Introvertendo 08 – Conhecendo Letícia Lyns

Depois de sete episódios de silêncio, a equipe do Introvertendo apresenta a estreia de Letícia Lyns entre nós. Ela é a primeira e (até agora) única mulher aspie em nossa equipe. E nosso primeiro encontro se deu no mesmo dia em que foi gravado o sexto episódio, com Álvaro Oiano. Enquanto o sexto episódio foi produzido no horário matutino, este episódio foi gravado à noite, para uma turma bem mais numerosa.

Álvaro, com as recorrentes participações de Rosalina Oiano e Ana Flávia Teodoro, complementam a discussão, ocorrida na disciplina de Educação Inclusiva, abordando questões não ditas no sexto programa. E, nesta conversa, Letícia conta sobre o seu processo de diagnóstico recente, as tensões que viveu na universidade e no meio social, suas histórias de relacionamentos e suas perspectivas de vida depois de se descobrir aspie.

Participam deste episódio Letícia Lyns e Tiago Abreu.

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Transcrição do episódio

Tiago: Olá pra você que escute podcast Introvertendo. Como vocês sabem, eu sou Tiago Abreu e esse episódio, que é o oitavo, é uma continuação do sexto episódio, no qual vocês foram apresentados ao Álvaro Oiano, que é um Aspie, que eu conheci nesses eventos relacionados ao autismo, e essa participação dele ocorreu na disciplina de educação inclusiva, que é ministrada na Universidade Federal de Goiás, pela professora Ana Flávia Teodoro. No mesmo dia em que Álvaro e eu fomos chamados pra estar ali na universidade e falar um pouco das nossas experiências, ela pediu uma espécie de reprise, e no horário da noite, em específico, tivemos uma participação especial da Letícia Lins, que agora, oficialmente, é parte dentre a membresia do nosso podcast.  É um prazer, inclusive, pra mim, ter uma mulher asperger no nosso trabalho, visto que as mulheres asperger muitas vezes estão muito à margem dessa possibilidade de discussão sobre autismo.

 E esse episódio específico eu gravei todo o evento, foram mais de duas horas de conteúdo, mas aqui nessa edição que vocês vão ouvir eu dei uma priorizada nas falas dela, principalmente das observações, e aí vocês vão poder conhecer um pouco da Letícia, que estará nos nossos futuros episódios, falando sobre suas experiências e, principalmente, como é ser asperger sendo mulher. Então, acho que vai ser bastante interessante. E, além de tudo, também, vocês vão poder ouvir um pouco dos relatos e das opiniões da mãe do Álvaro, a dona Rosalina. 

Ana Flávia: Então, a gente tá aqui com o Tiago, que é do curso de jornalismo aqui da UFG, é meu aluno, de manhã. Eu falo bastante dele aqui na sala, então, vocês já conhecem, né? O Álvaro, que é um amigão, do Voluntários da Turminha, depois ele vai falar um pouco do trabalho, e a Letícia é minha aluna e que descobriu recentemente também que tem síndrome de Asperger. Recentemente mesmo, né Letícia? Tipo hoje. Foi hoje mesmo, né Letícia? 

Letícia: É. 

Ana Flávia: Pois é, bem-vinda ao grupo. Então, de manhã eu tinha feito um roteirinho pro Álvaro, mas agora acho que ele já tranquilizou, a gente não precisa seguir tão à risca o roteiro, né, Álvaro? Bom, acho que a gente pode iniciar, assim, vocês se apresentando, falando um pouco de vocês. Pode começar com o Tiago.

Tiago: Meu nome é Tiago, eu tenho vinte e dois anos, sou do curso de Jornalismo da UFG, estou no sétimo período, fui diagnosticado com Síndrome de Asperger, em 2014, eu tinha 18 anos. Basicamente é isso, né? 

Álvaro: Eu sou Álvaro, acabei de fazer 20 anos, sou portador da Síndrome de Asperger, fico muito contente de estar com vocês, saber que eu vou falar sobre a minha pessoa aqui, agradeço a todos. 

Letícia: Eu sou a Letícia, eu tenho 22 anos, faço artes cênicas, licenciatura, fui diagnosticada hoje (risos) pela doutora Luciana Rosa, que muita gente conhece, ela é maravilhosa. Vou tentar contar pra vocês um pouco de onde surgiu essa curiosidade, de ir atrás do diagnóstico e ter a certeza, como que eu comecei a suspeitar e como tá sendo pra mim, dentro dessas poucas horas. E como foi antes, como era antes disso, também. 

Ana Flávia: Acho que você pode começar falando pra gente como é que foi essa trajetória. A Letícia tá na segunda disciplina comigo, ela fez a primeira disciplina de educação especial, aí voltou agora pra educação inclusiva, né? E ela vem ouvindo muito sobre isso. 

Então, assim, queria que ela falasse um pouco sobre essa nova descoberta.

Letícia: É, quando eu era criança, eu sempre tive muita dificuldade de aprendizado, de socialização, tanto nas escolas quanto no meio da família mesmo. Até hoje eu tenho um pouco de dificuldade de me relacionar, principalmente com os mais velhos da minha família. Não os meus avós, porque os meus avós, pra mim, são eternas crianças, mas com os meus tios, por exemplo, eu não consigo ter uma conversa de mais de dez minutos. 

Sempre tive muita dificuldade de olhar as pessoas no olho, principalmente pessoas que eu não tenho convívio diário. E sempre foi um problema pra mim, principalmente em relação ao relacionamento. Como mulher, eu posso dizer que eu saio na “sorte”, porque os garotos chegam em mim, porque eu não vou chegar neles nem pagando. Mas acaba que durante os relacionamentos eu sempre tive problemas por conta dessas coisas, porque eu era de uma certa forma estranha. E eles sempre chegavam em mim e falavam assim: “Você é inteligente demais pra mim, você é muita areia pro meu caminhãozinho” aí eu ficava “O quê?” Porque eu gostava da pessoa, sabe? Aí ela ficava, tipo, ah, eu achava que era desculpa o que ele tava falando, sabe? Eu não entendia exatamente. Eu sempre levei as coisas muito no oito ou oitenta, então ou você me quer, ou você não me quer. Recentemente, no ano passado, eu tive um relacionamento em que o meu ex chegou, a gente foi conversar, e pra mim ele tava falando: “Não, a gente vai começar de novo, relacionamento aberto”, não sei o quê. Na minha cabeça era isso, mas ele tava terminando comigo. Aí ele não falou pra mim “ Estamos terminando”, pra mim a gente ia começar de novo, mas começar de novo o nosso namoro e não começar de novo as nossas vidas. Então, ele não foi claro comigo, aí eu fiquei uma semana e cadê a criança? “E aí, querida, a gente não ia começar de novo? Quando é que é esse de novo?” E nada da pessoa. E aí, ele sumiu e depois voltou e falou: “Me deixa em paz, a gente terminou” Aí eu fiquei uma semana mandando um monte de mensagem pra ele, brigando com ele, falando, “querido, você não me falou que a gente terminou, entendeu?” Então, assim, me fala, tá? 

Em relação à faculdade, que eu acho que é bem importante de falar, e foi onde eu descobri que eu era [asperger], eu achava que quando eu entrasse na faculdade as coisas iam mudar na minha vida, assim, eu achava que eu ia ter um foco maior, eu ia conseguir me concentrar melhor, eu ia ter um um interesse maior em outras coisas, só que não. Eu acabei tendo muito problema, eu mudei de curso duas vezes. Um dos motivos pra eu ter mudado de curso foi porque eu não gostava dos professores, mas a questão não gostar dos professores era porque eu não tinha interesse nenhum na matéria deles, porque não era o que eu queria estar fazendo ali, então eu saía da sala toda hora, ia ficar passeando nos corredores da faculdade, fazia qualquer coisa, menos assistir a aula do professor. Até que os professores começaram a me olhar com cara feia, daí eu pensava “Quê que esse professor tem contra mim?” E eu peguei ranço dos professores. Eu decidi que não quero mais fazer isso, vou fazer outra coisa. E aí eu fui fazer Produção Cênica, na UEG, mas eu queria Artes Cênicas. E aí, quando eu fui fazer Artes Cênicas, minha mãe que me escreveu pelo Enem e tudo, eu nem fiquei sabendo, fui ficar sabendo quando eu já tinha passado na primeira fase, porque minha mãe me inscreveu meio que escondido. Aí, eu entrei, e comecei a ter contato com pessoas que discutiam sobre inclusão. E aí eles falaram da matéria da Ana Flávia. Então eu tentei entrar, não consegui na primeira vez. Mas eu falei “vou continuar tentando, com fé em Deus eu vou conseguir”. E aí, ano passado eu consegui. Eu tenho um amigo que eu tenho muitas dúvidas, mas eu acho que além dele ser deficiente auditivo, ele também tem autismo. E a gente é muito amigo e a gente se aproximou muito, justamente, por existir uma certa exclusão desde sempre na minha turma, por eu ser um pouco estranha. E, às vezes, por querer ficar no meu canto, as pessoas começam a falar das minhas costas, ela antissocial, ela é metida, ela é isso, ela é aquilo. Porque fora da faculdade, eu faço milhões de coisas no meio artístico. Então, eu sou atriz, eu sou cantora, sou bailarina. E aí, por conta disso, e dos concursos que eu cheguei a participar, ficava um monte de gente falando nas minhas costas que eu era metida e antissocial por causa disso, mas não era, porque eu gosto de ficar aqui no meu corpo, me deixa no meu canto, só isso. Mas eu falo muito quando eu quero falar e quando eu não quero falar, não tente me fazer falar, é chato pra caralho, desculpa a palavra, mas é chato. 

Eu não me sentia confortável em estar com crianças da minha idade e crianças mais velhas, então o meu refúgio era ou ficar sozinha em um canto ou ficar com a professora, ou ficar com crianças que eram muito mais novas do que eu, tipo jardim I. Porque festa de família a gente fica cuidando das crianças (risos), porque não quer ficar lá socializando com o povo. Então, eu sou assim, eu sou a babá oficial da família. Então, na hora do recreio, as minhas amigas, minhas colegas de turma iam dançar funk num parquinho, iam falar de meninos, de qualquer outra coisa e eu tava ali pulando corda, pulando amarelinha com os menininhos que eram, tipo, metade do meu tamanho, sabe? E eu me sentia mais confortável com eles, porque não tinha julgamento, não tinha olhar torto e eu sofri muito bullying durante a minha infância, até a metade do ensino médio.Foi bem complicado em relação a isso, porque as pessoas me olhavam estranho e ou eu andava com pessoas que eram bem mais novas que eu, ou eu andava com pessoas que eram três vezes mais estranhas que eu. Então, era assim. 

E as professoras, como eu tinha muita dificuldade de absorver conteúdos que não me interessavam, tipo matemática, às vezes as professoras me ajudavam a fazer as provas ou pediam pros alunos me ajudarem a fazer as provas. Então, eu era sempre a última a sair da sala, porque eu não conseguia, e eu chorava, porque eu não conseguia fazer as provas, eu não absorvia o conteúdo de jeito nenhum, porque não entra na minha cabeça, isso é até hoje, é uma coisa que eu não consegui mudar ainda. Não entra na minha cabeça o que não me interessa. Só depois que eu comecei a fazer as aulas da Ana Flávia que eu comecei a discutir em casa e mostrar pros meus pais o que eu aprendi aqui, e falava “Olha, isso aqui tá clareando, parece muito de como eu era quando eu era criança e alguns problemas que eu tenho até hoje. E aí, a minha mãe ficava assim “É, pode ser, não sei”, porque eu fui diagnosticada com depressão no semestre passado, só que isso não entrava na minha cabeça, eu ficava assim, “Será? Será que é isso mesmo? Não parece que é isso, não pode ser isso.” E eu comecei a tomar remédio sem parar, todos os remédios controlados. E eu sentia que não precisava tá fazendo aquilo. Tanto é que eu fiquei duas semanas sem tomar o remédio e eu não senti diferença nenhuma. Lá no fundo, é uma coisa que ficava sempre batucando na minha cabeça “Não é isso, cê não tem depressão, isso é outra coisa.” E, sabe, quando cê tem aquele aperto, falando, meu Deus, eu tenho que saber o que eu sou, quem eu sou, porque está tudo errado e eu tenho que entender o porquê que está tudo errado. 

E aí, eu conheci o Tiago e o Abner, que é um outro amigo nosso, que tem Síndrome de Asperger, e conversando com eles, o comportamento deles e outras coisas e foi encaixando, foi falando assim, “Epa, parece que isso me parece comigo!” Foi encaixando, encaixando, aí veio a doutora Lorena, eu conversei com a doutora Lorena, no dia que ela veio conversar com a gente na aula, e aí ela já me encaminhou pra doutora Lucena, e aí hoje teve esse diagnóstico. Tudo que eu tô falando aqui pra vocês, eu falei pra ela.

Eu já escutei três coisas de ontem pra hoje. Ontem quando eu fui falar pra professor, pra alguém da minha família, que tinha essa hipótese, que eu ia tirar as conclusões hoje. Primeiro, eu ganhei uma bolsa em Nova Iorque, recentemente, pra estudar teatro musical na Broadway, dez dias. [Ouvi] “se cê fosse autista, cê não ia ter chegado onde cê chegou, não?”

 Ouvi do meu professor de inglês ontem a mesma coisa, se você tivesse Asperger você não teria chegado aqui, você não saberia falar inglês desse jeito. Aí ele falou, aí ele virou assim, “Ó, minha filha, tenho amigos, que tem Asperger e, me desculpa a palavra, mas os aspergers  são meio lesados.” Eu apontei pra ele e falei assim: “Cê tá errado”. Aí eu dei uma aula pra ele. Aí, quando foi hoje de manhã, que eu peguei o laudo, tirei uma foto do laudo e fiz questão de mandar no Whatsapp e falei “Te falei”.

Ah, eu me senti muito feliz, muito aliviada, chorei de alegria hoje, porque eu falei assim: “Obrigada, Deus, eu não sou doida! Obrigada, Deus, eu não vou precisar ficar tomando esse remédio que tá fodendo com meu estômago. Obrigada.” 

Foi um alívio. Pra minha mãe também, por outro lado, agora ela vai ficar mais chata. Eu cheguei, eu falei assim:Mãe, eu não quero que nada mude, tá?” e ela [disse]“Agora que eu vou pegar no seu pé mesmo, mesmo. Pra começar, vai arrumar aquele quarto que tá uma bagunça.” E eu tenho mania de acumular lixo. Eu não jogo lixo de chão, eu não jogo lixo na rua, então, tipo, eu tenho três mochilas. Cada mochila, metade dela tá com o papel de altas coisas. E aí, lá em casa aparece muito sapo, rato, barata, mas é porque eu moro numa casa velha pra caramba e que tem muito mato. E aí, a minha mãe chega em mim e fala assim: “Cê tá vendo? Esses ratos, essas baratas que tá aqui, é por causa daquele chiqueiro do seu quarto. Eu falei “Não, mãe, a porta do meu quarto vive fechada, pra começo de conversa. 

Eu sempre tive muita mania de muita coisa, tipo, comida, eu não como se não tiver tudo misturado. Mas é bom ver a Letícia, né, Letícia? Hoje eu pedi, depois que eu soube do diagnóstico, é difícil entrar em contato comigo, mas aí cozinhando a Letícia me manda mensagem. Eu tô tão feliz assim. Lógico que cê não tá feliz pelo diagnóstico, mas porque ela ansiava tanto por descobrir a causa dessa depressão. E assim, hoje parece que ela está com um semblante mais aliviado, não tá? 

É engraçado, porque a gente formou os grupos, igual eu formei com vocês, ela ia ficar no grupo. Eu disse: “não, você vai ficar com o Tiago. E aí foi muito bom, porque acho que também ela se encontrou. 

Rosalina: Então, o Álvaro começou com terapia muito cedo, mas muito cedo mesmo. Com dois anos, eu já percebi que ele era muito diferente, então, a gente começou muito cedo. Eu acho que nem é bom, também. Por quê? Vocês vão perceber, por ele, ele é o menos, assim, meu filho, eu não quero te diminuir na frente de ninguém. Não é isso, não. Pelo amor de Deus, porque eu não falei isso com você e vou falar agora. Te admiro, cê sabe disso. Tudo isso. Mas ele é o menos desenvolvido na fala, em tudo isso. Aqui ele batalhou sozinho, pelo jeito ela também batalhou sozinha. Então, hoje, acabei de falar com a Ana Flávia, como é difícil educar, gente, muito difícil. Por vezes, você pensa que você tá fazendo tudo e não é. Não é que eu superprotegi também. Não, porque muito cedo eu ensinei ele a sair sozinho na rua, ele faz tudo. Agora ele anda de ônibus, ele vai pra lá e pra cá, ele sabe fazer tudo isso, ele aprendeu tudo isso. Mas ele demorou muito pra descobrir uma profissão, sabe? Então, de repente, foi assistido, assistido, assistido, talvez nem sempre é bom. Engraçado isso, a vida da gente.

Ana Flávia: Existem alguns estudos e autores que falam sobre a questão do diagnóstico também. Que ele tem o seu aspecto positivo, mas tem um aspecto muito negativo que é do do rotular, né? Da gente enquadrar…

Rosalina: Mas eu não rotulei.

Ana Flávia: Mas às vezes você não, às vezes ele entrou dentro de um sistema médico, o próprio discurso médico, o quê que ele tem que fazer? Os meninos, de repente, entraram, porque foi muito tarde a descoberta. Sempre que eu penso nesse excesso de tratamento, eu lembro muito da fala da Temple Grandin,  que as meninas viram, que ela diz: “Olha, a melhor coisa foi que Kanner descobriu o autismo, logo que eu nasci, então foi muito pouco difundido, a minha mãe não sabia nada sobre autismo. Então, ela não me criou como autismo. Ela não me criou como autista.” É algo, assim, sua leitura é interessante, é algo pra gente… 

Rosalina: Eu fui embora hoje da parte da manhã refletindo…

Ana Flávia: Ruminando, né?

Rosalina: Ruminando…Até hoje, o olfato, eu contei de manhã que ele tem dificuldade pra abrir a geladeira. Ele não passa nas sessões de frutas e verduras de supermercado, sabe? Então, eu tava vendo assim, são três, e vocês vão ver que eles são totalmente diferentes, gente. Tem coisa que bate. Ah, o bullying bate, todo mundo sofreu o bullying. O Tiago não comentou dos lixinho, mas o Álvaro era louco pra guardar uma varetinha que ele achava, um pauzinho, uma pedrinha, sabe? Até hoje, até hoje. Então, tudo isso fica lá em cima do quarto dele lá nos cantinho assim, tá? Não joga fora, não, que ele sente falta daquilo. Um dia eu rasguei umas anotações dele assim, mas rasguei, e ele catou aquilo e transformou de novo num quebra-cabeça, juntou tudo, que aquela folha era importante. Eu não vi nada que tinha ali, mas era importante. Então, tem assim umas coisas. E assim foi essas diferenças, é muito gritante, sabe? Quer dizer, a gente foi percebendo e o fato de ser sozinho, nunca brincou com nenhuma criança, podia levar no parquinho, ele não se enturmava. Na escola ele não se enturmava com criança nenhuma, sempre sozinho, sempre andando no encosto do sofá. A doutora Graci, quando eu contei, ela falou assim: “toda mãe relata isso, de crianças assim”, não sei se os meninos lembram disso, andava nessa parte aqui do sofá pra lá, pra cá, pra lá, pra cá, sem fim. Sentava no meinho da mesa, numa cadeira, subia ali, sentava no meio da mesa e ficava balançando em cima da mesa. Então, tem umas características, assim, dessa forma. 

Ana Flávia: Ô, Tiago,  é recorrente na fala de vocês essa questão do não interesse pelo outro. Aí eu perguntaria, é um não interesse pelo outro, é o não saber como fazer amizades, não saber como se relacionar? 

Tiago: Eu acho que vai mais dessa segunda questão. Existem vários mitos, bastante negativos e até bastante pesados sobre Asperger. Já ouvi falar de gente que é Asperger e que já chegaram na pessoa, já ouvi umas duas ou três pessoas relatarem a mesma coisa. Da pessoa chegar e falar assim: “Nossa, algum dia você teria coragem de chegar numa sala de aula e atirar em todo mundo, porque você tem cara de pessoa que faria alguma coisa assim.” Nesse nível. 

Então, assim, nós não odiamos pessoas, a gente só projeta a nossa dificuldade como uma negatividade dos neurotípicos. Os Aspies, em geral, eu vejo eles criticando muito os neurotípicos, mas muito mais, não pelos neurotípicos serem errados, mas muito mais por não ter dentro desse processo de comunicação, uma reciprocidade, porque você simplesmente falar ou você simplesmente expressar uma ideia sem você ter uma troca de ideias, não é a comunicação, não é um diálogo, né? É um negócio muito unilateral e não de troca. 

Ana Flávia: É, eu acho, assim, a gente precisa pensar na questão do que é normal e do que é anormal. O que que a gente considera, porque tem certos comportamentos que eu acho que eticamente são muito mais aceitáveis do que os comportamentos que a gente tem. Por exemplo, o Tiago hoje contou uma história interessante do trabalho, né, Tiago, se você quiser repetir, que eu achei bem interessante, a questão da verdade, do não mentir.

Tiago: É, eu já trabalhei em alguns lugares, e a minha experiência profissional mais negativa foi numa loja de TI, que eu trabalhei durante duas semanas, quando eu fui demitido, em duas semanas. Eu tinha um chefe que tava cheio de problemas, ele tinha acabado de ter um filho, a mulher dele tava na UTI, a criança tava na UTI e o trabalho dele totalmente atrasando, e eu era funcionário novo, então ele me colocava pra atender os telefones, e eu tenho pavor de telefone. Assim, acontecia, por exemplo, de às vezes um cliente ligar procurando por ele pra saber de um serviço atrasado e aí ele falava de longe: “Não fala que eu tô aqui, fala que eu não estou, pra ligar depois.” E eu ia lá e entregava o telefone pra ele, porque eu não dava conta de lidar com aquilo. 

(Risos)

E aí foram somatizando uma série de coisas, alguns erros também que eu cometi no trabalho, tecnicamente. E aí, no dia seguinte, eu tive o meu colega de trabalho, que ele era do mesmo nível que o meu, chegou com o dinheiro e falou assim: “Olha, o chefe te demitiu, outro dia você vem e busca as suas coisas. Eu achei um livro muito interessante, que é chamado Manual de sobrevivência Asperger, que ele é muito facilmente achável na web, que fala de questões muito pequenas. Porque assim, qual é uma das grandes características do sujeito, da pessoa que tem Síndrome de Asperger? Os neurotípicos, as pessoas comuns, elas aprendem certas questões dos códigos sociais de forma natural, como se fosse osmose, sabe? Você observa e você aprende aquilo, você não sabe nem porque você aprende, e nós não. Nós precisamos ter uma reflexão diante daquilo, para aquilo fazer sentido e fazer parte da nossa vida. 

E às vezes, até a nossa própria forma de lidar com essa informação, é uma forma estereotipada, é uma forma que você vê que não há tanta naturalidade. Então, esse livro, e algumas outras coisas que eu li, foram me fazendo pensar em várias coisas que aconteceram na minha vida, eu pensei: “Nossa, em tal momento eu fiz essa merda aqui e nesse outro momento eu poderia ter agido dessa forma diferente.” Então, eu comecei a ter uma autocrítica bastante extensa com essas novas pessoas com quem eu estava lidando, e ao mesmo tempo essas pessoas que estavam lidando comigo eram muito assertivas. Então, elas acompanharam esse processo do diagnóstico e eles acabaram virando meus amigos e, assim, já tem quatro anos, fez agora em abril, quatro anos que eu conheci eles, eles continuam na minha vida, a gente continua saindo, mesmo cada um seguindo a sua vida, estão fazendo alguns cursos aqui na universidade. São três pessoas, é um número bastante limitado, mas são três pessoas que permaneceram, o que já vale muito a pena. 

Letícia: Eu sempre tive muita dificuldade em saber quem realmente tava ali comigo porque gostava de mim ou quem tava ali por falsidade, ou outras coisas. Então, quando eu fiquei sabendo quem eram as pessoas que estavam falando isso de mim, eu fiquei muito triste, porque eram pessoas que falavam comigo normalmente, como se eu fosse uma pessoa super legal pra elas, me cumprimentavam sempre, então nunca ia passar pela minha cabeça que dentro da cabeça delas, elas estavam pensando assim.

Porque às vezes eu não quero abraço, eu não quero conversar, então eu chego mesmo na pessoa falo: “hoje não”. Ou dentro do ônibus mesmo, eu boto fone de ouvido, finjo que eu tô dormindo, porque eu sei que vai ter gente que eu conheço lá dentro, mas eu não quero falar com ninguém. Então, se eu fico ali, sabe? Aí, às vezes, a pessoa chega e fala assim, “Nossa, cê passou por mim, nem falou nada”, era porque eu não queria, mas não é metidez, nem essas coisas. Mas, assim, eu acho que eu aprendi a lidar de uma certa forma com isso, por desde pequena estar sendo rotulada de alguma forma. Então, eu era estranha, eu caía muito e eu andava torto. Então, chamavam de curupira, porque ruiva das pernas tortas, andava torta, era curupira. Então, eu escutava que eu era esquisita, que eu não tinha a preocupação que as meninas, na minha idade, até segunda, terceira, quarta série, as meninas gostavam muito de sempre andar arrumadas, com batonzão na boca, maquiada, cabelinho tudo arrumado. E eu tinha uns cachos que ia até a bunda assim, e eu gostava daqueles cachos e ficava com uns cachão assim, não gostava de maquiagem, porque eu achava que chamava atenção demais. E aí, eu via aquelas meninas daquele jeito, eu ficava assim: “pra que isso, gente?” E aí, eu era sempre a desleixada, feia, esquisita, porque eu não ficava daquele jeito. E aí, eu fui me sentindo muito pra baixo, chegava em casa chorando quase sempre. Então, uma criança de oito, nove anos, até os meus dez anos foi assim, que chegava em casa sempre chorando, os meus pais culpavam muito a escola, achavam que o problema era os professores, que não viam, que não sabiam lidar com a situação, e eu falava que não, que as professoras eram as únicas pessoas ali que realmente eu conseguia gostar, eu odiava todo mundo na minha sala.

Por isso que eu preferia brincar com as crianças, porque pra mim eles eram doido, era todo mundo doido. Era todo mundo. 

Ana Flávia: E como é que isso é na Universidade? Como é esse relacionamento social na universidade pra você, pro Tiago?

Letícia: Então, como eu faço artes cênicas, o povo lá já não bate muito bem da cabeça. Então, eles são muito de boas, assim, só que acabou que, antes de eu receber o diagnóstico, eu comecei a me envolver com umas coisas que eu prometi, jurava de pé junto que eu nunca ia me envolver, que era tipo fumar, experimentar maconha, beber muito, essas coisas, mas que de uma certa forma eu encontrei um refúgio nelas, porque quando eu bebia, quando eu ia pra boate, por exemplo, eu saia, eu falava assim: “Nossa, entrei na faculdade, agora eu nunca na boate da vida, que que eu vou fazer?” 

O povo vai me chamar, na UFG morreu alguém tem festa. Então, e agora? Que que eu vou fazer? Porque eu não sou de ficar indo nesses lugares. Primeiro porque eu fico lá, aí o povo tava tudo dançando, tudo louco, eu tô lá assim. E é uma pegação e é um que quatro de uma vez, eu fico aqui. “Quê que é isso, gente?” Eu não vejo lógica. A pessoa pega quatro de uma vez. Se eu não senti uma química, se eu não olhar pra pessoa, eu não consigo. Podem falar “não, sua boba, é só um beijo.” Não, não é só um beijo, é troca de energia ali. A cara dessa pessoa vai ficar na minha cabeça pro resto da vida. Então, a minha maior dificuldade na faculdade foi por isso, porque como eu sempre me envolvi muito com criança, agora, eu estaria me envolvendo com pessoas da minha idade e pessoas mais velhas do que eu,e aí eu falei “fodeu”. 

Porque vou ter que sair… E aí quando eu bebia, ou quando eu fumava maconha, essas coisas, parecia que eu era outra pessoa, que nem quando eu tô no teatro. Quando eu tô no palco, inclusive, a minha psiquiatra falou que o teatro ajudou muito a camuflar e a desenvolver, porque eu faço teatro desde os meus catorze anos, mas todas as escolas que eu estudei tinha aula de teatro, como uma materiazinha, porque tinha que ter artes. 

Então, eu sempre fiz teatro desde pequena, isso me ajudou muito. Sempre que eu saía com a galera da faculdade, eu tinha que beber, porque se eu não bebesse, eu era a primeira a querer ir embora. Primeiro que eu não suporto o barulho de boate, aquele som… 

Tiago: Eu preciso contar um pouco dessa questão de festas e etc. Os meus amigos que vieram da época do trabalho entraram na UFG, e eles me empurraram pros eventos. Só que, assim, eu era uma espécie de motorista deles. Então, eu chegava lá e eu não podia beber, porque eu tava dirigindo primeiro e eu ficava meio como tutor deles, porque eu sou mais velho que eles um ano. Então, assim, eu tenho vinte e dois, tem um que tem vinte e um, tem outro que tem dezenove, tem outro que tem vinte, o pessoal é um pouco mais novo que eu. Então eu fico nessa responsabilidade porque sou mais velho, se acontecer uma merda, sou eu que pago o pato. E é engraçado, porque eu já vi relatos de outros aspies que em festas costumam beber pra se soltar e pra criar um um contato maior.

Tem uma das pessoas lá do, depois eu vou falar do grupo Saudavelmente, que toda vez que ele vai pra um evento social ele costuma beber pra ele não se sentir tão estranho. E foi o que aconteceu comigo numa interação romântica que eu tive recentemente. Eu tava conversando com a pessoa do Tinder, a pessoa me convidou pra se ver no DCE e aí a pessoa falou: “Você bebe?” Eu falei “Não, mas eu topo.” Porque a pessoa com quem eu tava conversando tinha níveis altos de ansiedade. E a pessoa sabia também que eu tinha níveis altos de ansiedade. O que aconteceu? A gente bebeu pra gente se soltar e conversar. E aí a coisa funcionou. Funcionou. Eu bebi, fiquei relaxado e deu certo. Basicamente. 

Ana Flávia: E tá dando certo?

Tiago: Sim, tá dando certo. Bebida é um ansiolítico muito eficiente, né? Pena que tem efeitos colaterais terríveis, mas… 

(risos)

Ana Flávia: E no namoro, qual você acha, Tiago, que é a maior dificuldade de uma pessoa com Asperger em relação ao relacionamento?

Tiago: É, eu acho que se a amizade já tem um nível bastante complexo de você entender as minúcias sociais, no relacionamento isso potencializado em uma escala exponencial. Então, é você flertar, imagina isso pessoalmente, é um negócio muito complicado. 

Letícia: A minha vida é um livro aberto, tá todo mundo sabe da minha vida. Porque eu sempre tive mania de exposição, por não conseguir me relacionar pessoalmente, eu usava as redes sociais. Então, eu tenho blog, eu tinha tudo que cês sonharem. Quando eu tinha Orkut, eu já tinha Facebook, eu já tinha tudo. E eu postava a minha vida inteira, tudo o que eu sentia que eu precisava falar, eu jogava lá. Pra falar pra uma pessoa mesmo, entalava e eu não conseguia. Então, isso sempre me dificultou muito em questão de relacionamentos de namoro. Eu também tinha a mesma coisa você de ser meio contraída, eu perdi minha virgindade eu tinha vinte anos, porque eu falava que eu ia perder só depois do casamento, porque eu achava que se a pessoa casar comigo, é porque ela me aceita do jeito que eu sou, ela sabe todos os meus TOCs, as minhas manias, minhas neuroses. Então, vai ser essa pessoa. Mas aí, acaba que eu achei uma pessoa que me aceitava e tudo, não casei com ela, mas aí eu perdi a virgindade com essa pessoa, eu tinha vinte anos. Mas meus pais também sempre foram muito tradicionais, meu pai, no caso, meu padrasto, é católico, a minha mãe é espírita. Então, eu cresci escutando que eu tinha mediunidade, porque eu sempre tive muita sensibilidade com a audição e quando eu era pequena, eu falava que eu ouvia voz, que eu ouvia chiado, que eu via umas coisas, e que eu não sabia o que era. Então, eu cheguei a escutar do meu próprio pai que ele ia me internar, uma criança de sete anos, escutar isso do pai, que ia ser internada por causa dessas coisas. 

Eu sempre tive tudo muito aflorado, tudo muito intenso. Então, pra mim, sempre era tudo muito mais. Então, quando eu tava feliz, eu tava muito feliz, extremamente. Então, eu saio pulando, rodando, balançando, já sacudindo e gritando. E quando eu tava com muita raiva, eu batia nas coisas, batia no meu pai, eu não batia na minha mãe, porque eu sabia que eu batesse nela, ela ia me bater, que nem eu tava falando com a professora, mas o meu pai deixava também, né? Não posso fazer nada. (risos)

Aí eu dava uns tapas nele, socava, já chutava ele. Várias vezes, várias vezes. Sabe aqueles menino birrento que cês vê aí nos vídeos, no Facebook, dando piti de supermercado? Eu era assim. Quando eu queria uma coisa, eu queria aquela coisa e eu tinha que ter aquela coisa e eu queria ter aquela coisa de qualquer jeito. Já roubei chocolate no supermercado, porque eu sabia que meu pai não ia me dar e eu falei: “Eu quero esse chocolate. Então, beleza, eu vou ficar aqui, eu vou pegar de novo.” 

Álvaro: O meu terapeuta um dia chegou pra minha mãe e falou: “Como na sua família o Álvaro é o caçula, ele tem muita chance de só se interessar por mulheres mais velhas. E sempre fui assim, minha mãe sabe, né, mãe? Só me interesso por mulheres mais velhas, já me apaixonei por professoras e elas desconfiaram. Chegou um dia que uma delas desconfiou. E eu nunca mais me esqueço disso, até hoje eu lembro disso direto. Apaixonava mesmo, por médicas que eu já tive, por vizinhas que era vinte anos mais velhas que eu, chorava por causa delas, passava mal. Tinha dias que eu escrevia cartas pra elas, mas eu falava, “eu não vou mandar, porque senão o marido vai achar ruim. Se não vai causar rolo pra mim.” Isso aconteceu já demais comigo. 

(Risos)

Ana Flávia: Então cê tinha noção…

Álvaro: É, eu tinha noção que ia causar rolo pro meu lado. Eu entendo que paixão, igual eu falava sempre pra minha mãe, olha, paixão é uma coisa muito sofrida, tanto que a etimologia da palavra paixão é sofrimento. Fiquei sabendo disso há pouco tempo e é mesmo. E olha que mesmo que eu tenha me interessado só por mulheres mais velhas, minha mãe um dia chegou pra mim e falou: “Álvaro, as mulheres não querem homens da sua idade, elas só querem homens mais velhos.” 

No dia que eu descobri isso, achei isso um saco. 

(Risos)

Ana Flávia: Nossa. Uau. (Risos)

Álvaro: Fiquei triste, me deprimiu muito. E olha que tinha dias que eu só ficava pensando nela, sabe? Só olhava foto delas no Face o tempo todo, 24 horas. Uma de cada vez, só que acabava uma, vinha outra.

(Rumores da Plateia)

Ana Flávia: Ele era fiel, viu, Naiara. 

Álvaro: Já me relacionei só com uma, que ela era quatro anos mais velha do que eu, ficamos juntos quase um ano, daí a gente terminou por conta de cabeças muito opostas, sabe? Mas hoje a gente tem amizade, a amizade não acabou e eu pretendo um dia ter minha esposa, ter meus filhos. Minha mãe gosta de saber disso, que eu vou criar um bom futuro, isso é ótimo demais. 

Quando eu tinha dezesseis anos, eu cheguei pro meu terapeuta e falei: “Como eu tenho essa minha síndrome, você acha que eu posso ter filhos?” Ele [disse]: “Não. É mais aconselhável que você não tenha.” Ele falou desse jeito pra mim. Na hora eu fiquei triste, mas depois eu vi que essa barreira eu vou quebrar.

(Aplausos e vivas da plateia)

Vou te dizer um negócio. Quando eu era mais novo, eu falei pra minha mãe: “Mãe, beber cerveja não faz mal?” E ela [disse] “Faz, só que esporadicamente não.” Daí, eu resolvi cheirar, achei péssimo o cheiro. Hoje, eu com vinte anos de idade, se eu for por uma cerveja na boca, eu cuspo, detesto. Cerveja, vodca, pinga, não gosto nem do cheiro. Sorte a minha, porque tem gente da minha idade, gente mais nova que eu, que eu vejo que cai de tanto beber. Muito melhor eu ser assim, eu detestar essas coisas, do que eu ficar bebendo e ser um alcoólatra. Não gosto, sinceramente, de bebida alcoólica, de jeito nenhum. 

Sou contra bebida alcoólica, cigarro, maconha, qualquer tipo de droga, eu falo que sou antidrogas. 

Ana Flávia: Tá vendo, né, Letícia?

(Risos)

Letícia: É, ele formado em PROERD.

Ana Flávia: Formado em quê? 

Letícia: PROERD, é um programa da Polícia Militar que forma as pessoas contra as drogas.

Tiago: Só uma observação, a primeira vez que eu bebi bebida alcoólica foi na semana passada, foi aquela situação… (risos). Nunca é tarde.

Álvaro: Tem muita gente que acha que eu tenho doença. Tem gente que fala: “Álvaro, qual é o nome da doença que você tem?”, e eu falo “Não é doença isso, você acha que é, mas não é, é uma síndrome.” Muita gente acha que síndrome é doença, mas não é. Síndrome significa conjunto de sinais. 

Tiago: Um dos termos populares geralmente atribuídos à Síndrome de Asperger é chamada Síndrome do Sr. Spock. O Spock é um dos principais personagens do universo de Star Trek. Ele é um vulcano, ele tem uma origem estrangeira, e ele é um personagem extremamente lógico. Ele tem um lado humano, mas ele suprime o lado emocional humano, porque ele não consegue lidar com esse emaranhado de emoções, de entendê-las, e ele prende-se ao aspecto racional. E aí muito dessas características dele é associado à Síndrome de Asperger, porque o aspie muitas vezes não sabe definir o que ele tá sentindo, sabe? 

Então, por exemplo, eu já tive uma terapeuta que conversou comigo e com outras pessoas, perguntando assim: “O que vocês sentem quando vocês têm ansiedade?” Aí um dos nossos colegas falou assim: “Olha, ansiedade é um processo físico que ocorre no corpo que funciona sobre tais mecanismos…” E ela falou: “Não foi isso que eu perguntei, eu perguntei o que vocês sentem.” E todo mundo se calou, ninguém sabia responder o quê que a gente sentia. Aí ela falava dor de barriga, coração palpitando, são detalhes simples, mas vocês não conseguem ainda verbalizar essas sensações. Então, lidar com emoções é um aspecto bastante complexo para os aspies, eu acho no geral. 

Olha, um dos meus melhores amigos, na verdade, o meu melhor amigo, eu brigava muito com ele por causa de horário. Então, me dava carona pra universidade, porque era caminho pro campus dois, então ele passava em casa e da minha casa a gente ia. E aí às vezes ele atrasava e a gente brigava direto, por causa disso, sabe? A ponto de ele ter que ter mudado algumas vezes, só que ele era muito inflexível também, mas a gente sempre teve transparência um com o outro, sim. Então, na hora que eu tava puto, eu soltava os cachorros, ele soltava os cachorros também em cima de mim, e a gente resolvia. 

Letícia: Eu também tenho problema com horários, mas na questão de assim, se a pessoa fala “te encontro oito horas”, eu chego lá sete e meia. Se der oito horas a pessoa não tiver chegado, já começo a mandar mensagem, “cadê você? Cadê você?” Aí dá oito e quinze, “cadê você?” Se a pessoa não vai, aí eu fico puta pra caralho, fico muito puta, mas eu odeio esperar, eu odeio esperar. Então, às vezes eu posso nem chegar às sete e meia, eu posso chegar oito horas em ponto, mas se a pessoa me fizer esperar chegar oito e meia, nove horas, [eu] falo assim, “uai, não era oito?” E aí, eu jogo na cara mesmo.

E eu também, eu não suporto isso que, igual eu tava falando, quando a pessoa não avisa que não vai poder, ou avisa, tipo, muito em cima da hora. Tipo, cê já tá pronto, cê fala, nossa, hoje eu vou no parque, eu amo ir no parque, porque parque e cinema pra mim são duas coisas que, se for me tirar de casa, que é muito difícil de acontecer, eu vou pra pro cinema. E aí, eu já tô toda pronta lá, já tô com a carteirinha do ônibus, vou sair, já aviso os meus pais, e às vezes meus pais vão pra casa dos meus avós, vão fazer qualquer outro programa e eu fico só pra poder sair com com os meus amigos e tal. E aí, começa todo mundo a furar. Fala, ah, não vou poder, não sei o que. Antes, com a minha cara, né? Já teve vez que eu fui sozinha, de birra, de raiva mesmo, eu falei assim, não, eu me programei todinha pra isso, eu não vou cortar isso, porque eu não sei pra vocês como que é rotina, por exemplo. 

Eu tenho uma dificuldade muito grande com mudança. Até eu me adaptar a uma nova rotina, nossa, isso me deu problema do ano passado pra cá, porque ano passado eu tava trabalhando, eu tava com cinco espetáculos. Então, eu tava numa rotina de ensaio muito, muito, muito grande. Então, era todo dia, ensaio, ensaio, ensaio. E aí, quando foi esse semestre, eu não peguei espetáculo nenhum, aí foi tipo, pum! Depressão. Porque eu fiquei isolada, eu ficava só dentro do quarto e meu corpo sentiu, minha mente sentiu. Era uma nova rotina, porque é só de casa pra faculdade, da faculdade pra casa, o quê que eu ia fazer? 

Aí comecei a encontrar coisas novas que me relaxavam, que não me deixavam surtar, tipo pintar. Eu descobri que eu sou muito boa pra pintar, pintando. Falei que a minha psicóloga tinha falado pra eu tentar encontrar uma coisa nova, que não fosse o teatro, que eu pudesse fazer em casa, pra tá suprindo a falta desses ensaios e tals. E aí eu comecei a pintar, pra canalizar isso, né? 

Em questão de amizade, eu tenho poucos, poucas pessoas que eu falo que são meus amigos mesmo, porque são pessoas que já tão acostumadas com os meus surdos, com as minhas manias, com os meus tiques, os meus TOCs, e que eu sei que eu posso contar, e que não me olham com olho de julgamento. Eu conto nos dedos essas pessoas. Elas não conhecem praticamente nada de autismo, de Asperger, eu vou ter que dar uma aula mesmo. 

Hoje, eu liguei pro meu melhor amigo, porque eu mandei a foto do laudo pra ele, porque eu já tava com essa suspeita e eu conversava muito com ele sobre essa suspeita e aí ele falava assim: “Ah, mas cê não parece, cê é muito bonita pra isso.” Ah, essa era a terceira coisa que eu falei que eu tinha escutado. É muito bonita pra ser autista. Ah, eu ficava, assim, não, não tem nada a ver, né, querido? Aí hoje eu fui falar pra ele, e ele falou: “Não, beleza, você tá com isso daí. E agora, como é que cê vai resolver?” Aí, eu falei assim: “Então, pra começo de conversa eu não tô, né? Eu sou assim, eu nasci assim. Aí ele: “Não, mas por quê? Aí, tipo, como é que eu vou te responder isso? Então, primeiro que é genético, então, provavelmente tá na família, provavelmente é do meu pai. Então, como eu fui recém diagnosticada, eu não posso falar muita coisa pra vocês em relação a isso, porque pouca gente sabe, né? Também não tive tempo de te contar. A minha mãe virou pra mim: “Não precisa sair espalhando pra todo mundo”, mas eu já penso o contrário. É porque eu sempre tive, uma das minhas manias, é de me justificar. Que nem os meninos tavam falando do porquê, que pra gente tem que ter um motivo, tem que ter um porquê, eu sempre fui assim. Então, se tem uma coisa que sempre me irritava, que fazia eu brigar com os meus pais direto, era o “porque sim” o “porque não”. Se cê chegar, por que isso? Não sei, porque sim, E eu: “como assim? Porque sim, por quê? Eu quero saber o porquê, entendeu? Conversa comigo. Já teve uma vez que eu cheguei assim, a minha mãe perguntando “qual é o seu problema?” Eu falei “vocês não conversam comigo.” Eu até tava falando pra doutora Lucena que eles não me ajudam nessa questão de socializar, porque os meus pais são muito antissociais. Então, o meu padrasto, por exemplo, a socialização que ele tem, ele é professor, a socialização que ele tem é só da escola, as pessoas da escola e as pessoas da família, ele nunca se propõe a ir além, a gente sempre morou em prédio, agora que a gente tá morando em casa e eles nunca iam nas festas que a gente era chamado, porque a gente tinha aquela coisa assim, era festa de criança, aí às vezes a criança não tinha muito amigo, aí a mãe chamava todas as crianças do prédio pra ir na festinha do filho, aí a gente ia e eles falavam “Não, se cês quiser, cês vão sozinhos.” Aí ia eu e a minha irmã. E eu super antissocial, ia lá, daí eu gostava de ficar com os pequenininhos correndo, igual uma louca. Já chegou mãe na minha mãe falando assim: “Como é que você lida com a sua filha desse tamanho, correndo pra lá e pra cá?” Porque direto chegava reclamação pra síndica que a gente tava fazendo barulho, que tava fazendo bagunça, que tava quebrando as coisas aí embaixo e aí chegava eu era a única mais velha, né? 

Então a responsabilidade sempre caía em cima de mim. Isso é, por um lado, eu achava ótimo, que eu me sentia adulta. Por outro lado, eu achava péssimo, porque o pirralho lá fazia bagunça, eu que levava a culpa. E aí, eu falava, “não, mas foi ele, mas foi ele”, eles iam acreditar na criança. 

Outro problema que eu tenho em relação a como as pessoas me veem, é em relação a ser muito sincera também. Porque já arranjei muito briga com isso, principalmente com namorado, namorada de ex-namorado, porque as meninas vinha falar comigo e aí eu falava a verdade. “Não, foi seu bichinho aí que tá me procurando, é ele que tá mandando mensagem”, e elas não acreditavam em mim. Eu falava “Não, eu não minto”, e aí ela “Que mentira.” 

Eu tenho uma amiga que ela é muito minha amiga, que ela tomou ranço de tanto eu falar que eu não mentia, pra ela confiar em mim, eu vivi virando pra ela e falava assim “não, quem cê vai acreditar? Em mim, que você sabe que eu não consigo mentir, ou no filho da mãe que tá te enganando, te iludindo?” Aí, ela tinha ranço de eu falar isso. Aí, hoje eu fui falar pra ela, do laudo, aí ela mandou um textão pedindo desculpa de todas as vezes que ela me tratou de olho torto, sabe? Por causa dessas coisas e tal, porque realmente, mentir pra mim é muito complicado, eu faço a mesma coisa que você. 

De vez em quando a minha mãe vira pra mim e fala assim, “não, fala pro seu pai que isso aqui, isso aqui…” eu falei, “não, se cê quiser, você fala.” Já teve vezes que eu tive que faltar aula e aí eu não conseguia mentir pros professores falando que eu ia, Às vezes eu ia viajar, às vezes eu ia pra uma festa que era no horário da aula, e eu não conseguia mentir pros professores, tipo, eu tô com dor de barriga, eu não sei o que, então, eu pedia pra minha mãe mandar mensagem pro professor, pelo celular dela. E ela fazia e falava, “não, aqui é a mãe da Letícia”. Isso já aconteceu várias vezes, várias vezes, porque eu não consigo. Eu sou muito aberta com a minha mãe, muito assim. 

Quando os meus pais separaram, eu era muito pequena, a minha mãe foi mãe e pai por uns quatro anos. E aí ela conheceu meu padastro, resolveu juntar com ele. E aí logo ela já ficou grávida da minha irmã. Então, eu sempre fui muito apegada a ela. 

Eu não consigo mentir de jeito nenhum e nem esconder nada da minha mãe. Do meu padrasto eu já escondo mais coisa. Mas eu prefiro esconder do que mentir. Então se eu tiver que mentir pra ele, eu falo “Mãe, você faz isso, porque cê faz isso muito bem.” Eu não consigo. 

Várias vezes eu dormi com ela, cantava pra mim e eu dormia agarrada nela. E aí, eu cresci com isso, também, de dormir agarrada em alguma coisa, como se fosse minha mãe. É um jeito que eu me sinto segura de dormir. Eu tenho um coelho de pelúcia, tem muita gente que zoa com a minha cara quando vai na minha casa e vê que tem urso de pelúcia na minha cama e eu falo que eu durmo com esse urso de pelúcia. Tipo assim, você vai fazer 23 anos e cê dorme com ursinho de pelúcia. Eu durmo com ursinho de pelúcia, tem algum problema com isso? Agora, em relação ao meu padrasto, eu demorei a pegar confiança, eu fui começar a olhar no olho dele depois de grande já, na adolescência mesmo, porque quando eu era criança eu não conseguia. E eu não tinha essa intimidade, eu não conseguia ter essa aproximação. Ele tá com a gente já vai fazer uns vinte anos. Mas eu sempre tive dificuldade de ter um contato físico com ele, não sei dizer exatamente o porquê. Mas eu demorei muito mesmo pra pegar confiança nele. A minha mãe reclama de mim, porque eu sou muito grudenta nela, no caso. E na minha irmã também, a Giovana. 

Se a pessoa der uma abertura pra mim, aí sim, só que aí ela vai ter que aguentar, porque eu sou oito ou oitenta, ou eu sou extremamente carinhosa, intensa, chata, grudenta, um chiclete, ou eu nem olho na sua cara, sou muito assim. Isso é um dos motivos, também, que eu já tive muito problema em relacionamento, porque eu era muito grudenta. Então quando eu apaixono, como eu tava falando, eu apaixono. E desilusão pra mim é o fim, é um terremoto na minha vida. Fico uma semana sem comer. É o Apocalipse. Sério, é muito tenso. E olha que eu demoro a conseguir confiar numa pessoa e me entregar e tal. Isso em em tudo, isso não é só em relacionamento amoroso, isso é em tudo, tanto na amizade, quanto na família, eu tenho uma tia, que é psicóloga, mas como eu sempre tive essa dificuldade de ter contato com pessoas mais velhas, assim, incluindo os meus tios, eu nunca tinha sido de conversar muito com ela, só que quando eu tinha dezessete anos, eu comecei a ter uns surtos psicóticos. E aí, os meus pais ficaram preocupados e mandaram eu conversar com ela. E foi através dessas conversas que eu fui pegando confiança e tal, daí hoje ela é uma das minhas tias preferidas, ela entende a questão de eu não olhar no olho, de eu não conversar com ela olhando no olho, ela entende como tem festa de família, eu fico enfiada no quarto com as crianças ou eu fico lá no celular, senão eu tenho que sentar ali, tomar umas cervejinhas, porque se não, não sai. 

Ela já entende melhor. Eu não sei como vai ser daqui pra frente porque eu tenho muito, eu tô com muito medo em relação a isso. 

Só ia perguntar pros meninos se vocês também têm alguma dificuldade em relação a dormir, cês tem alguma mania, porque eu sempre tive, desde pequena, quando eu era pequenininha, eu tinha mania de enrolar a calcinha, eu ficava passando o dedo na calcinha e mordendo o lábio e eu só dormia assim. E aí, depois que eu passei a trocar isso, porque a minha mãe passava casca de cavalo na minha unha, porque eu ficava assim, aí depois eu botava na boca…

Álvaro: Assim, de manias na hora de dormir, hoje a única mania que eu tenho, igual muita gente fala, fico pensando em N coisas, meia hora antes do sono chegar, fico lá deitado, pensando como que vai ser o dia de amanhã, como teria sido o dia de ontem, sofrendo o que já passou e com quem ainda não chegou. Ah, eu costumo ter muito isso, mas logo quando o sono chega já. Durmo e pronto. Hoje eu não tenho essa dificuldade, mas na hora que eu vou dormir eu costumo ter sempre que beber água, se eu não beber água antes de dormir eu acho que o sono não vai chegar, bebo bastante água. 

Tiago: Eu tenho uma relação bastante complexa com questão de sono. Quando eu era pequeno, desde pequeno, o que minha mãe viu que me deixava muito calmo era chupar o dedo. Então, desde bebê, eu chupava muito dedo e minha mãe ficava preocupada se isso não alteraria alguma coisa na questão dos dentes. E não alterou. É, no meu caso, não. Mas aí, quando eu tinha até uns sete anos, minha mãe começou a brigar, reclamando, sabe? Que eu chupava o dedo pra conseguir dormi tudo mais. Eu tinha um apego com o travesseiro, que eu andava com o travesseiro o dia inteiro, pra tudo quanto era lugar. Mas, o meu sono era muito correto. Então, eu tinha horário pra dormir, eu tinha horário pra acordar e tudo mais. Quando eu cheguei à adolescência, e agora à idade adulta, meu sono tá muito ruim. Por exemplo falou, eu tô tendo insônia todas as noites, eu chego a deitar, por exemplo, eu tenho até um horário bastante rígido pra dormir, quando é dez horas eu já tô indo deitar, mas quando dá três horas da madrugada eu acordo, eu não consigo mais dormir, basicamente. E eu tenho uma sensibilidade muito grande ao calor, eu acho que está muito associado à ansiedade, porque eu tenho uma questão muito forte com o suor. Inclusive eu vim de blusa só por questão de estética mesmo, eu vim com pressa, então assim, me até me desculpem assim, um jeito meio largado, eu tava em casa, eu vim correndo pra cá e tudo mais. Aí, digamos assim, eu só consigo dormir debaixo do ar condicionado, com 22ºC, 21ºC, e aí consigo ficar agradável, às vezes eu ainda fico com calor nessas condições. Então, quando eu vim pra Goiânia, até hoje eu sofro muito no clima daqui da cidade. 

Álvaro: Perante o que ela acabou de perguntar, como que eu me dou devido à religião. Eu sou afastado de religião, não sou uma pessoa que sigo uma e me sinto bem assim, tem gente que me fala ”nossa, você não segue nenhuma religião, isso não é bom, você vai sofrer muito por causa disso.” E eu falo que eu não sinto isso. Quando eu seguia religião, eu não me sentia muito bem, depois cheguei pra minha mãe e falei que eu não gosto mais de seguir e ela, tudo bem, não tem problema. Eu falei, ah, que bom, achei que você ia se importar. E tem gente também que acha que só porque não segue religião, fala que a pessoa é do mal. Mas não tem nada a ver. A gente é do mal? Não é falta de conhecimento. Desde que não faça nada errado, igual eu falo, se a pessoa for espírita, evangélica, católica, ateia, laica, seja o que for, tiver um coração bom, já tá ótimo, eu aceito qualquer um, igual eu falo, eu não sigo religião, mas quem seguir, não vou discriminar, não vou desrespeitar, vou aceitar a pessoa do mesmo jeito, não vai fazer diferença nenhuma na minha vida. Eu penso assim. 

Letícia: Eu pego a fala dos meninos como a minha também, não tenho religião. Na verdade, eu falo que a minha única religião é o amor, porque eu acho que onde tem amor, se a gente se respeita, cada um tem que respeitar o espaço do outro. Então, eu não importo qual religião você segue, desde que você respeite a minha opinião, desde que você respeite a minha individualidade, que nem os meninos estavam falando. 

É os motivos também pra eu me sentir um pouco retraído em relação à minha família, porque eu tenho mais contato com a família do meu padrasto do que com a família da minha mãe, que a família da minha mãe mora em Aparecida de Goiânia, a família do meu padrasto mora aqui. Então, é mais perto, é mais fácil de tá indo lá. Só que eles são católicos muito tradicionais, então é aquela coisa que você é criado pra casar, ter filho e morrer. E eu sempre pensei um pouco diferente, fui batizada, fiz catequese, fiz primeira comunhão, fiz crisma e aí, quando eu crismei, eu falei, beleza, já fiz tudo que cês queriam. Agora, eu posso seguir a minha vida, né? Foi desse jeito. E também porque falavam que eu tinha mediunidade, que esse que o meu estado, era por isso, as minhas sensibilidades, porque eu sempre fui muito sensível em relação a muitas coisas. Quase tudo na minha vida, na verdade. E aí eu fui procurar o Centro Espírita pra ver se eu conseguia me encaixar lá, porque no Catolicismo eu não me encaixava. No protestantismo muito menos. E da família da minha mãe, só minha mãe é espírita, a família dela é protestante.

E aí eu fui e eu consegui me encaixar de uma certa forma, mas ainda me sentia muito limitada lá dentro, porque eles pensavam de um jeito, falavam muitas, muitas coisas que eu achava que era um pouco mais mente aberta do que as outras religiões, mas que eu ainda achava que tava muito fechado ali. E na minha cabeça vai muito mais além do que todas as religiões falam. Então o universo é grande demais pra ser feito só pra gente, eu acho que, na minha opinião, se tem um ser superior que criou tudo isso, ele não ia criar isso tudo só pra nós, meros mortais. É o que eu acredito, e foi um dos motivos pra eu ter parado de ir na igreja, nunca gostei, na verdade, porque o padre sempre vinha com o mesmo discurso. Eu falava, “querida, eu já decorei quase a Bíblia inteira, eu já sei dessa história, muda o disco, por favor.” Então, assim, eu não suportava ir na igreja e sempre ouvia a mesma ladainha, mesmo, e aí teve uma vez que o padre mudou o discurso dele, mas aí começou a falar de política e só falar de política, aí eu falei, “não, também tá errado.” Então, não dá. E aí, eu parei de ir na igreja, os meus pais antes me obrigavam, era uma luta mesmo de eu chorar, me deixar de castigo, sem celular, porque eu não queria ir. Mas aí chegou uma certa fase, os meus dezoito anos, que eu já tinha “direito a escolha”, na minha casa. E aí, eles pararam de me chamar pra ir pra igreja católica. 

E aí, abriu um centro espírita perto da minha casa e quando eu comecei a ir no centro eu comecei a fazer trabalho de caridade e eu gostei pra caramba, isso me fazia me sentir útil e especial, eu sempre gostei muito de ajudar as pessoas, desde sempre, desde pequena. E eu escrevia cartas, às vezes, eu via um colega que tava triste e eu não sabia chegar nele, aí eu escrevi uma cartinha, aí chegava na hora do recreio, entrava na sala escondido, deixava dentro do livro, a cartinha falando “fica bem, tá?” Então, eu sempre tinha essas manias de escrever cartinha sempre. Tem amigo meu que até hoje tem cartinha guardada e fala, “nossa, olha, o quê que eu achei aqui, que tava guardado”.

Pra mim, a religião principal que todo mundo tem que ter dentro do coração é o amor, porque eu acho que se todo mundo tiver, a gente não vai precisar seguir religiões, porque hoje a religião, no meu ponto de vista, ela separa muito as pessoas.

Eu fui, eu cheguei a ir pra entender um pouco a minha madrinha, eu cheguei a visitar a igreja dela, que é católica carismática, e eu cheguei lá, a gente tinha uma roda de conversas, de desabafos, nessa igreja, e aí eu fui contar das minhas experiências com sensibilidade e elas me olharam torto e falava assim “cuidado que isso é o demônio. Cuidado.” E gente, eu vi aquele povo e falava, “meu Deus, eu tô no hospício.” Na moral, porque, tipo, o povo falava umas coisas assim, que eu ficava “de onde que essa galera tira essas coisas?” e eu me senti muito mal lá dentro, mais voltei. 

A minha madrinha tem depressão, por conta dessas coisas, ela não aceita ser tratada por ninguém que não seja católico. Então, vemos aí que temos um problema. E isso é um dos maiores motivos pra eu não ter religião e eu falo demais disso.

Eu gravava vlogs e eu contava muito da minha vida em relação ao bullying, chama Diário da Leca, depois se quiserem procurar no YouTube.  E eu parei de gravar porque eu não tinha mais assunto e eu achava que as pessoas não estavam gostando, porque tinha dois likes, aí eu falava, “meu Deus, tá uma bosta, não vou gravar mais.” Mas, agora, eu quero voltar a gravar e ajudar pessoas, principalmente, meninas, porque eu conheço muitos meninos que são asperger, mas eu não conheço nenhuma menina ainda. Então, eu quero falar disso, como é ser uma menina com Asperger, quero falar como foi chegar no diagnóstico, falar como é o teatro, como é tá fazendo tudo o que eu faço, eu acho que não foi só um alívio, acho que foi mais um ponta pé pra falar assim, “não desiste, vai, continua que tem mais pessoas pra te ouvir.” Então, é isso. 

Tiago: Eu queria, basicamente, agradecer pela abertura, principalmente, por vocês terem ficado até esse momento. Enfim, muito obrigado. 

Álvaro: Vou falar que eu gostei muito de tá aqui com vocês, adorei, na verdade, foi um grande prazer, muito obrigado mesmo por toda a atenção, por toda a participação, vi que todo mundo fez perguntas, pra gente pergunta são as melhores coisas, pra quem tá dando palestra, qualquer coisa, pra professor, pra todos vocês, foi um prazer conhecê-los, igual eu comentei de manhã, comendo aqui de novo, vou lembrar de cada um de vocês pra sempre, onde eu estiver. E a gente lembra. E aí não vai passar despercebido. Vai ser desse jeito. Muito obrigado mais uma vez. Tenha uma boa noite. Prazer.

Ana Flávia: Ah, eu queria agradecer. Dizer que eu me sinto privilegiada, privilegiada por promover esse debate. Como ele falou, eu acho que é tão informativo, né? A gente precisa falar menos das pessoas com deficiência, com autismo e deixá-las falar por elas mesmas. Então, eu acredito que isso foi, talvez, o maior ganho, né? E eu acho que isso é uma experiência tão rara na universidade, a gente dá espaço às vezes pras pessoas cegas, pras pessoas com deficiência física, ou às vezes, também não dá espaço, né? Mas eu fico muito feliz assim de promover esse momento aqui pra vocês, eu acho que foi tão bom ter três, ter uma menina e dois rapazes. Porque a gente, também, eu acho que desconstruiu muitas coisas que a gente pensa a respeito do autismo, né? E fico muito feliz de ter dois alunos, estar aprendendo com eles. Fico feliz da Letícia ter conseguido esse diagnóstico, da disciplina também ter aberto essas portas, e eu acho que ser professor é bom demais, né? Isso é que me encanta. Como o Álvaro falou, a gente tem que fazer aquilo que gosta. Isso é verdade. Então, assim, isso é que encanta, a gente ser professora e poder promover esses momentos. Então, queria agradecer por vocês terem ficado até esse momento, porque eu sei que pra eles é difícil, também, a maioria pega ônibus pra ir embora. Mas eu acho que valeu a pena. 

Letícia: Eu queria agradecer vocês pela receptividade e tudo, Ana Flávia, eu nem sei como te agradecer por tudo também. Eu cheguei a escutar de uma professora minha que eu não era da academia e eu faço licenciatura. Então, pra uma pessoa com Asperger, até então, eu não sabia, mas eu sabia que eu tinha problemas com aprendizado, escutar isso da professora que tá te ensinando como ser professora, foi dolorido pra mim. Porque eu eu não tava conseguindo absorver a matéria dela, e eu queria ter interesse, eu queria conseguir aprender, mas a metodologia dela não me ajudava a absorver, e eu fui conversar com ela e ela vira pra mim e falou: “olha, eu vou ser bem sincera com você, você não é da academia.” Então, eu fui pra casa, nessa época, e eu fiquei muito mal, pensei em desistir da faculdade, porque pra mim ela tava falando que eu não era capaz de ser professora, que eu não era capaz de continuar, e eu queria fazer minha especialização e tudo. Então, foi bem dolorido. E encontrar professores, assim, tão dispostos, que amam o que fazem, e que tá aberta a se adaptar pro aluno, porque eu acho que o maior desafio do professor é isso e eu acho lindo quando ele consegue, que é ele se adaptar ao aluno, não o aluno se adaptar ao professor. E hoje eu cheguei na minha mãe e falei pra ela: “Nossa, parece que agora, mais do que nunca, eu quero ser professora pra mudar isso, porque é muito dolorido.” E eu me senti, agora, principalmente, eu sinto uma necessidade ainda, de ter professores preparados pra essa situação. Vou chegar amanhã, vou entregar o laudozinho na mão da minha professora, vou falar: ”Minha falta de interesse, aí, ó, toma! Entenda, entenda agora.”

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