Introvertendo 241 – Autismo e Bullying

O bullying é uma realidade na vida de muitos autistas, da infância à vida adulta, e que compromete a qualidade de vida, as habilidades sociais e a autoestima. Neste episódio, nossos podcasters trazem uma definição e o contexto histórico do termo bullying, qual é a sua relação com o autismo e como vivenciaram esse fenômeno ao longo do tempo. Participam: Michael Ulian, Paulo Alarcón e Thaís Mösken. Arte: Vin Lima.

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Transcrição do episódio

Thaís: Um olá para você que é ouvinte do Introvertendo, este podcast feito por autistas para toda a comunidade. Meu nome é Thaís Mösken e eu sou autista, trabalho como administradora de sistemas, tenho 31 anos e hoje eu vou ser a host deste episódio em que vamos falar sobre bullying mais uma vez, já que já falamos sobre isso aqui antes.

Michael: Beleza, aqui é o Michael, o Gaivota, e eu juro para vocês que esse apelido estúpido não foi dado por ninguém, fui eu que escolhi.

Paulo: Olá pessoal, eu sou o Paulo Alarcón e tenho muita experiência com bullying (risos), algo que eu preferia não ter tido.

Thaís: O Introvertendo é um podcast feito por autistas e produzido pela Superplayer & Co.

Bloco geral de discussão

Thaís: Bom, para começar a nossa conversa, a gente vai tentar definir o que é o bullying mais especificamente, quais são as características dele. Para isso, a gente vai falar principalmente sobre dois prismas que acho que se complementam. Um deles é da lei 13185, que é o programa de combate à intimidação sistemática, mais especificamente bullying. E também sobre o prisma da psicologia. Nos termos da lei, a gente lê aqui logo no início dela que o que se considera intimidação sistemática, que é o bullying, é todo ato de violência física ou psicológica intencional e repetitivo que ocorre sem motivação evidente e é praticado por indivíduo ou grupo contra uma ou mais pessoas, com o objetivo de intimidá-las ou agredi-las, causando dor e angústia à vítima em uma relação de desequilíbrio de poder entre as partes envolvidas.

Uma coisa interessante que tem na lei é que essa parte de intimidação e de agressão está caracterizada tanto no aspecto físico, que talvez seja mais óbvio para algumas pessoas, mas também no próprio aspecto emocional e no aspecto social. Então, emocional no sentido de uma agressão verbal e social no sentido de, às vezes, isolar a pessoa, fazer com que ela realmente fique à parte dos grupos, ignorá-la de algumas formas. Então, tem essa parte um pouco mais ampla na lei. Apesar de ser uma lei bastante curta, ela traz vários aspectos diferentes e também as diversas ações não se restringem apenas às ações listadas na lei, mas ela dá vários exemplos, como assédio verbal, moral, sexual, social, e por aí vai. Então, é interessante para quem tem interesse no tema dar uma olhada na lei, porque ela realmente é bastante curtinha e é fácil de ler. E para falar um pouco sobre a parte de como se caracteriza o bullying do ponto de vista da psicologia, Paulo, você consegue trazer um pouco do que estudou a respeito disso?

Paulo: Sim, uma definição que eu acho muito bacana do Haynie, é que existem cinco ingredientes essenciais do bullying que incluem: uma diferença de poder entre o perpetrador e a vítima. Então, a pessoa que faz o bullying está de alguma forma em um patamar social acima da vítima. Esses atos têm a intenção de causar algum tipo de sofrimento para a vítima, de rebaixar essa vítima. Os bullies, as pessoas que fazem isso, elas se utilizam dessa forma para aumentar sua autoestima frente ao grupo. E o bullying tem que ser repetido ao longo do tempo, por um período, durante uma fase da vida da pessoa, na adolescência, durante um ano na escola, repetido, se for uma agressão pontual, pode ser tratado como uma briga, como problema pontual. O quarto ponto é que ele tem que acontecer em um ambiente social. Esse tipo de agressão vai ser feito na frente de um grupo de pessoas, e esse agressor se utiliza das agressões para aumentar sua autoestima frente a esse grupo social. E o quinto é que geralmente não é provocado pela vítima. Na maioria dos casos, as vítimas sofrem sem ter feito algo contra o agressor que gere algum tipo de conflito. Por exemplo, xingar, machucar e por aí vai.

Essa palavra, ela é relativamente nova e ela começou a ganhar fama depois do caso do Massacre de Columbine ocorrido nos Estados Unidos em 1999, e foi dita pela primeira vez por um pesquisador sueco chamado Dan Olweus, que colocou o termo bullying para se referir a esse tipo de ação que acontece ao longo do tempo, acontece de forma frequente.

Thaís: E um ponto que eu acho interessante acrescentar, apesar de aqui para o que a gente olha tanto no termo da lei quanto para o que o Paulo acabou de trazer, os aspectos que classificam o bullying são bastante gerais. Eles podem acontecer basicamente em qualquer momento da vida da pessoa. Mas quando a gente dá uma olhada na lei, ela se refere bem mais à parte da educação, tanto que o órgão responsável para receber denúncias de bullying é a Secretaria de Educação. Então, se você é alvo de bullying ou conhece alguém alvo de bullying, denuncie, essas pessoas merecem ter sua dignidade preservada.

Mas o ponto que eu quero trazer aqui é que a gente fala de bullying muito mais pensando em crianças e adolescentes, e geralmente, uma vez que a pessoa se torna adulta, a gente para de chamar aquilo de bullying e passa a chamar de assédio moral, que é outra lei também que é crime, inclusive. Então, são duas coisas muito próximas, mas que a gente trata de forma ligeiramente diferente.

Michael: É basicamente como se a lei considerasse que o bullying é quando é criança, “eles não sabem o que estão fazendo”, e a partir de quando chegam à idade adulta, eles têm noção do que estão fazendo, então pau no seu cu.

Thaís: Mas é interessante que na lei está claramente dizendo que o bullying tem que ser intencional.

Michael: Então, é paradoxal isso, você separar as duas coisas. Você claramente tem um intento aí, tipo, você não tem bullying se você não quer prejudicar o outro de alguma forma. Para se sentir melhor, geralmente. Mas você tem a separação do termo realmente ter essa conotação muito ligada à fase da infância e adolescência. E você meio que ignora isso quando chega na fase adulta. É como a Thais falou, se acontece daí é assédio moral, outra coisa.

Paulo: Eu ouvi até em outro podcast, Educação e Inovação, no episódio número 7, Educação Socioemocional e Bullying, que o bullying tem a característica de acontecer entre pares, entre pessoas que teoricamente estão no mesmo patamar. Por exemplo, de estudante para estudante e, num ambiente profissional, de funcionário para funcionário. Enquanto ao assédio moral, este acontece em uma pessoa que está em um patamar muito acima. Por exemplo, um chefe para um funcionário, um professor para um aluno. Há essas diferenciações também.

Thaís: Acabei de ver que, na verdade, a lei mais recente especifica quatro tipos diferentes de assédio moral. O mais comum é, de fato, o de uma pessoa hierarquicamente superior, que chama assédio moral vertical descendente. Mas tem também o assédio moral vertical ascendente, que é de alguém em posição inferior. Menos comum, mas que pode acontecer. Tem o assédio moral horizontal, que é quando as pessoas estão em posições hierárquicas parecidas, e o assédio moral organizacional, que é quando a empresa, em si, já incita a competição entre as pessoas, já torna o medo, o stress, as ameaças como algo comum do dia a dia.

Na lei, a gente vê que as medidas contra bullying elas tratam principalmente da questão de diálogo e de conscientização. Inclusive, na lei, tem um para evitar a punição da pessoa que pratica o bullying e buscar muito mais o apoio psicológico, tanto da vítima quanto do agressor, para tentar supostamente fazer com que ambos se tornem pessoas melhores. Eu entendo, acho que faz sentido trabalhar a educação.

Como pessoa que sofreu bullying, eu tenho dúvidas de quando você está sofrendo com bullying, isso funciona, mas até o momento ainda é uma discussão relativamente recente que começou nos últimos 20 anos. Provavelmente quando nossos pais estudavam (e quando eu falo “nossos”, estou abrangendo os ouvintes também), quando seus pais estudavam, provavelmente não se falava em bullying e não era algo visto como um problema por um bom tempo.

Michael: Mas eu imagino que essa questão do apelo ao recurso psicológico, tanto para quem sofre quanto para quem pratica, vem muito do preceito de que quem pratica o bullying geralmente veio de um ambiente que é muito hostil, a pessoa que pratica o bullying seria uma forma dessa pessoa de continuar o ciclo de agressão que ele já sofre. Beleza. “Tem alguém lá, meu pai, minha mãe, meu professor, algum fulano que me trata como lixo e como resposta eu vou tratar outra pessoa como lixo também”. Eu imagino que muito dessa questão de primeiro ver do ponto de vista psicológico é evitar uma punição direta à pessoa que pratica, ver muito desse preceito.

Thaís: Pelo que eu li, parte exatamente desse princípio de que muitas vezes o agressor vem de um ambiente hostil, mas é algo também a se tomar cuidado. Às vezes, o ambiente hostil é a própria escola. Não tive tantas experiências em escolas diferentes, mas mesmo nas escolas de que eu gostava, eu senti como um ambiente que apresentava essa hostilidade entre os alunos, principalmente, e muito pouco entre professores. Não me lembro de exemplos disso, apesar de saber que existe. Mas é o tipo de ambiente que, muitas vezes, incentiva as pessoas a se juntarem em um grupo e praticarem bullying contra alguém que está fora daquele grupo. Então, é algo que, ao longo dos anos, vai se alimentando, digamos assim, dentro do próprio ambiente escolar, não necessariamente tendo interferência do ambiente familiar. Imagino que as duas coisas possam potencializar uma ou outra, mas eu não acho que elas sejam excludentes.

Michael: E isso que, se você considerar culturalmente falando, o Brasil não tem tanto incentivo a esse ambiente competitivo nas escolas. Vamos ser honestos, a escola no Brasil, tipo, você faz por obrigação, todo mundo faz por obrigação, todo mundo concorda que é só uma obrigação. Você não tem um ambiente competitivo sendo disseminado dentro da escola como parte da estrutura da escola como você tem países mais desenvolvidos. Geralmente países desenvolvidos têm essa pressão de que a escola é o caminho para o conhecimento que vai te levar para a faculdade e a faculdade vai te levar para você virar gente. Mas como a Thais falou, isso ainda acontece pra caralho aqui.

Paulo: O ambiente brasileiro é diferente, por exemplo, do ambiente americano, do japonês. Aqui, esse bullying acontece mais para uma estima social mesmo, para se destacar no ambiente frente aos pares. Você vai ver o padrão típico que é: um aluno que não está ligando para os estudos, que, por exemplo, vai atormentar outro que se dedica aos estudos por N razões. Em ambientes como o japonês, por exemplo, esse destaque acontece para quem consegue melhores resultados na escola, enquanto que no ambiente americano é para quem se dá bem nos esportes.

Michael: Agora que a gente entrou nessa questão um pouquinho mais estrutural acerca de como o bullying funciona, e em quem ele é focado, autistas têm uma tendência maior a sofrer bullying?

Paulo: Existe bastante trabalho focado na questão da neurodiversidade, em especial o autismo, inclusive tendo trabalhos de revisão em cima disso, para tentar extrair um percentual mais correto, mas esses valores acabam mudando de região para região. Se pegar a população geral, a taxa de vitimização por bullying gira em torno dos 10%, enquanto que com pessoas com algum tipo de deficiência, esse valor é bastante superior e, especificamente com autismo, pode chegar até 94%. Isso é uma pesquisa feita nos Estados Unidos, para crianças que apresentam autismo não verbal. No Reino Unido, a Sociedade Nacional de Autistas sugere uma taxa em torno de 40%.

Michael: Achei interessante você falar que esse estudo nos Estados Unidos teve um foco sobre autistas não verbais, porque quando eu perguntei sobre essa questão, o que me vem à mente é que, apesar de ser muito difícil de se testar, considerando como o bullying funciona, quais são as mecânicas envolvidas e quais são os princípios envolvidos, você tem, no autista altamente funcional, uma vítima muito interessante, por assim dizer.

Você tem uma pessoa com grande dificuldade de interação social, mas que não necessariamente quer estar fora desse meio de interação. Porém, ela tem dificuldades tanto em compreender as formas com que outras pessoas interagem umas com as outras, quanto em se expressar e em passar para as outras pessoas como ela quer se expressar. Então, assim, você cria uma situação em que a pessoa já é meio que naturalmente vulnerável. Acho que deu para entender, né?

Thaís: Eu também vejo os autistas como pessoas mais vulneráveis nesse aspecto, no sentido de terem características que, se alguém está procurando alguém contra quem praticar bullying, parece que o autista tende a ser um alvo muito apto, muito dentro das características adequadas, digamos assim, no sentido de que a pessoa não necessariamente saber depois como reagir àquilo, né?

Quando se pratica bullying, geralmente se espera que a pessoa tenha alguma reação, uma reação seja de tristeza, de medo, de tentar sair daquilo de alguma forma e os autistas às vezes têm uma reação diferente do esperado para pessoas neurotípicas. Então pode ser uma reação mais exacerbada, pode ser uma reação não tão verbal assim, não necessariamente a pessoa sabe como procurar ajuda depois ou como se defender depois. Claro que isso não vale apenas para autistas, mas eu também, olhando de forma leiga, já imaginaria que teriam uma vulnerabilidade maior.

Então, o Paulo trazendo os números é bastante interessante para a gente justamente pensar a respeito disso e pensar no aspecto de como uma pessoa autista pode tentar se defender desse tipo de agressão que é comum e que é bastante difícil de se esquivar.

Paulo: Um padrão que, que eu acredito que torne as pessoas autistas mais propensas a sofrerem bullying, acredito que esteja na questão da dificuldade de interação social. Isso acaba provocando que a gente tenha menos amigos, que seja mais difícil fazer amizades e tendo menos amigos, menos incluídos dentro de um grupo que possa nos defender de agressores. A maior parte dos autistas terão poucos ou até nenhum amigo que possa fazer frente a esse grupo que irá atormentá-los.

Michael: Mas é interessante que uma das coisas que potencializam a vítima a ser escolhida é essa questão de querer ter a interação social. Eu vejo muitos casos de autismo em adultos que têm essa atitude de “eu não preciso de amigos, eu não quero amigos, eu consigo me virar sozinho, eu sou uma pessoa solitária, blá, blá, blá”, mas eu vejo isso muito forte em adultos como uma máscara. Geralmente, eles estão realmente procurando por interação social. Mas quando eles procuravam essas interações quando eram mais novos, sofreram tanto, que chegando na fase adulta, eles já criaram esses mecanismos de defesa para lidar com a situação. É muito fácil alguém acabar virando uma vítima quando é óbvio que ele está em uma situação de vulnerabilidade. Ele tem dificuldades de interação social e se esforça para tentar buscar essa interação e acaba tomando no cu porque o mundo é uma merda.

Falando em casos de estudo, me vem outra pergunta. Quais são as relações de vocês com o bullying? Ambos vocês já comentaram que sofreram bullying na infância, enquanto eu estou em um caso um pouco mais interessante, não interessante no sentido direto da palavra, mas interessante no sentido de ser diferente. E mesmo sendo bastante estereotipado na questão do autismo, eu não sofri muito bullying. Talvez em parte por causa do que vivi na minha infância e adolescência, já que entrei no meio em que o bullying era uma coisa, Columbine já havia acontecido. Eu vi, durante minha adolescência, as culturas em que eu estava inserido ficarem mais mainstream. Passei por várias coisas que vocês não passaram, então por que vocês não começam com a história de vocês primeiro?

Thaís: Tanto na escola quando eu era menor, quanto principalmente no colégio, já havia um pouco mais dessa questão de bullying. Eu não tive nenhum caso extremo, felizmente. Lembro que em outro episódio, alguém comentou que chegou a ser jogado no lixo e coisas assim. Comigo era muito mais uma agressão verbal, por eu ser diferente das pessoas. Claramente eu agia de forma diferente, gostava de estudar bastante, não falava muito com a maior parte das pessoas, tinha um jeito de me expressar diferente e meu vocabulário era claramente fora do comum para o que se espera de alguém no colégio. Então, as pessoas certamente estavam ali procurando tirar sarro de alguma forma.

Mas tem uma característica que esse bullying acabou desenvolvendo em mim que fez com que eu, de certa forma, evitasse ele, que é a minha agressividade. Isso vai exatamente contra o que a gente estava falando ali da lei, de conscientização e de diálogo. Eu fui uma pessoa que tentava dialogar inicialmente. Então, se alguém me incomodava, eu tentava falar: “Por que você está fazendo isso? Qual é a sua intenção com isso?”. Mas uma vez que eu percebia que a pessoa não tinha interesse em dialogar de fato, eu me tornava uma pessoa muito agressiva. E por mais que eu tenha tentado melhorar isso e não ser mais uma pessoa tão agressiva, eu tenho tentado me tornar uma pessoa melhor, mas eu não consigo negar que a agressividade me protegeu muito ao longo tanto da minha infância quanto da minha adolescência.

E uma coisa que ainda acontece, apesar de não ser necessariamente uma agressividade séria, é que eu tendo a reagir de forma extrema quando algo acontece. Então, vamos supor que eu esteja brincando com o meu namorado e ele vem e coloca o dedo na minha costela para brincar, eu provavelmente vou devolver com umas dez dedadas muito fortes na costela dele e, depois, vou pensar: “OK, eu não precisava ter feito tudo isso (risos). Era só uma brincadeira.” Mas esse era o tipo de coisa que acontecia quando eu estava no colégio…

Eu me lembro de um caso em que um rapaz veio e ficou tirando fotos de mim enquanto eu estava na sala de aula. E eu peguei o celular dele e quebrei, espatifei em vários pedaços e joguei no chão, no meio da sala de aula. Tipo: “Meu, não tire foto de mim. Me deixe em paz.” E foi um caso que ficou bastante conhecido, inclusive na escola, e nunca mais ele realmente tirou foto de mim. Nunca mais ele veio me incomodar. Outras pessoas ainda vieram, mas, de novo, muitas pessoas acabavam tendo medo do que eu ia fazer e eu preferia ser conhecida como meio doida e as pessoas terem medo de que uma pessoa meio doida pudesse ir pra cima delas do que ficar sofrendo com o bullying.

Não foi uma forma pedagogicamente boa de enfrentar isso, mas foi o jeito que eu encontrei e, infelizmente, acho que é assim que muitas pessoas que sofrem bullying acabam agindo. Elas encontram um jeito que, às vezes, é ruim e, às vezes, interfere negativamente no desenvolvimento delas ao longo da vida, mas fico feliz que hoje eu esteja tentando ser uma pessoa melhor do que eu era e que o ambiente esteja me permitindo isso.

Paulo: Eu sofri bullying basicamente desde que me lembro como estudante. Eu já era do tipo de criança que era o último a ser escolhido para qualquer coisa. Sempre tive poucos ou nenhum amigo. Houve momentos na minha vida em que passei uma série inteira sem ter qualquer amigo na escola, até meados do ensino médio que eu passei por esses problemas. Foi nesse período que passei pelo problema mais grave, que aconteceu entre a sexta e a sétima série, quando eu tinha de 12 para 13 anos, que foram os casos mais agressivos contra mim, com agressão verbal e também física. Isso acabou reduzindo um pouco na oitava série e no ensino médio, quando comecei a adotar uma postura mais agressiva, embora eu seja uma pessoa extremamente pacífica. Eu aparentava poucas ideias com os outros, ouvindo heavy metal, vestindo preto e andando de coturno, e tudo mais. Isso foi parando aos poucos. E aí, na faculdade, não tive problemas maiores com isso. Ainda hoje, eu tenho uma série de dificuldades, medos, que chegam a beirar a ansiedade, com situações ou pessoas que me lembram aquelas que me atormentavam na escola.

Thaís: E um ponto que a gente não comentou aqui, mas eu acho que é bastante importante a gente lembrar que em alguns casos que levam a quadros de depressão severa, existem casos que levam, inclusive, ao suicídio. A gente já falou sobre o Massacre de Columbine, então existem casos que levam a traumas ou transtornos que podem afetar tanto a pessoa que foi vítima do bullying quanto outras pessoas ao redor. É algo que pode ter um aspecto bem mais geral na vida de alguém, então é bem importante a gente parar pra pensar sobre bullying e não só entender isso como algo que acontece entre crianças, e as crianças não sabem o que estão fazendo, e um dia elas vão crescer, e por aí vai.

Paulo: Isso tem realmente um ponto, porque houve esse período aí, entre a sexta e a sétima série, tive muita ideação suicida na época. Na época, não tive um diagnóstico formal de depressão, até porque era muito menos disseminado o acesso a psicólogos e toda a questão da saúde mental. Eu estive muito próximo de tentar tirar minha própria vida e, até de preferência, levar algumas pessoas junto.

Michael: E, tanto aproveitando o segmento quanto há um pouco da minha história, eu acho que é interessante porque ela está bem dentro desse contexto de inserção da popularidade da ideia do bullying, que ele ocorre, e algumas outras mudanças sociais aconteceram nas últimas duas décadas. No meu caso, eu nunca fui vítima diretamente de bullying, apesar de que, por circunstâncias específicas, por exemplo, eu comecei a me socializar muito tardiamente. Eu só fui começar a ter interesse em interagir com outras pessoas, em criar vínculos mais fortes, aos 14, talvez 13 anos, se eu forçar muito. Ou seja, eu demorei muito para ter interesse em interagir com as outras pessoas. Então, essa falta de interesse em estar com as outras pessoas, entrando em outros círculos sociais, foi um baita escudo. Eu só comecei a me esforçar verdadeiramente para tentar criar vínculos com as pessoas quando eu estava nos 16 para 17.

Então, tipo, minha socialização já foi muito tardia. Ela também ocorreu num momento e num contexto de mudança muito forte. Tipo, eu ouvi as pessoas que tinham gostos e interesses muito parecidos comigo quando eu tinha 12, 13 pra 14 anos – esse começo da minha interação – saírem de uma visão muito excludente. Geralmente, eram muito excluídas pelas bolhas delas. Imagino que seja o caso também que era muito mais endêmico, muito mais comum com você Thaís e com você Paulo, pessoas com interesse em animes, jogos de cartas, etc, jogos RPG e blá blá blá. Essa cultura geek, eu basicamente passei a ouvir a mudança de ver essa cultura sendo extremamente excluída para ser uma coisa mainstream, pra ser algo extremamente comum e extremamente popular.

E onde eu poderia ser vitimizado, assim onde eu poderia ser alvo, eu basicamente não fui, porque eu estava completamente fora desse meio social, era completamente desinteressado. E quando eu comecei a ter a minha socialização, as coisas que facilitariam essa minha vitimização começaram a entrar no mainstream, e eu comecei a fazer parte desse grupo que era mais popular. Então, tipo, eu nunca tive essa oportunidade de ser a vítima. Talvez eu tenha tido de ser o pau no cu, mas eu também não me lembro disso. Eu geralmente sou legal para as pessoas, e eu prefiro ficar sozinho, mesmo quando estou interagindo socialmente, então who cares.

Outra coisa que também me ajudou é que nunca tive que me afirmar como a Thaís e o Paulo falaram, nunca tive que ser agressivo. E principalmente nessa fase dos anos de 2010, aconteceram vários casos disso, inclusive aqui no Brasil na época em que eu era estudante. Como já comentei várias vezes, uma das coisas que eu mais gosto são equipamentos militares. Sempre tive esse interesse e sempre fui aberto pelos meus interesses, tanto para paleontologia quanto para essa parte militar. E uma coisa muito engraçada no meu ponto de vista. Esse episódio é muito contextual. Tem que ficar explicando muitas coisas. Eu não gosto disso também.

Mas continuando, é muito engraçado no meu ponto de vista é que eu sempre tive esse estigma de “não mexam com ele, deixem-no no cantinho dele. Porque se fizerem bullying com ele, ele vai aparecer aqui um dia com uma 12 e matar todo mundo”. Ninguém ia praticar bullying comigo porque ninguém era doido de praticar bullying comigo. E eu era o cara das armas, quem vai fazer bullying com o cara das armas? Ninguém, caralho. Eu sempre estudei em escolas pequenas, com pouca quantidade de gente. Geralmente, pessoas em um contexto bastante humilde e parecido com o meu próprio. Sempre houve pouca diferença pra começo de conversa para instigar esse tipo de situação social. Eu sei, por exemplo, que amigos meus que estudaram comigo no ensino fundamental e foram para escolas particulares sofreram muito mais do que meus amigos que foram comigo para a escola pública. Eu acho que consegui dar um contexto melhor do que estou querendo dizer. Mas enfim, acho que falei tudo o que queria.

E respondendo, já tomando a iniciativa de responder a pergunta, se eu acho que o bullying diminuiu, apesar do output positivo que eu dei, a minha resposta seria “não”. Eu não acho que o bullying diminuiu, mas também não acho que ele aumentou. Ele continua sendo bastante presente. O que acho é que talvez haja uma mudança muito forte naqueles que sofrem bullying. Por exemplo, as pessoas que sofreram bullying na época da Thais e do Paulo hoje são menos propensas a sofrer bullying, porque são menos outcasts do que eram no passado. E mesmo que seja um pau no cu tóxico ficar jogando CS, puta que pariu, vai tomar no cu quem joga CS e LOL, vai tomar no cu de vocês. Mas enfim, acho que é isso que eu queria dizer.

Paulo: A forma como o bullying ocorre está mudando do ambiente escolar para outros ambientes, já se fala bastante em cyberbullying e acho que essa deve ser a forma mais comum hoje em dia. Existem ambientes extremamente tóxicos entre os jogadores de LOL, jogadores de CS…

Thaís: …no meio virtual como um todo, talvez.

Paulo: Exato, até pelos pontos que o Michael levantou, que as coisas que antes excluíam uma pessoa, como gostar de quadrinhos, mangás, animes, já não excluem mais, e vejo que há uma tendência de redução nisso. Não sei dizer se já reduziu de fato, mas essa tendência é clara. No entanto, o bullying vai mudar de ambiente realmente e talvez seja até mais difícil lidar com isso.

Thaís: Eu, que não estou mais em ambiente escolar e não tenho mais nenhuma relação com o ambiente escolar, não tenho filhos, não trabalho em atividades relacionadas a escolas, tenho muita dificuldade em dizer o que mudou em relação ao bullying dentro de uma escola em si, mas eu tenho sido muito menos afetada por isso com certeza. Acho que, pela vida adulta, os adultos agem um pouco diferente em relação a várias coisas e, claro, temos ambientes como estávamos falando de assédio, mas não é o caso em que eu vivo, felizmente. Mas uma coisa que acho boa e importante é que as pessoas estão discutindo mais sobre o bullying, sobre o problema que isso é para a sociedade em geral, não apenas para a vítima, e o que fazer sobre isso. Por mais que não se tenha ainda uma receita de bolo, digamos assim, não se tem um processo perfeito para resolver o problema, mas antigamente isso nem era pauta de discussão. Então, nesse aspecto, já é bastante bom.

O relato do Michael dá a impressão de que o bullying é menos frequente, embora obviamente quando estamos falando de ciência, não podemos pegar apenas um caso para julgar, mas ainda assim é um relato que considero bastante positivo.

Michael: Inclusive, eu queria dar um adendo. Nós falamos muito sobre a questão da cultura geek, que é o que eu imagino que nós três estamos inseridos, mas eu gostaria de dar esse adendo de que existem coisas muito mais sérias, muito mais pessoais, que levam a bullying, como questões raciais, sexuais, de orientação ou socioeconômicas. Não comentamos sobre isso porque imagino que nem hoje estejamos mais nessas situações ou tenhamos passado por essas questões tão fortes, então talvez não sejamos as pessoas mais apropriadas para falar sobre esses casos, mas gostaria de dar esse adendo de que eles existem, são relevantes e provavelmente mais relevantes do que os casos de exemplo que demos de certa forma.

Thaís: Bom pessoal, então é isso que temos para falar por hoje. O assunto é bastante extenso, então recomendo a leitura do que citamos aqui para quem tiver interesse em saber mais sobre o bullying. Além disso, há várias outras fontes, e procurem saber onde vocês podem denunciar o bullying para proteger tanto a vítima quanto tentar melhorar a forma como os agressores tratam sua própria vida e as outras pessoas, para tentar melhorar o ambiente em que vivemos.

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