acho que é interessante a gente começar a falar as principais características da síndrome, né? Apesar de que dá para partir do pressuposto de que parte do público que segue a gente sabe um pouco o que é Aspeger, vale a pena definir de forma mais clara algumas características que talvez a gente não concorde tanto.

Otávio: Exato. Em medicina a palavra síndrome vem de um termo em latim, que significa andar junto. É um conjunto de sintomas, que aparecem em graus variados, mas quase sempre juntos. Para Síndrome de Asperger estes são, dificuldade de socialização, compreensão literal e preponderante da linguagem. Dificuldade de comunicação verbal. Apego a hábitos, rotinas outros comportamentos estereotipados. E outros que eu não lembro, gravando agora.

(risos)

Tiago: Além de tudo, eu acho que talvez o maior mito, ou até um preconceito em relação aos portadores é aquela coisa de dizer que Asperger não têm empatia. E eu discordo totalmente. A forma de manifestação da empatia nos neurotípicos é bem distinta.

Otávio: E a forma de percepção, também.

Tiago: E além de tudo, eu acho que a empatia do Asperger é tão característica que ele tende a sofrer em antecipação por causa dos outros.

Michael: Eu não sei onde eu veria empatia numa pessoa que queimaria todo o estado do Rio de Janeiro. Mas vamos falar dos pontos positivos.

(risos)

Otávio: Boa ideia.

Michael: Pontos positivos: Não tem, acabou.

(todos riem)

Otávio: Mais uma vez, Michael. Obrigado pela sua explicação, agora cala a boca!

(mais risos)

Marcos: Mas tem pontos positivos.

Otávio: Tem ótimos pontos! Por exemplo, nós somos muito bons em reconhecer padrões, detalhes. Em fazer planejamentos.

Tiago: E em nos aprofundar em nossos temas de interesse.

Otávio: Especialização.

Michael: O hiperfoco, dependendo de como ele surge, é uma grande vantagem.

Marcos: Ao menos que você tenha hiperfoco em uma coisa inútil.

Michael: É, como alguém aqui que tem hiperfoco em dinossauros.

(risos)

Marcos: Isso não é inútil, e eu também tenho hiperfoco em dinossauros.

Otávio: Meu hiperfoco é paradoxal. Ele está no ato de aprender em si. Eu gosto de aprender.

Marcos: É, isso é inútil.

Otávio: E o que acontece. Eu acabo sendo muito bom em assimilar qualquer matéria.

Marcos: Desde que você tenha interesse, né?

Otávio: Não, engraçado. Tanto no Ensino Médio quanto na faculdade. Eu sempre tive uma facilidade enorme de entender e explicar o que eu aprendi no decorrer dos anos e minhas notas sempre foram altas.

Tiago: Outro caso que é típico e é extremamente valorizado pelos neurotípicos é caso da fidelidade. Como nós somos pessoas que têm dificuldades em estabelecer vínculos. Quando nós conseguimos criar esse contato, essas pessoas não são descartáveis para nós. Como é geralmente. Tanto no aspecto romântico, quanto em amizades.

Michael: Eu já diria que essa acaba sendo uma puta desvantagem no mundo moderno.

Tiago: Bem, se tem quem não quer, tem quem queira.

Otávio: Você consegue discorrer melhor sobre seu ponto?

Michael: Hoje é extremamente raro você encontrar pessoas que prezam por compromissos a longo prazo. A gente vive em uma sociedade imediatista. Não existe uma noção de preparação ou mesmo apreensão pelo futuro. E isso reflete diretamente no comportamento social. As pessoas raramente buscam por relacionamentos a longo prazo nem prezam por algo do tipo.

Otávio: Ou elas não acreditam mais nisso.

Tiago: Eu acho que isso parte um pouco mais de uma generalização.

Michael: É claro que é [uma generalização]

Tiago: E é claro que são raras [pessoas que valorizam compromisso social]. Mas eu acho que o ponto é que quando você encontra alguém que valoriza isso, é para durar, entendeu?

Otávio: Exato, e quando nosso hiperfoco é redirecionado para uma relação, a gente tem um zelo para isso que as pessoas não percebem. Nós ligamos quando prometemos que vamos ligar. Nos lembramos de coisas que ninguém normalmente iria lembrar. Como um hábito e gosto específicos.

Marcos: A gente é observador.

Tiago: Nós não normalmente falamos “te amo”. Nós demonstramos de outras formas, as vezes muito estranhas ou muito chatas.

Otávio: E com uma cara cheia de ansiedade. Muita ansiedade mesmo. Também dá para dizer que o nosso nível de atenção é quase equivalente ao de um stalker.

Tiago: Acho que em alguns casos nós acabamos sendo stalkers.

Marcos: Algumas pessoas mais que outras, né. Tiago?

(risos)

Marcos: Experiência própria aqui.

Otávio: Opa! Tirem as crianças da sala! Começou a polêmica aqui.

(risos)

Michael: Não consigo falar de stalker sem pensar em S.T.A.L.K.E.R [jogo] ao invés do termo em si.

(risos)

Otávio: Ok, ninguém entendeu essa referência, vamos continuar. Agora me perdi. Obrigado, Michael!

(risos)

Tiago: Bem, como tudo na vida existe um lado bom e um lado ruim (exceto um disco do Jota Quest).

Otávio: Então aos pontos negativos, prossiga.

Marcos: Taxa de suicídio alta.

(risos)

Otávio: Marcos jogou o sal na ferida!

(risos)

Marcos: Mas é verdade. A taxa de relação entre Asperger com depressão e transtornos similares é alta.

Otávio: Outro ponto negativo, que o Guilherme falou antes do podcast, é que a gente não consegue se entrosar. Muitas vezes para uma pessoa que não é Asperger e ouve isso pensa: “Não, isso é normal!”. Para gente não é! Eu tenho uma metáfora para isso. Imagina que em uma situação social, todos estejam conversando em uma mesma frequência. Nós conseguimos ouvir nessa frequência. Mas não falar.

Marcos: A gente é como aquela baleia.

Otávio: A baleia dos cinquenta e dois hertz. Outro dia eu conto essa história. Outra metáfora, é como se o mundo fosse uma peça e eu fui o único que não leu o roteiro. Para mim esse é um dos principais pontos negativos. Outro ponto negativo…

Michael: Só para acrescentar, eu conheço o autor dessa primeira metáfora e ele é um bosta.

Otávio: É claro que conhece, ele sou eu!

Michael: E eu também!

Otávio: Nós dois somos uns bostas! YAHOOOW!

Guilherme: Um dos pontos negativos é justamente você ter que fazer escolhas, ter que confiar em alguém. E essa pessoa acabar te decepcionando. Para muitas pessoas isso pode ser superficial, mas para a gente isso é bem aprofundado. Quando a gente se decepciona com alguém, é de forma profunda. Como se fosse um tiro no meio do peito.

Tiago: Isso de certa forma também é ligado a memória. Alguns de nós possuem memórias excelentes. Tanto com informações, dados brutos ou coisas relacionadas ao nosso hiperfoco. Como acontecimentos. E quando você tem uma memória muito boa, você vive as bênçãos e as maldições disso. Como quando nós adquirimos consciência de falhas sociais. Esses erros podem permanecer na mente por anos. Ou nem mesmo ser esquecidos por mais que tal situação não seja algo digno de culpa.  E aquilo fica martelando na sua mente até te destruir por inteiro.

Otávio: Até porque somos pessoas intensamente visuais. Tornando nossas memórias mais duráveis e também mais vividas. A gente não só lembra do que aconteceu, mas de como nos sentimos, de todo contexto, nos marcando de uma forma bem mais intensa. O interessante é que dentre nossos membros, todos fomos diagnosticados tardiamente. E por exemplo, fui com vinte e dois anos, apesar de sempre ter percebido algo de errado. Porque isso acontece? Porque apesar de sermos excêntricos o bastante para fazer valer o estereótipo, mas não o bastante para ser categorizados como não funcionais. 

Marcos: Exatamente, esse é o problema.

Otávio: Exato.

Marcos: Porque as pessoas têm a noção que a gente é só estranho.

Tiago: A partir das nossas análises dos aspectos positivos e negativos da síndrome de Asperger e da nossa compreensão de cada pessoa Asperger, é um caso particular. Eu acho que seria muito interessante para que vocês conhecessem cada um de nós. Que contemos um pouco da nossa história, de como foi o nosso diagnóstico. E cada um de nós irá falar sobre esse processo de descoberta e o que é ser Asperger. Nós vamos começar com o Otávio.

Otávio: Para eu começar a falar de mim eu tenho que começar falando da minha mãe. Ela é uma pessoa muito centrada, muito certa e religiosa. E também uma pessoa muito autônoma. Certo? Logo após eu nascer, meus pais se divorciaram. Então eu fui criado quase que exclusivamente pela minha mãe. Desde os meus primeiros dias no colégio eu já percebi que eu não me encaixava bem com as outras crianças. Mas eu ia bem, as minhas notas eram boas. Daí ficou aquela coisa “ah eu me sinto um pouco tímido.”

Marcos: E você era o mais inteligente da sala.

Otávio: Sim, tinha as melhores notas.

Marcos: Sempre o mais inteligente, o nerdão.

Otávio: E como eu sinto falta desse título viu. É muito ruim não ser o mais inteligente. E assim foi indo, e a “timidez” continuou. Eu continuava sendo visto como excêntrico, como o melhor da sala. Também continuava não me socializando. Ficava sempre em casa, quase não saia com os amigos. As vezes eu fazia amizade aqui ou lá, com outros excêntricos. Ou pessoas que se davam bem com gente assim. E assim foi, ensino fundamental, ensino médio. Ensino médio foi um pesadelo para mim. Inclusive, se você reconhece o meu nome e lembra que eu estudei com você nessa época. Eu quero que você morra! Porque eu não te aguento, eu detesto você. A culpa não é sua, mas você me lembra de uma época muito ruim da minha vida. Então vai se foder. E aí o que acontece. Eu passei pelo ensino médio, entrei para engenharia bem novo. Na Escola de Engenharia de São Carlos. E lá tudo começou a desandar por uma multifatoriedade de fatores. Olha que coisa redundante de se falar.  Lá minhas notas caíram, eu perdi total interesse pelas matérias. Em parte, por não estar sendo guiado. Porque você sabe, na faculdade ninguém dá a mínima para você. Como eu não tinha orientadores e estava em outra cidade, eu não consegui manter uma boa rotina. E a faculdade tem tantas oportunidades para extensão extracurricular que eu acabei me perdendo. Ainda insisti por dois anos e meio, tirando notas horríveis. Eu cheguei muito perto de ser jubilado. E quando eu vi que não valia mais a pena, eu voltei para cá. Fiquei um ano e meio num cursinho, mais uma vez sendo taxado como excêntrico. Até hoje eu tenho esse título. Eu acabei passando para Medicina na [Universidade] Federal de Goiás depois disso. E falei, agora vai dar certo. E eu acabei passando pelos mesmos problemas que tive na engenharia, perdendo quase um ano inteiro. Também entrei em um relacionamento, o primeiro “grande amor” da minha vida. Ainda nessa época nós terminamos e eu fiquei muito abalado, me fazendo sentir completamente sozinho. Aí eu percebi que, por força de vontade, eu cheguei aonde eu conseguia ir. Eu precisava de ajuda, não de um psicólogo. Eu já tinha feito inúmeras terapias na vida. Eu precisava do auxílio de medicamentos. Nem sempre uma pessoa com Asperger fala essas palavras. Eu digo isso porque devido ao curso de Medicina eu já tinha alguma ideia de como seria o tratamento. Com isso eu procurei pelo primeiro psiquiatra. Foi um tratamento horrível com esse cara! Ele é conhecido em Goiânia por falar que todo mundo tem transtorno bipolar. Esse tratamento não resultou em nada, só me deu dores de cabeça horríveis. Aí eu fui em outra psiquiatra, Drª Lucena. Uma das melhores pessoas que eu tive o prazer de conhecer nessa vida. Ela fez uma primeira consulta comigo de duas horas e meia. Qual médico gasta duas horas e meia com um único paciente? Só alguém no particular mesmo. E ali eu descobri que eu queria ser psiquiatra. Foi ela que falou “você tem um transtorno dentro do espectro autista”. Ela não tinha colocado o “rótulo” de Asperger ainda. Até porque esse rótulo era da edição passada do DSM-IV. A partir disso eu comecei o tratamento com ácido ansiolítico, em altas doses. A minha mãe, ainda não convencida do diagnóstico, pediu para que eu fosse em outro psiquiatra. E o outro falou “Olha, eu acho que você tem Asperger. Isso ou autismo de alta funcionalidade. Para isso eu teria que falar com sua mãe sobre seu desenvolvimento na infância”. Porém como eu sabia que eu não tinha nenhum déficit nesse tipo, por exclusão eu falei, eu tenho Asperger. Alguns meses depois eu comecei o tratamento com a Drª. Maria Amélia, que é uma doutora aqui da Federal de Goiás. E com isso eu comecei a melhorar como que do nada! Minhas notas subiram, eu comecei a ficar mais ativo na faculdade, a ficar mais calmo ou pelo menor era o que me diziam. Comecei a interagir mais com meus colegas de turma, a fazer mais amigos. Inclusive com todos que hoje estão aqui presentes. E sou muito grato a eles por me aguentarem, porque eu sou um porre. Continuo tomando ácido ansiolítico, apesar de que minha ansiedade é tão grande que nem a maior dose tem sido o bastante. Acho que vou ter que trocar em breve. E essa a minha história, acho que podemos passar para o próximo.

Guilherme: Eu acabei de ingressar na faculdade, já diagnosticado como Asperger. Tenho 26 anos e meu diagnóstico foi recente, já adulto. Sempre percebi que tinha algo de errado comigo, principalmente na infância, quando eu sofria bullying verbal e não verbal. Na época eu não entendia muito bem o porque disso né? Mas depois percebi que sempre foi pela forma de ser excêntrico. Eu sou medicado com ritalina bem como o ansiolítico, após uma série de exames e acompanhamentos médicos. De início eu pensei que fosse uma forma de desvio de atenção. Também percebi traços disso na minha família. Então quando você para pensar… Mas você não pode se autodiagnosticar! Você precisa de ajuda psicológica, de ver ao certo o que você tem. Não dá para ao assimilar uma informação, ponto. Dizer que você tem isso e acabou. Isso é um grave engano. Sempre tive dificuldade em interações sociais. Na hora de prestar atenção nas aulas era muito difícil. Precisava ficar após as aulas para copiar conteúdo, tanto que minha mãe foi chamada diversas vezes na escola por esses problemas. Meus pais também se separaram muito cedo, o que agravou o meu caso. Diversos fatores também influenciaram. Porém eu não deixei me abater por isso. O importante para mim foi sempre seguir em frente e tentar não perder o foco. Com a descoberta da Síndrome, eu tive uma melhor compreensão do meu eu e da minha personalidade. E eu acho isso muito porque você começa a achar o seu lugar no mundo. Nós atípicos sempre pensamos na sociedade como se nós não pertencêssemos a ela.  Vemos a nós mesmo como fragmentados, por assim dizer. Peças de um quebra cabeça que você não se encaixa. Mesmo com uma melhora. Você sente que sua vida nunca vai ser uma vida normal. Mas sim uma vida cheia de limitações, como pontuado pelos meus amigos aqui. Por um lado bom, sua forma de lidar e ver a realidade pode ser bastante proveitosa. E batendo nessa tecla mais uma vez. Não se autodiagnostique. Não é porque uma pessoa que você conhece foi diagnosticada que você pode questionar ou tomar o diagnóstico dela para si. Além do erro que você comete, você ainda está ofendendo essa pessoa.

Michael: Atualmente, eu sou o único aqui que não é um mamífero.

Marcos: Você é um réptil, um réptil pré-histórico.

Michael: Tecnicamente sim, aves são répteis.

Marcos: Você é uma gaivota!

Michael: Larus atlanticus, para ser mais específico.

Marcos: Bem específico na verdade, o que é isso com gaivotas que até hoje eu não entendo essa tua obsessão?

Michael: Na verdade, não tem um porquê. Um dia eu coloquei uma como minha foto de perfil e ela ficou lá por tanto tempo que o apelido pegou.

Otávio: Mas fala aí como foi sua trajetória de vida.

Tiago: Isso, como foi seu diagnóstico?

Michael: Eu fui diagnosticado relativamente cedo comparado com o restante de vocês. Com quatorze ou quinze anos, de uma forma um tanto aleatória. Um dia minha família “olha ele tá tentando se matar, leva pro médico.”. Eles me levaram num médico que me acompanhou durante a infância e me diagnosticou desde cedo com TDAH. Daí ele me consultou em trinta minutos e falou para mim, “Ah você tem Asperger na verdade.”

Marcos: O mesmo médico? Ele te diagnosticou e…

Michael: Isso. “Não, não, não. Olhando agora você não tem cara de ter Hiperatividade não.”.

Guilherme: Mas não tem casos em que as duas são associadas?

Michael: Sim. Mas o pior que no meu caso não era. E só começaram a perceber isso quando resolveram enfiar ritalina em mim e essa merda quase me matou.

Marcos: Pelo menos ela funcionou?

Michael: Deu um efeito ao contrário! É como eu disse, essa bosta quase me matou. O eu acho que aconteceu foi que eu recebi o diagnóstico de TDAH na época em que todo caso que chegava na mão de um Psiquiatra ou Neurologista, era Hiperatividade.

Otávio: Eu também peguei essa época e fui diagnosticado com TDAH no início da infância. E depois que você foi diagnosticado, como é que foi a vida?

Michael: Olha, para ser bem honesto, não mudou porra nenhuma. E eu sei que chega a ser engraçado falando dessa forma. Desde quando eu tinha conhecimento o bastante para entender o que era autismo eu já reparei “espera, meu caso não bate nem um pouco com TDAH. Porém bate muito mais com autismo.”. Então o diagnóstico foi só uma confirmação de algo que eu já observava. “Legal, agora eu tenho certeza do que eu tenho.”.

Otávio: Agora, Tiago, a pessoa mais normal entre nós.

(Risos e gargalhadas por todos os integrantes)

Tiago: Eu vou encarar isso como um elogio, até porque foi mesmo um.

Otávio: Na verdade você aqui é o mais funcional, de nós o que mais sucede em produzir resultados, é o Tiago.

Tiago: Já que estamos falando de lugares, posso dizer que eu sou uma mistura de tudo. Meus pais são do sertão. Minha mãe ficou grávida de mim em Brasília, eu nasci em São Paulo, fui alfabetizado e cresci na região de Belo Horizonte, em Minas Gerais e atualmente moro aqui em Goiânia. Ah, também trabalho numa empresa do Rio Grande do Sul.

Guilherme: Ou seja, ele é cigano.

(Risos)

Otávio: Eu falaria cosmopolita, mas…

Tiago: Enfim, tirando essas informações extremamente irrelevantes, meu contato com a Síndrome foi extremamente tardio, apesar de que a minha mãe desde que eu era pequeno sempre observou comportamentos estranhos. Eu comecei a andar tarde, com um ano e três meses. Com dois eu não falava absolutamente nada. Isso deixou minha mãe preocupada, que chegou a achar que eu era surdo. Ainda mais que ela tem uma prima com surdez e alguns diagnósticos de epilepsia. Nesse caso ela me levou para um médico. E ele disse que eu tinha a língua presa e precisaria fazer uma cirurgia. E no dia da cirurgia outro médico foi observar e disse que o outro médico estava louco. Que eu não tinha a língua presa e com isso começou a perguntar para minha mãe do porque eu estava ali. E a minha mãe explicou que eu ainda não falava apesar da idade. E ele perguntou “você dialoga com ele?” E a minha mãe falou não. Consequentemente ele falou “Matricule ele numa escola e vamos esperar os resultados.”. Logo que eu fui colocado na escola eu já comecei a falar, tanto que a primeira coisa que eu falei foi o nome da minha professora. Não foi mamãe nem nada do tipo. Meu desempenho acadêmico sempre foi muito bom, em termos de notas. Mas a convivência escolar sempre foi péssima, horrível. E como eu entrei na escola muito cedo e em escolas particulares. Enquanto eu não estava no ensino público, eu estava muito bem. Mas quando chegou no fundamental meu pai não via a necessidade de continuar pagando, até por uma série de questões econômicas. E aí começaram os problemas, começando pelo bullying. Tanto em relação a minha forma de ser quanto sobre coisas particulares. Nesse sentido, eu comecei a ficar muito isolado. Minhas notas continuavam muito boas, mas os professores e coordenadores se queixavam muito da minha convivência. Principalmente quando eu me mudei para Goiânia. Agressões físicas, verbais, exclusão social, e com isso, no final do ensino fundamental já surgiram características de humor depressivo. Quando eu entrei no ensino médio, e eu acho que a adolescência seja um período bastante crítico na vida de todo mundo, mas especialmente para o Asperger já que o nosso nível de autocrítica ao nosso comportamento e a percepção social crescem de forma insuportável. Nesse período de transição dentre o fundamental para o ensino médio, eu passei a ter uma percepção muito mais aguçada dos meus erros sociais. Só que essa percepção só se manifestava depois que eu cometia esses erros. Eu sabia que o que eu fiz foi “errado”, mas não sabia como corrigir esse erro. O que acabou trazendo ainda mais isolamento. A minha vantagem foi ter estudado no ensino médio em uma instituição publica de renome. Um dos Institutos Federais. Os IF’s funcionam sob um processo de seleção, então você tinha pessoas de diferentes regiões da cidade com suas diferentes concepções de mundo, o que acabou enriquecendo um pouco da minha própria visão. Com esse alto nível de interação social eu acabei desenvolvido vários problemas de cunho pessoal, como crises depressivas. Durante esse período eu comecei a ler algumas coisas na internet. Sobre diagnósticos e tudo mais. E a partir disso eu fiz um teste que se não me engano se chamava temperamento. De uma PUC, do Rio Grande do Sul. E a partir de um questionário gigantesco, foram dadas possibilidades de algumas possíveis diagnósticos para mim. E a recomendação de procurar um médico. Dentre essas características deram fobia social, ansiedade generalizada, depressão, e transtorno de personalidade esquizóide. Este último chamou bastante a minha atenção e eu comecei a ler muito sobre esse tema a ter uma certa identificação na parte de isolamento social que esse diagnóstico trazia consigo. Lá para 2013 eu comecei a frequentar fóruns relacionados ao tema, mas não me identificava com as pessoas que tinham esse transtorno mesmo. Até que em um dia, em um desses grupos alguém publicou falando “Olha, alguns de vocês podem na verdade ser Aspergers.”. Com isso eu comecei a ler sobre Asperger. No início bastante receoso, pensando “não eu não sou Asperger” devido a minha concepção bastante estereotipada sobre o autismo. Mas ao frequentar alguns fóruns e grupos sobre, já na era do Facebook. Eu comecei a notar uma semelhança muito grande. E ao começar a ler livros sobre a síndrome e começar a entender alguns aspectos teóricos. Comecei a compreender o porque eu não consegui manter amizades, as vezes não entender ironias. E eu só passei a perceber que eu não compreendia ironias depois de ler a fundo sobre, já que era algo muito sutil. E principalmente na questão da solidão. Nessa época que eu comecei a ler sobre Asperger eu comecei a trabalhar com pessoas na mesma faixa etária que a minha. Foi aí que eu cheguei a conclusão “Eu tenho dezoito anos e ainda não tenho amigos. Eu preciso estabelecer um vínculo com essas pessoas.”. Já que a medida com que as pessoas envelhecem, fica cada vez mais difícil para se criar esses vínculos mais duradouros. Nesse ponto as coisas começaram a mudar. Eu estabeleci um padrão de autocrítica auto. Ao mesmo passo em que eu “pisava em ovos” para tentar socializar adequadamente. E essas pessoas também foram muito assertivas comigo. Foi aí que eu comecei a fazer amigos. Com isso minha noção sobre Asperger começou a me ajudar. Me entendendo melhor passei a fazer amigos e viver de uma forma mais saudável. Depois desse processo de um ano trabalhando nessa mesma empresa e de conseguir manter esses amigos que conviviam comigo no trabalho. Eu entrei na Universidade Federal de Goiás. Onde todos aqui estudam. E foi aqui dentro que eu passei a abraçar um pouco mais essa questão do autismo. Fui “laudado”, diagnosticado após procurar atendimento médico, em março de 2015 com já dezenove anos. E ai eu comecei a correr atrás de mais gente Asperger aqui na universidade, tentando procurar essas pessoas com a mentalidade de que se meu diagnóstico era tardio, provavelmente haveriam outros casos. E até a concepção desse podcast que ganha sua concepção hoje. Nós temos uma pessoa a agradecer, chamada Tatiana. Ela é uma psicóloga aqui a universidade, também mestre em filosofia. Foi ela que foi reunindo a gente aos poucos, a partir do ano de 2016. A primeira pessoa a fazer parte disso foi o Otávio, ele já era atendido pela tatiana mas não conhecia outras pessoas com a síndrome. E ela conseguiu encontrar o meu contato com o núcleo de acessibilidade da UFG. Ela falou comigo via whatsapp e sugeriu de nos encontrarmos e assim eu conheci o Otávio e demos início a este grupo.  O Marcos eu conheci pela internet antes de encontrar com ele no Campus. E a história de como a gente se conheceu é até engraçada. Em seguida veio o Michael, que veio de outro estado, passando na graduação e por todo um processo até chegar ao grupo. E por fim o Guilherme que é um estudante recém chegado. Também temos outros colegas que não estão aqui agora, mas vão aparecer em algum momento ou outro no nosso podcast. Por fim, eu particularmente parto da ideia de que Asperger é sim uma forma diferente de ser. Eu não classificaria como uma doença. O problema não somos nós, mas a forma como somos encarados. E por isso é importante para nós somarmos nossas forças. Durante esse tempo eu vi diversos conteúdos sobre Asperger, alguns canais no Youtube. Mas um trabalho coletivo sobre o tema, como nós estamos fazendo agora, para mim é algo muito significativo, que mostra que somos sociáveis que a gente também pode compartilhar nossas visões de mundo.  Por isso, todos nos sentimos honrados por vocês que estão ouvindo. Se alguém estiver ouvindo é claro. E é isso. Peço desculpas pelo depoimento prolongado.

Otávio: Nós somos a prova de que uma pessoa com Asperger pode se encaixar na sociedade, a sua própria forma. Como? Desde o início deste grupo, a vida de todos aqui melhorou drasticamente.  Socialmente, pessoalmente, academicamente. Todos progredimos muito. Outra coisa que gostaria salientar sobre a nossa querida psicóloga Tatiana. É que além da capacidade técnica, ela possui muito interesse em nos ajudar. E isso é muito importante, profissionais que querem ajudar.

Tiago: E de profissionais que leiam. Porque a literatura médica sobre Asperger é muito pobre. A Tatiana por exemplo, ao trabalhar com a gente, passou por diversos desafios. Tendo que as vezes partir das nossas experiências para tentar ampliar esse conhecimento. E ainda enfrentamos esses desafios.

Otávio: Vai lá Marcos, é sua vez!

Marcos: A minha história sobre a descoberta do autismo é um pouco diferente de todo mundo aqui, já que ainda não tive um diagnóstico profissional. Inclusive antes do grupo eu nunca tinha passado por um psicólogo ou psiquiatra. E a forma que eu descobri sobre a síndrome foi como que ao acaso, navegando pela internet. Por memes inclusive. Eu estava no 9gag, em 2012, e vi um meme de uma pessoa com Asperger, e eu criei interesse nisso já que aquilo parecia com algo com o qual eu me identificaria muito. Foi aqui que fui pesquisar sobre o que era a Síndrome de Asperger.  Parte por uma curiosidade anormalmente grande. E eu acabei me surpreendendo pois nessa hora eu percebi que eu tinha isso. Os sintomas explicavam tanta coisa que aconteceu na minha vida que me fez pesquisar mais a fundo ainda. Quando eu era criança, eu tinha dificuldades sociais, para interagir. Eu tinha bastante dificuldade em entender sarcasmo e ironia. E comecei a falar só a partir dos dois anos. Na escola eu sempre fui aquele aluno quietinho, aquele que as pessoas chamam de sonso. Eu era e sou até hoje bastante observador. Eu gostava tanto de estudar como de ficar sozinho. Dava para ver que tinha algo de diferente comigo. A partir dos meus quatorze anos eu comecei a trabalhar com as minhas habilidades sociais. Fui aprendendo muita coisa por observação, coisa que as pessoas aprendem automaticamente. Ia observando e aprendendo e com isso minhas habilidades sociais foram melhorando com o tempo. Até que eu entrei na faculdade e descobri que tinham outras pessoas aqui com a Síndrome. Foi aí que eu comecei a participar do grupo. A Tatiana me ajudou muito. Me convenceu a iniciar meu tratamento, com psiquiatra. Foi aí que eu comecei a tomar medicamento para a depressão. O que melhorou minha capacidade cognitiva imensamente. Bem como o grupo se tornou um lugar para encontrar outras pessoas para se modificar, para rir bastante também.

Otávio: Adendo! Nós rotulamos o Marcos como o cara que se autodiagnosticou quando o Guilherme falou para não se autodiagnosticar. Então, para deixar claro: NÃO SE AUTODIAGNOSTIQUE! Está bom? Ok? Beijinhos!

Michael: Não confundam emas com emus. Emus vencem guerras, emas não.

(Risos e gargalhadas)

Tiago: Marcos, eu acho interessante você comentar sobre a sua sensibilidade sensorial.

Marcos: Minha sensibilidade sensorial é bem específica. Eu tenho uma hipersensibilidade quanto ao calor e ao sol. Eu fico feliz que ele vai morrer daqui um bilhão de anos. Mas além do que todos temos como sensibilidade a sons altos, aglomerações de pessoas, aglomerações barulhentas. Que é algo que acaba afetando a gente negativamente. Que é um desconforto por causa da alta quantidade de estímulos. Eu também sou muito observador, então eu tenho uma sensibilidade a padrões como a arquitetura e organização de um lugar. Ao ponto em que minha saúde mental depende disso.

Tiago: Nisso o Brasil é um desastre.

Marcos: O Brasil é um desastre para mim! Por causa da desorganização.

Michael: A Terra é um desastre.

Marcos: No meu caso isso é algo que afeta diretamente a minha saúde mental. Meu bem estar depende diretamente do ambiente em volta de mim.

Otávio: Como todo aprendizado acadêmico se baseia no método científico, não é surpresa que você encontra Asperger em qualquer área, se destacando.

Tiago: E ao mesmo tempo nosso apego a racionalidade cria uma dificuldade para entendermos nossos próprios sentimentos. Tanto é que a Síndrome de Asperger normalmente é rotulada como a síndrome do Spock, que é um personagem muito característico pelo conflito da extrema racionalidade pelos nossos padrões de pensamento. Quanto pelo lado emocional que embora muito forte, muitas vezes é fortemente reprimido.

Otávio: Como nós somos muito racionais e os neurotípicos não. Vocês estão errados!

Marcos: Exatamente, fodam-se vocês.

(risos)

Tiago: Esse é o nosso episódio introdutório, prometemos falar sobre muito mais coisas de temas muito variados.

Michael: Prometemos falar muito sobre galinhas.

Tiago: E esperamos que em breve vamos abrir um canal para ler os e-mails de vocês e interagir, ouvir as experiências de vocês. Até mais!

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Equipe Introvertendo Escrito por: