Introvertendo 255 – Onde o Capacitismo e o Racismo se Encontram

O capacitismo e o racismo, como sistemas de opressão, possuem suas semelhanças e diferenças. E na experiência vivida por pessoas negras com deficiência, perceber esses pontos e contrastes pode ser desafiador. Neste episódio, Paulo Alarcón e Tiago Abreu recebem Keny Santos e Levi Castro para pensar o racismo, desigualdade no Brasil e a deficiência no contexto racial. Arte: Vin Lima.

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Transcrição do episódio

Tiago: Olá pra você que ouve o podcast Introvertendo, que é um podcast sobre autismo feito por autistas, mas que também discute deficiência. Meu nome é Tiago Abreu, sou jornalista, um dos integrantes deste projeto, em junho deste ano nós lançamos um episódio sobre as relações do capacitismo com a LGBTfobia e agora nós estamos discutindo as relações do capacitismo com a questão do racismo.

Paulo: Olá pessoal, eu sou o Paulo Alarcón, autista diagnosticado em 2018, analista de sistemas e esse é um assunto que eu não domino profundamente dentro dos assuntos de autismo mesmo.

Tiago: E temos aqui dois convidados que vão se apresentar pra gente.

Levi: Eu sou Levi, eu 25 tenho anos, eu moro em São Mateus, zona leste de São Paulo. Atualmente eu sou estudante do curso de eventos na FATEC Ipiranga, eu sou educador social, trabalho no ICCA com educação socioeducativa. Sou militante do movimento Uneafro Brasil. Sou militante também do movimento Vidas Negras com Deficiência Importam. E eu sou tetraplégico.

Keny: Oi, eu sou a Keny, eu sou estudante de relações públicas, sou de Guarulhos, São Paulo. Atualmente eu moro no Rio Grande do Sul, em Frederico Westphalen, justamente devido à faculdade. Eu comecei a me entender como uma mulher autista quando eu tinha 17 anos, quando entendi que meu irmão também é um homem autista, mas o meu diagnóstico realmente veio muito tardio, quatro anos depois, no início desse ano. Sou uma mulher negra também e bissexual. Luto bastante pela comunicação antirracista e na verdade é o meu hiperfoco, relações étnico-raciais e o pensamento afrocentrado. Desde que eu me conheço por gente, mesmo antes de saber que isso é um hiperfoco, tava lá, tipo, a Keny sentadinha assistindo alguns documentários com a mãe dela.

Tiago: A gente tava devendo uma discussão sobre isso já faz um tempo, nós fizemos uma reportagem sobre raça que saiu lá em 2021 e um, trazendo um pouco de relatos de autistas negros mas também de famílias e discutindo mais amplamente a questão de raça no âmbito do Brasil, mas também aqui pontuando que a questão do racismo não se restringe as pessoas negras. Nós lançamos o episódio 207 – Autismo e os povos indígenas, que saiu em 2022, mas aqui nesse episódio a gente decidiu fazer esse recorte para discutir várias outras coisas e entrar um pouco mais fundo nessa problemática.

Paulo: E o Introvertendo está nessa fase de despedida, esse é o sexto episódio da nossa série de 11 episódios de despedida.

Tiago: Vale lembrar que o Introvertendo é um podcast feito por autistas com produção da Superplayer & Co.

Bloco geral de discussão

Paulo: Keny, como mulher autista, como você percebia o racismo na sua infância e adolescência?

Keny: Mesmo não tendo esse conhecimento, eu já era uma mulher autista, né? Então, eu era muito tímida, como a sociedade costumava dizer, eu sempre me escondia atrás da perna da minha mãe, não conseguia ter amigos, quando eu estava em festa de família mesmo, eu sempre optava por estar com o fone de ouvido ou isolada. E quando isso era em um outro âmbito e eu não estava em um lugar seguro, já é esperado socialmente que uma mulher seja mais tímida. Então não tinha olhares atentos pra isso, sabe? E quando se é uma mulher negra e uma mulher que já é tímida e não consegue infelizmente como a sociedade espera se posicionar em determinados lugares, você acaba se tornando um alvo fácil. Porque você realmente não acaba criando tantos amigos e você fica naquela parte vulnerável de não conseguir conversar ou se comunicar com ninguém.

E então você acaba sendo atravessado por várias coisas. Além de você não conseguir identificar no momento as “consequências” da sua deficiência porque você ainda não entende o que está acontecendo, você também não entende porque as pessoas estão falando mal do seu cabelo e porque você não reage quando estão falando mal do seu cabelo, sabe? Então acabam sendo duas agressões: primeiro, o racismo, ao falar do meu cabelo e depois do capacitismo quando acabam deixando explícito que eu não reajo quando estou de certo modo me humilhando, sabe?

Tiago: Interessante porque você falou sobre o cruzamento dessas duas questões e falou muito sobre o ambiente seguro que é uma questão muito importante pras pessoas com deficiência de uma forma geral, estarmos em contextos mais acolhedores em que as pessoas percebam as nossas diferenças. Principalmente porque o autismo é uma deficiência invisível. Já no seu caso Levi, você se tornou uma pessoa com deficiência mais tarde. Além das questões diretamente relacionadas à deficiência, imagino que houveram vários impactos na sua vida diretos, que mais que você acha que mudou na sua vida diante disso?

Levi: Então, eu eu sempre fui negro, né? E desde bebê, desde pequenininho eu entendo que a minha família me ensina, me coloca pro mundo, uma postura de que eu preciso combater todas as práticas racistas. Já o capacitismo não, eu me torno uma pessoa com deficiência na vida adulta, há pouco tempo, cerca de dois anos. E quando isso vem pra minha vida, eu começo a entender então que tem outros tipos de opressões que também eu estou inserido. E essa discussão sobre o capacitismo e esse atravessamento. Então pensar que eu sou um homem negro e agora um homem negro com um corpo com deficiência, é algo que eu estou trabalhando e elaborando mais.

A partir de agora que eu sou uma pessoa com deficiência, eu tenho essa experiência de quando eu estou na rua e era algo que antes acontecia bastante comigo. Se eu caminhava na rua à noite, as pessoas atravessavam a calçada, com medo de ser assaltado. Hoje essas mesmas pessoas não atravessam mais e aí elas se direcionam dizendo que eu não posso fazer nada ou que elas não estão com medo. Mas nitidamente eu vejo medo nessas pessoas, só que por ser uma pessoa na cadeira de rodas eles se sentem até no direito de então colocar uma palavra pra mim e sentirem mais seguros, sentirem mais fortes usando de termos pejorativos pra mim.

Tiago: O Levi falou um pouco sobre a diferença de tratamento social antes e depois como uma pessoa com deficiência e essa é uma questão que eu tenho uma certa curiosidade porque vocês dois tem uma diferença. A Keny tem uma deficiência invisível, enquanto Levi com uma deficiência visível. E a gente já discutiu aqui no Introvertendo em vários episódios, como o 234 e agora mais recentemente o 251, sobre as formas como as pessoas enxergam ou elas até leem a deficiência visível e invisível. Principalmente perguntando pra Keny, porque o Levi também já falou um pouco disso. Quais são as diferenças de tratamento social que você sente como uma pessoa negra com deficiência em comparação a uma pessoa negra sem deficiência? Porque você também teve o seu diagnóstico tardio, né? Você não se entendia antes com a mulher autista, mas você tem vivência com outras pessoas negras, imagino eu também.

Keny: Eu venho de uma família de pessoas pretas, como o Levi disse anteriormente, e eu tive um pouco de sorte de ter o letramento racial justamente por causa disso. Então apesar de, por exemplo ser muito complicado entender, tipo, na dor porque estavam falando do meu cabelo ou da minha aparência ou qualquer outra coisa do gênero, eu chegava em casa e eu tinha quem me explicasse porque aquilo infelizmente estava acontecendo. A diferença é que justamente por vir de uma família de negras e em sua maioria mulheres negras, eu não tenho muitos homens na minha família. E elas são taxadas como loucas, mas loucas no sentido pejorativo de explosivas. Por exemplo, a mulher negra é sempre vista como aquela que vai te atacar, como aquela que não tem papa na língua ou que sempre vai estar com ar de superioridade pra você, por exemplo.

E até antes de ter o meu diagnóstico, por exemplo, porque mesmo sendo uma mulher autista toda a minha vida, o tratamento social muda quando você decide falar abertamente sobre o seu diagnóstico, né? Então antes de decidir falar abertamente sobre isso também, eu estava ao lado dessas mulheres da minha família que eram taxadas como loucas por se sentirem superiores ou algo do gênero, só porque elas decidiam impor as vontades ou qualquer coisa. Só que quando eu decidi falar quem eu sou e eu trouxe o meu diagnóstico do lado, o cenário muda, porque eu continuo sendo uma mulher negra e louca, só que eu não sou mais a louca explosiva, eu sou aquela louca que as pessoas olham e sentem pena, por exemplo, porque não sabem se eu vou entender o que está acontecendo ou então podem soltar qualquer piadinha. Porque eu não vou estar entendendo.

Então apesar de continuar sendo louca, meio que muda o tratamento, porque agora eu não sou mais a pessoa explosiva que pode atacar eles, eles se sentem novamente no direito de me atacar por outra coisa, sabe?

Levi: Esse exemplo que a Keny acabou de falar pra gente é muito visível e fica muito explícito. Enquanto pessoas pretas com deficiência, eu citei por exemplo um caso de atravessar a rua mas eu também poderia elencar várias outras coisas. Esse trato social das pessoas com a gente vai mudando, os atravessamentos que a gente tem também faz isso mudar. Eu entendo que eu sou um homem hétero com deficiência. E a Keny é uma mulher negra com deficiência. Então tem esses atravessamentos e o trato social vai mudando.

Paulo: O Brasil é um país extremamente desigual e mesmo que hajam pessoas brancas pobres, sabemos que essa desigualdade geralmente tem uma cor bem definida. Como você já observa essa desigualdade na sociedade brasileira?

Levi: A partir dessas desigualdades, hoje que eu estou dentro do estou no próprio movimento negro, e aí pautar a questão da vida com deficiência, pautar as questões de desigualdade. A gente teve recentemente o lançamento do relatório A situação das pessoas com deficiências no Brasil e é muito grande a desigualdade. Se você pegar o número o recorte PCD pra educação superior e aí de um montante 100% PCD só 35% ser estudantes negros PCDs em universidades é muito dispar. Pegar dados do BPC que aponta que é 56% das pessoas que acessam BPC no recorte de pessoas com deficiência, são pessoas brancas com deficiência, tudo isso acaba sendo desleal com a outra população com deficiência e com as populações com deficiência que são populações racializada, pegar o recorte indígena, pegar o recorte da população amarela, tudo isso é muito complicado.

Keny: Eu estava lembrando de outro dado do movimento que o Levi faz parte, que é do Vidas Negras com Deficiência Importam, que é da universidade também. Menos de um por cento dessa população negra com deficiência está dentro das universidades. E no caso gente, por exemplo, eu que vim de São Paulo… apesar dos pesares, a população negra falando especificamente dela agora, infelizmente acaba representando grande parte do recorte social que é mais desigual e também acaba representando grande parte da nossa população mesmo, sabe?

Só que quando nós falamos sobre diagnósticos de pessoas com deficiência, no meu caso deficiência invisível, por exemplo. Quando nós falamos sobre o diagnóstico dessas pessoas, poucas se tem, mas é a maioria na população, sabe? Então, onde estão essas pessoas e por que elas não estão tendo acesso a isso? E não é por exemplo, porque elas não estão querendo ir atrás ou algo do gênero. Apesar do meu diagnóstico, por exemplo, ser tardio, eu fiz terapia quando eu era mais nova. Eu tentei ir atrás quando eu era mais nova. Tive diversas crises depressivas e suicidas. Diante ao contexto social, infelizmente mesmo que indiretamente, o diagnóstico me foi negado, sabe? Porque não se tinha aquele olhar atento tanto para uma mulher quanto para uma mulher negra e principalmente para uma mulher que não está numa classe social tão boa. Entende? Então o olhar não era pra aquilo.

Tanto que eu faço a ressalva aqui por exemplo que anteriormente a comunidade autista era chamada de anjos azuis, né? O olhar nunca foi voltado pra gente. Não era esse o foco. E principalmente agora eu vim parar no Rio Grande do Sul que é outro cenário. Gente, eu estou num campus que é no interior do interior do Rio Grande do Sul. Bom, eu não tenho nenhum professor negro, absolutamente nenhum, eu não tenho nenhum professor PCD e salvo dizer, eu sou a única pessoa do campus inteiro que tá num coletivo de PCD, porque eu sou a única que tem diagnóstico aqui,. Porque assim, é um campus de uma universidade, sabe? Como não existem outros independentes? Mas essas pessoas também não têm acesso e é isso.

Tiago: Essas questões que vocês falaram são muito importantes e me fazem lembrar de coisas da minha vivência mesmo. O Introvertendo foi um podcast que nasceu dentro do contexto da universidade e lá passaram mais de 20 autistas ao longo de cinco anos de grupo terapêutico. E das pessoas que passaram lá, se tinha duas pessoas negras era muito. Nós estamos falando sobre uma universidade de uma cidade que é Goiânia que tem uma população negra ou uma população racializada relevante. Não é uma cidade extremamente embranquecida. E isso sempre me fez pensar bastante.

A gente tinha uma ausência de gênero porque eram quase todos homens e tinha essa predominância de autistas brancos. Durante dois e meio, eu morei no Rio Grande do Sul, eu estava morando em Porto Alegre até pouco tempo atrás. E eu morava num bairro que tinha sim um contraste racial que era escandaloso na minha percepção. Porque todas as pessoas não brancas que eu via trabalhavam como porteiros, pessoal da limpeza, entre os moradores do prédio, se via assim uma questão de cor.

E as pessoas podem argumentar: Ah, mas a maior parte da população de Porto Alegre é uma população branca. Mas a população negra existe e ela é uma parcela razoavelmente relevante, né? Então a gente vê esses contrastes dentro do ambiente social e aqui nós estamos trazendo exemplos de dois estados, mas se a gente passar em outras regiões do Brasil a gente observa também coisas parecidas. O que faz com que me pareça até escandaloso algumas pessoas negarem a existência do racismo. Tem gente que chega nesse nível de ousadia, né? Então chega a ser bastante absurdo.

(Transição)

Tiago: E só dando um pause rápido nessa discussão muito importante pra fazer um aviso a vocês. Se você está ouvindo este episódio na data em que ele foi lançado, você sabe que amanhã dia 19 de agosto de 2023 vai rolar o primeiro e encontro presencial do Introvertendo em que nós vamos nos reunir com os fãs, conversar um pouco e gravar ao vivo o episódio sobre inflexibilidade e pensamento rígido que vai sair daqui algumas semanas no Introvertendo. Esse encontro é um dos pontos mais importantes da nossa despedida, vai ocorrer em Goiânia, Goiás. Então se você mora em Goiânia ou região você está convidado, está convidada. As informações que você precisa sobre local, horário, todas as questões estão no primeiro link aqui na descrição do episódio.

Além da gravação do episódio, nós vamos conversar com a audiência, eu vou levar unidades do livro O que é Neurodiversidade. Então, se você também quiser autógrafo ou alguma questão, vou estar e vai ser uma oportunidade para você conhecer outras pessoas no espectro, também outros fãs do podcast e de certa forma construir esses vínculos. A entrada é gratuita. Muita gente perguntou: “ah, mas vai rolar em cidade tal?”. Óbvio que não, pessoal. Esse é um evento único de despedida do Introvertendo, não vai existir nada disso em outro lugar. Eu sei que você morar do outro lado do Brasil é impossível você estar, mas se você mora em Goiânia e região não perca essa oportunidade porque muita gente gostaria de estar e não vai poder. Eu também vi pessoas que curtem o podcast que moram em Brasília e que vão se deslocar para Goiânia. Então se você mora em Brasília e você quiser talvez o contato de alguém ou alguma uma questão, comenta nas nossas redes sociais porque vai que você encontra uma pessoa pra você ir junto. Então é isso, amanhã eu e o Luca Nolasco te aguardamos lá, vai ser muito legal, espero que seja uma ótima tarde pra todos nós.

(Transição)

Paulo: Vocês acham que a comunidade PCD, não limitada somente ao autismo, mas a todas as outras deficiências também, ela é solidária com as questões raciais?

Levi: Eu acredito que esses atravessamentos, essas interseccionalidades elas não são bem absorvidas no no campo da disputa por políticas e por reivindicações da comunidade PCD. Eu no caso sou um corpo com deficiência visível e sempre que eu tive dentro do movimento negro, antes de ter a deficiência, a gente pautava a questão do racismo, a gente pautava o genocídio no Brasil. A gente pautava que, por exemplo, na minha família eu não tenho relatos dos meus ancestrais. Minha família acaba no meu avô. Meu bisavô foi escravizado. A gente conseguia pautar isso. Pautar isso enquanto movimento negro.

Aí quando hoje vou pro movimento PCD, a gente começa a fazer esse embate, eu ainda percebo muita resistência . Todas essas camadas que a gente tem, a gente pauta elas pra sobreviver. Eu acho que eu estou falando isso enquanto Levi, mas acho que a Keny também pode dizer um pouquinho mais. Eu não quero chegar na comunidade PCD e falar: “gente, eu sou um cara preto e eu quero protagonismo”. A gente levanta essas bandeiras porque a gente que está morrendo, é a gente que não está entrando em serviço público, a gente que não sai de casa.

E tem uma galera da comunidade PCD que já tem um trabalho e um ativismo já de anos, de décadas. Só que o que eu enxergo é que, por muito tempo, essa pauta foi capturada por um setor político e usada para ideologias políticas. E assim, essas ideologias, esse setor, ele oprime a gente enquanto indivíduos com esses atravessamentos. Não tem como eu pautar rampa ou eu pautar linguagem simples se ainda a população negra PCD ainda não saiu de casa, não tem como eu pautar o piso tátil, pedir verba para algumas associações se ainda tem gente que não tem diagnóstico.

E tudo isso passa, por exemplo, quando a gente chega num hospital e fala: “eu estou com dor”. E aí o médico olha pra nossa cara e: “não, você não tem dor. Homem negro com dor, mulher negra, com dor? Não”. Esses atravessamentos e essas questões a gente pauta, a gente precisa levantar essas bandeiras porque dentro da comunidade ainda tem uma dificuldade de absorver tudo isso.

Keny: Eu vou dar um exemplo aqui de uma pesquisa que eu estava fazendo ontem, mas é só pra dar uma contextualizada no meu pensamento mesmo pra continuar o que o Levi começou. Ontem eu estava lendo sobre burnout racial. E o burnout racial, ele acaba falando muito sobre, não tem como você querer tratar, tipo, a consequência disso sem você pegar a causa principal, sabe? Então, por exemplo, em corpos brancos chegarem em um hospital ou algo do gênero e falar que está sentindo dor, como Levi pegou e falou e tá, vai ser taxado com uma burnout, excesso de trabalho ou algo do gênero. Já os corpos negros, além de ter toda essa carga que um corpo branco já tem, ele ainda tem os atravessamentos da interseccionalidade da raça, sabe? Então vai ter que estar constantemente lidando com microagressões que um corpo branco não precisa, vai ter que estar constantemente lidando com humilhações e afins, sabe?

A questão de querer levantar essa pauta é como o Levi mesmo falou, é pela nossa sobrevivência. Apesar da comunidade PCD estar ainda bem ganhando cada vez mais visibilidade, se a gente olha ao redor, se a gente olha pra frente a gente não tá representado 100%, sabe? Talvez nós estejamos na nossa deficiência, só que muitas das pessoas que estão ali não fazem nem ideia o que é estar desse lado, tentando além de passar pela parte da deficiência, sobreviver num cenário desigual, sabe?

Teve uma pesquisa que eu vi que as oportunidades realmente são escassas e quando falamos de pessoas com deficiência, mesmo que sejam pessoas brancas, aqui precisamos ressaltar que por exemplo a oportunidade de emprego nem sempre vai ser a melhor coisa como pra alguma pessoa que não seja PCD. Só que justamente pela cota, da pior maneira de usar o sentido da cota, pior maneira mesmo porque assim… amo cotas raciais, muito obrigada. Mas as organizações, por exemplo, decidem pegar a cota num viés negativo. Então se queremos um homem lá dentro da organização para representar, é um homem branco. Se queremos uma pessoa homossexual, provavelmente vai ser um homem branco ou uma mulher branca. Se é uma PCD, provavelmente também vai ser um homem branco. Entende? Muitas vezes não são todas as interseccionalidades que vão ser abraçadas. E a pessoa que é tudo isso? Onde ela está? Porque ela existe? Ela só meio que foi jogada à margem da sociedade tipo da pior maneira possível.

Paulo: Levi e Keny, muito obrigado pela participação de vocês aqui no Introvertendo e pra terminar, fiquem à vontade pra falar sobre as redes sociais de vocês e o que mais quiserem comentar aqui no podcast e fazer uma despedida também.

Levi: Então, vamos lá. Eu sou o Levi, e como eu disse no começo, eu tô atuante no movimento Uneafro Brasil, né, que a gente atua enquanto movimento negro, principalmente na inserção do nosso povo no ensino superior. A gente está espalhado pelo Brasil. Há um tempinho atrás a gente tava em Brasília para levar reivindicações de educação popular e de base. E educação popular é inclusiva sim, porque a gente se organiza enquanto núcleos. O nosso núcleo aqui de São Mateus tem uma procura gigante da galera PCD aqui do entorno do território porque por exemplo a escola não tem a acessibilidade ideal para essa população.

Então enquanto coletivo a gente tem cada vez mais buscado o reconhecimento desse espaço de educação popular enquanto espaço inclusivo. Eu tô em São Paulo também atuando com o movimento Vidas Negras com Deficiência Importam. É assim, é fazendo a luta política mesmo, enfrentamento todas essas desigualdades que passam pela nossa vida e a pressão política para que isso mude. Porque eu tenho frisado bastante que se a gente hoje vive a liberdade que foi o sonho dos nossos ancestrais, a gente precisa continuar sonhando e querendo cada vez mais que essa liberdade seja de fato presente nas nossas vidas. Então a gente luta pra que no futuro pessoas com deficiência não precisem ficar dentro de casa, pessoas negras PCDs tenham acesso à saúde, à segurança, à educação e tudo aquilo que sempre foi tirado. E se tiver em São Paulo, quiser marcar um café, tamo junto (risos).

Keny: Eu vou querer o café no mês que vem, porque eu vou ir praí pra poder visitar minha família. Como eu disse no começo do episódio, o meu hiperfoco, desde que eu me entendo por gente, acabou se tornando relações étnico-raciais e pensamento afrocentrado. Arrisco dizer que essa hiperfoco foi minha mãe que me passou, tá? Mas tudo bem. Enfim, um tempo atrás eu me voluntariei no Resiste Enem. Apesar de ter que ter saído dele por questões psicológicas mesmo, pra cuidar da minha saúde mental, eu vou ter que falar dele aqui. Porque o Resiste Enem é um cursinho online que ajuda pessoas de baixa renda a terem um ensino pro Enem. Ele surgiu no período da pandemia. Conforme o tempo foi crescendo, tornou-se um instituto e quando eu acabei saindo do projeto, uma das coisas que eles estavam vendo era de entregar o material físico também para alguns dos alunos que não tinham acesso à internet visando essa população.

E ressaltamos dizer, como já falamos ao longo do episódio, a maior parte da população que é desigual socialmente e que não acaba tendo tantos recursos, é a população negra. Então a maior parte desses alunos também eram alunos negros. Diversos deles ingressaram em universidades, em sua maioria universidades públicas também. Então sempre que eu puder eu vou estar falando desse projeto.

Atualmente eu ingressei na Associação Nacional para Inclusão das Pessoas Autistas também. Estava tendo uma reunião com o Guilherme. Então a intenção é entrar dentro dessa associação para conseguir discutir também a temática racial. Eu trabalho com afro comunicação e aqui eu também vou ter que dizer como é interessante quando trazemos pra parte da comunicação em si entendermos como podemos utilizar do pensamento afro-centrado e das tecnologias dos nossos ancestrais, como o Levi mesmo falou para alcançarmos mais os nossos, sabe?

Então é bem bacana quando a gente consegue se colocar nesse cenário e ir percebendo que conseguimos pegar histórias do qual fazemos parte e que infelizmente acabaram se perdendo e usá-las como base para inclusão dos nossos agora.

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Equipe Introvertendo Escrito por: