Introvertendo 27 – Perfeccionismo e Autossabotagem

Existem muitos pontos em comum entre a maioria das pessoas dentro do espectro. Uma delas é que o perfeccionismo, diretamente relacionado ao hiperfoco, pode se transformar num processo de autossabotagem. E se autossabotar, pela lógica, é perder parte do que constitui a nossa força. Neste episódio, relatamos um pouco da nossa experiência com o perfeccionismo e autossabotagem e de como a ajuda médica pode ser fundamental neste processo.

Participam desse episódio Marcos Carnielo Neto e Tiago Abreu.

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Transcrição do episódio

Tiago: Olá pra você que escuta o podcast Introvertendo, esta produção que é feita para neurodiversos e neurotípicos, para todos que estão nos ouvindo. Meu nome é Tiago Abreu, eu sou editor deste podcast e hoje estou aqui com o Marcos para falar sobre perfeccionismo e autossabotagem.

Marcos: Olá, eu sou o Marcos, e é um tema que eu tenho bastante familiaridade.

Bloco geral de discussão

Marcos: Vou começar com a definição do que é o perfeccionismo. Na psicologia é um traço de personalidade caracterizado por uma pessoa sempre buscando a perfeição completa. É interessante notar que os psicólogos e psiquiatras concordam que tem dois efeitos principais do perfeccionismo, um lado adaptativo beneficiário que ajuda as pessoas a melhorar os seus trabalhos e um lado negativo, mal adaptativo que acaba atrapalhando a vida das pessoas.

Tiago: E se tratando de espectro autista principalmente com relação às pessoas ditas aspies, o perfeccionismo é uma marca muito existente nas suas produções. Então, tanto aquele estereótipo que nos é carregado como gênios também se manifesta no sentido de rigor daquilo que nós produzimos, seja pelo aspecto técnico, seja pelo background, e isso nem sempre caracteriza algo positivo, algo que vá realmente trazer benefícios no sentido de saúde mental.

Marcos: Sim, primeiramente vamos diferenciar os dois. Vamos começar com o positivo, ele é definido como perfeccionismo positivo, porque ele se manifesta de uma forma diferente nas pessoas. Na pessoa com perfeccionismo positivo, ela sempre busca a perfeição, mas não de forma meio que patológica. Eela busca de uma forma que ela tenha uma perspectiva diferente sobre o resultado final. Ela acredita que o trabalho dela vai gerar um resultado positivo e ela bota ênfase no trabalho dela, em aperfeiçoar o trabalho, o processo de criação dela e seja lá do que for que ela esteja fazendo. Enquanto que no perfeccionismo negativo, no mal adaptativo, a pessoa já espera a perfeição logo de começo, o tempo todo do resultado final. Assim que ela começa um projeto,ela já espera resultados perfeitos. E esse tipo de perfeccionismo traz mais malefícios do que benefícios, na verdade. Porque a pessoa geralmente tem a tendência de desistir logo no começo e, às vezes, paralisa completamente. E eu acho que o mal adaptativo, negativo, é o que é mais encontrado no autista. Um talento, às vezes, pode gerar um perfeccionismo negativo, porque a pessoa já espera ser boa logo de começo sempre, por ela ter um talento em alguma atividade e acaba que toda vez que ela começa algum processo, alguma ideia, ela já espera um resultado perfeito logo de começo, porque ela tá acostumada que já ter talento, já ter um nível mais avançado logo de começo, então ela já espera um resultado perfeito logo de começo e isso acaba desenvolvendo um perfeccionismo mal adaptativo. Por exemplo, uma pessoa que já é muito boa naturalmente em cantar. Se ela vai começar a produzir sem muito treino, sem um período de aperfeiçoamento e acaba que ela já espera um resultado excelente, perfeito, logo de começo e acaba sendo paralisada por causa disso, porque ela não passou por um período de aperfeiçoamento. Esse é o perfeccionismo negativo, ao lado negativo, eu acho que nos aspies é mais comum.

Tiago: E você acredita que ao longo da vida, se você fosse se encaixar em algum deles ou dos dois, onde você estaria nessa escala de perfeccionismo?

Marcos: Eu me considero bastante perfeccionista e, infelizmente, eu tô mais pro lado negativo. Quando eu comecei já, eu já esperava resultados perfeitos do que eu ia começar a fazer. E o problema é que sem treino, sem um período de aperfeiçoamento, você não vai fazer algo de sentir logo de começo. Então, abandonar projetos era comum, até pouco tempo. Entrei na Física também, a matemática começa a pesar bastante, você tem que se esforçar para continuar, porque sem esforço, é difícil você progredir. Muitas vezes eu já desisti logo de cara, quando a ideia já era difícil e avançada. Isso foi ruim porque eu sofri bastante. Eu gostava de desenhar quando eu era criança e abandonei porque eu já esperava o resultado bom. Com certeza, o meu perfeccionismo é negativo.

Tiago: No meu caso, eu acho que ele sempre foi uma oscilação entre as duas coisas em alguns períodos. Então, por exemplo, quando eu era criança, eu tinha muito rótulo de uma criança muito inteligente, não diria genial. E nessa época, eu conseguia desenvolver muitas coisas com facilidade seja pela questão de não colocar muita pressão sobre aquilo que eu fazia, as coisas aconteciam, mas com o passar do tempo, eu passei a não me sentir desafiado, porque era muito confortável, sempre receber elogios, sempre estar pronto. E aí, com o tempo, depois da adolescência, veio a depressão. E aí, a minha forma tendeu muito mais ao negativo. E aí acabo ficando muito reativo em alguns períodos, não conseguindo produzir ou sentindo aquela paralisia antes de produzir, mas eu percebi em todos os períodos da minha vida em que eu consegui fazer coisas boas a longo prazo, que me trouxeram, por exemplo, êxitos, tanto intelectuais quanto profissionais, se renderam a algo positivo. Ao pessoal que sabe, eu sou jornalista, então texto é algo que você pratica, algo que você constrói também a parte de leituras e é basicamente escrevendo. E aí eu percebi que como trabalho há anos, eu fui estabelecendo um estilo, um conteúdo que só me permitiu ser alcançado a partir de um perfeccionismo positivo a longo prazo.

Marcos: O problema é que o perfeccionismo negativo, mal adaptativo, leva a autossabotagem, que é exatamente isso, você já espera um resultado excelente logo de começo, sem ter o processo todo e acaba que você já desistiu logo no começo. A autossabotagem é você saber que não vai dar certo e você acaba sendo o seu próprio pior inimigo. Enquanto no positivo, eu tive que aprender, que é com esforço que você vai melhorando, é aos poucos, então você vai se animando com cada passo que você dá, cada progresso, você já vai ver sua melhora no que você está fazendo e você vê que vai melhorando. E esse perfeccionismo, na verdade, é muito útil. Ele geralmente é o que leva à excelência. Porque pessoas que não têm esse tipo de perfeccionismo geralmente são complacentes, acabam estagnados na vida e acabam ficando na mesmice. Eu acho que é bom um pouco de perfeccionismo, mas desde que seja o tipo saudável. Esse tipo de que você vê que é gradual, que você vai melhorando. Pra não levar para a autossabotagem. Uma coisa que leva ao perfeccionismo negativo é o fato da pessoa já ser elogiada pelo resultado logo no começo. Ela já tem talento. Geralmente as pessoas com Asperger tem algum interesse muito forte em algum tópico, elas geralmente são muito boas naquilo que elas fazem. Por exemplo, o Tiago era bom em escrever, eu já às vezes era bom em desenhar ou algo no começo a pessoa é boa em arte, é um talento pra música. O interesse dela gera as pessoas a elogiarem o trabalho dela, pode fazer com que elas acreditem que elas sempre tem que ser perfeitas para acompanhar também o padrão que impõe, sabe? Então, isso gera um perfeccionismo negativo e tem estudos que mostram que vai gerar um um perfeccionismo positivo, o método certo de incentivar a pessoa é elogiar não o produto final, mas sim o esforço que a pessoa coloca no projeto, porque no final das contas é o esforço no que você vai fazer, que é o que leva a perfeição. E todas as pessoas que alcançaram excelência em algum tópico que ela sempre querem melhorar ainda e que melhorar, na verdade, foi um processo longo e foi bastante trabalhoso, não foi do dia pra noite, nunca foi, pra ninguém. As pessoas têm a ideia errada de que gênios já nascem do dia pra noite, já são excelentes no que eles fazem, já de começo, mas as pessoas têm que entender talentos, OK, as pessoas nascem com talentos, mas o talento só define a velocidade com que você melhora. Mas só o talento em si, sem esforço, não leva a nada. E e geralmente, só o talento em si,tem a tendência de levar o perfeccionismo negativo, que eu acho que esse é um dos problemas dos aspies, que a gente tem o nosso hiperfoco em algum alguma área, qualquer, alguma ideia. E a gente acaba sendo bom, melhor do que a média, e isso acaba levando a gente a desenvolver um perfeccionismo negativo na nossa vida. Porque, geralmente, pessoas que a princípio não são tão talentosas, mas que acabam colocando muito mais esforço, acabam passando as pessoas que não se esforçam, e elas eventualmente vão ficar pra trás. Isso acontece na área acadêmica bastante, não só com altíssimas, mas eu acho que comigo aconteceu horrivelmente, eu atrasei meu curso por causa disso, eu desisti de matérias.

Tiago: É tão presente na vida acadêmica que quando eu era calouro havia um evento de recepção de calouros que teve numa biblioteca da universidade, eu lembro que uma professora terminou a fala dela falando assim: “aos talentosos, cuidado, os esforçados vão ultrapassar vocês”. Eu nunca esqueci disso, porque em todo o meu período de graduação estava em estado de alerta (risos). Não só por causa dessa frase, mas porque eu já tinha vivido isso com o meu tempo de trajetória acadêmica, nas séries anteriores, e eu acho que essa forma de raciocínio das pessoas em avaliar as pessoas que se esforçaram como simplesmente talentosas ou como dignas de algo que elas acabaram recebendo de alguma forma, se manifesta em vários campos da arte. Por exemplo, você vê um músico, uma banda muito boa e você fala: “nossa, essa pessoa toca bem demais, isso é um dom divino” e tem a questão também de quem faz pinturas. Todo esse campo da arte acontece muito isso. E na universidade, a área da pesquisa acadêmica talvez seja o campo em que a questão do esforço se mostra ainda mais. Porque quando você estabelece um objeto de pesquisa, nós já conversamos aqui em outros episódios, quando a gente faz uma investigação científica, muitas vezes o resultado vai dar algo totalmente diferente da nossa hipótese, mas todo percurso que a gente faz serve de aprendizado. E eu acho que a universidade, talvez, teoricamente, era pra ser o lugar perfeito pra aprender isso, que talento no fim das contas não significa praticamente nada.

Marcos: Orgulho como sentimento sempre no caminho, todo mundo, no caso que tem sentimentos, é uma droga ser humano. E também tem aquele problema do pessoal que era talentoso, ensino médio fácil, que não não foi desafiado, tipo o meu caso, que acabei cruzando pela escola sem precisar fazer esforço nenhum, porque é um nível muito mais fácil e para aqueles que pegam as coisas rápido, você aprende super rápido e não precisa fazer esforço nenhum. Isso muda no nível acadêmico, que é quando você precisa fazer pesquisa séria, é um caso que você precisa ter conhecimento de verdade e aí você acaba descobrindo que o conhecimento humano que a gente tem é limitado e o que a gente não sabe geralmente é muito mais do que a gente sabe. Aí você vê que essa vida fácil do ensino médio é ilusão. Porém, hábitos continuam. E o hábito de não se esforçar continua. Com o perfeccionismo alto, ou seja, você já espera aprender rapidamente sem muito esforço, logo de começo. Na área acadêmica isso muda. E o hábito continua. E isso pesa muito, já fizeram estudos com isso. Esse é um problema enfrentado por vários estudantes na universidade, no ambiente acadêmico, em que elas não precisavam se esforçar antes e entram, elas penam, elas sofrem e as notas geralmente caem. As pessoas que se esforçam, mesmo que não foram tão bem, acabam ultrapassando, é o que você tinha acabado de falar, os talentosos serão ultrapassados pelos esforçados. E mostra que isso é um hábito criado. Então, pra você criar um perfeccionismo positivo que vai ser construtivo, é um processo que você aprende ao longo do tempo. Você tem que aprender que ninguém começa excelente, excelência é um processo que exige suor. O talento, na verdade, ele define a velocidade com que você vai atingir a excelência. Pessoas talentosas vão conseguir mais rápido. Mas isso não significa que a pessoa que te julga não ser talentosa, não consiga nada. Ela pode conseguir com esforço. Ela vai saber o limite que ela pode alcançar. E às vezes ela vai ultrapassar. É só uma questão de tempo e esforço, depende do tanto de energia que ela vai colocar naquilo que ela tá fazendo. E o hábito de perfeccionismo positivo é construído ao longo do tempo, principalmente na infância. A pessoa que é elogiada no esforço, ela aprende a criar uma ética de trabalho mais bem sucedida. Isso é o que leva a ser bem sucedido no que elas fazem no final das contas. Esse é o perfeccionismo positivo na pessoa, o adaptativo. Esse é muito bom. E é um processo que eu estou aprendendo. eu não espero mais já perfeição logo no começo. É normal você ser ruim no começo. Ninguém começa bom. Todo mundo tem que passar por um período de aprendizagem. Às vezes a gente vê, por exemplo no meio acadêmico, aquelas crianças com 14 anos que já tão em Harvard. Mas às vezes essas crianças começaram a estudar com quatro anos de idade. E se você for contar então, são 10 anos de estudos. Às vezes a pessoa começa a estudar de verdade, tipo eu, com 17 anos. Então, assim, nunca é tarde pra começar nada. E a gente tem que entender que ao longo do tempo que a gente desenvolve as nossas habilidades, seja lá o que você for fazer, escrever, desenhar, pintar, música, esporte, tudo. É prática, esforço e dedicação. Então, é normal você ser ruim no começo. É normal você só sair fazendo erros, eu comecei a focar agora no progresso, o que eu melhorei baseado no que eu fazia antigamente. Eu comecei a desenhar de novo esse ano e dessa vez eu aprendi que desenhar é um processo que se você também aprende, você não começa desenhando do dia pra noite, você não vai pegar um lápis pela primeira e fazer um desenho maravilhoso. Você vai fazer desenhos ruins no começo, você precisa praticar as técnicas básicas. Você vai fazer muitos erros. E aí, com os erros, você vai aprendendo, vai melhorando nossa técnica. Agora, eu tenho que aplicar isso na universidade também. Eu vejo, às vezes, que matemática é muito difícil, mas também é um processo de aprendizagem cumulativo. Quanto mais matemática você sabe, mais fácil vai ficando aprender. E você precisa construir a base primeiro, entender os conceitos mais fundamentais, básicos, principais e você vai construindo a pirâmide a partir disso, com esforço, você consegue expandir o seu conhecimento. Com esforço você consegue, pelo menos, ser medíocre, o que já na física, na matemática, sinceramente, já é um sucesso, na minha opinião, porque o pessoal fala que é medíocre, mas é muito difícil, são conceitos bem avançados, então, eu acho que só o fato de você conseguir fazer, já é um sucesso seja lá o que você vai fazer. Eu acho que isso se aplica a qualquer outra coisa, mas é porque na minha área que eu estudo, eu achava que eu já ia conseguir entender as teorias avançadas logo de começo, eu ia pegar o livro e entender a matemática. Então, tenho que entender que foi um processo, eu tô melhorando e tal.

Tiago: E eu acho que a partir também dessa noção, a gente pode fazer meio que uma crítica a questão da meritocracia, que é tão espalhada como se fosse um panorama ideal e a gente vive num mundo em que as pessoas são diferentes, em que as pessoas têm origens diferentes, as pessoas têm que têm coeficientes de inteligência diferentes e capacidades diferentes. Então, é muito interessante quando eu vejo algum discurso de meritocracia, mas as pessoas não são iguais. E algo dar certo depende de vários fatores.

Marcos: Sim, é toda uma questão de chance e probabilidade. A gente geralmente aprende isso do jeito difícil na vida. Algumas pessoas que não se esforçam tanto, podem conseguir fazer uma coisa que acaba ficando bem sucedida. E alguém que se esforçou muito, fez alguma coisa que pode ser dita boa, mas às vezes não tem o sucesso desejado. Isso é ruim, isso geralmente leva a um perfeccionismo também negativo, leva a problemas emocionais. Então, a pessoa tem que aprender a lidar com isso, com o fato de que a vida não é justa, de verdade, chance e probabilidade ela, elas fazem parte da vida de todo mundo, todo mundo tá sob as leis da física e tudo pode acontecer. Às vezes você pode fazer um excelente trabalho, mas não vai ser bem sucedido. Eu acho que o importante é a pessoa aprender a tirar satisfação do processo. Só do fato dela ter melhorado, eu já considero isso, pra mim, uma vitória, eu melhorei e tá ótimo. Mesmo que não tenha reconhecimento, não importa. Eu fiz, eu me sinto bem, isso me dá prazer e eu continuo e isso me motiva. Isso é muito bom. A gente sempre tem que ir treinando pra aproveitar as oportunidades quando aparece. Então às vezes aparece uma chance aqui, uma coisa ali, então a gente tem que tá pronto. Então se esforçar pra melhorar é uma coisa boa. Mesmo que seja, mas também tem que entender que às vezes as coisas são aleatórias.

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Equipe Introvertendo Escrito por: