Introvertendo 217 – Autismo na Adolescência

A adolescência de autistas já é desafiadora, e sem saber sobre o próprio autismo é ainda mais complicado. Neste episódio, revisitamos o nosso passado de adolescentes e falamos de puberdade, hiperfocos, relações amorosas, participação de grupos sociais e relação com a família. Participam: Carol Cardoso, Luca Nolasco, Otávio Crosara e Tiago Abreu. Arte: Vin Lima.

Links e informações úteis

Para nos enviar sugestões de temas, críticas, mensagens em geral, utilize o email ouvinte@introvertendo.com.br, nosso contato do WhatsApp, ou a seção de comentários deste post. Se você é de alguma organização e deseja ter o Introvertendo ou nossos membros como tema de alguma palestra ou na cobertura de eventos, utilize o email contato@introvertendo.com.br.

Apoie o Introvertendo no PicPay ou no Padrim: Agradecemos aos nossos patrões: Caio Sabadin, Francisco Paiva Junior, Gerson Souza, Luanda Queiroz, Luiz Anisio Vieira Batitucci, Marcelo Venturi, Marcelo Vitoriano, Nayara Alves, Priscila Preard Andrade Maciel, Tito Aureliano, Vanessa Maciel Zeitouni e outras pessoas que optam por manter seus nomes privados.

Acompanhe-nos nas plataformas: O Introvertendo está nas seguintes plataformas: Spotify | Apple Podcasts | DeezerCastBox | Google Podcasts | Amazon Music | Podcast Addict e outras. Siga o nosso perfil no Spotify e acompanhe as nossas playlists com episódios de podcasts.

Notícias, artigos e materiais citados ou relacionados a este episódio:

*

Transcrição do episódio

Tiago: Um olá pra você que ouve o podcast Introvertendo, que é o principal podcast sobre autismo do Brasil. Meu nome é Tiago Abreu, sou jornalista, um dos integrantes aqui deste projeto que fala de autismo na vida adulta, inclusive eu sou autista.

Luca: Oi, eu sou o Luca Nolasco, fui diagnosticado aos 16 anos e hoje tô aqui com 22 e convivendo com isso.

Carol: Eu sou a Carol Cardoso, tenho 25 anos e fui diagnosticada com Síndrome de Asperger pelo Orkut aos 14 anos. Vou falar mais detalhes ao longo do episódio.

Otávio: Eu sou Otávio Crosara, tenho 29 anos, diagnosticado aos 22. Eu era estranho na adolescência e não sabia o porquê.

Tiago: E como vocês viram no título, hoje o episódio é sobre autismo na adolescência. E pra quem conhece o introvertendo há mais tempo, sabe que nós tivemos um episódio antigo sobre adolescência que foi o número 58. E por isso o novo episódio vai tratar de alguns assuntos que não foram desenvolvidos lá.

Mas antes da gente discutir realmente esse assunto que com certeza é muito intrigante porque todo mundo já passou pela adolescência ou vai passar, quero contar aqui uma grande novidade.

Quem conhece a história do autismo e até já leu meu livro sobre neurodiversidade sabe que O Estranho Caso do Cachorro Morto, de Mark Haddon, é uma das obras mais importantes e interessantes da nossa história. E agora, esse clássico ganhou uma nova edição da editora Galera, com uma capa colorida super caprichada.

Se você não conhece o livro, ele conta a história de Christopher Boone, um adolescente autista que é fã de Sherlock Holmes e decide investigar a morte do cachorro de sua vizinha. Um aspecto muito legal da narrativa é que você vai entendendo tudo a partir da perspectiva do personagem, e a abordagem sobre o autismo aqui é bem leve.

Se você quiser adquirir o livro, clica no link que está na descrição do nosso episódio!

Bloco geral de discussão

Tiago: Quando a gente fala sobre a adolescência, talvez a primeira coisa que as pessoas pensam é em puberdade. Qual foi o primeiro sinal pra vocês que vocês estavam passando pela puberdade ou vocês tiveram dificuldade para reconhecer isso?

Otávio: Quando a minha voz começou a ir de muito aguda pra muito grave, pra muito aguda, pra muito grave, pra muito aguda, pra muito grave, a ponto me dar um problema de personalidade. Isso foi horrível porque a minha voz não estabilizava. Todo mundo achava que eu estava fazendo graça. Eu não estava. Tá. Eu estava. Alguns momentos eu estava. Mas não era sempre. Entendeu? Eu falava sim com e voltava rapidão. É horrível!

Carol: (Risos)

Otávio: Imagina quando eu estava tentando falar sério. Ninguém me levava a sério.

Luca: O pessoal geralmente fala que você sabe que está na puberdade quando começa a ter desejos e pensamentos um pouco diferentes. Mas se for assim minha puberdade começou com 17 anos. O meu corpo mudou mas eu continuei meio bobão, sabe? Meio menino idiota até uns 15, 16. Eu simplesmente percebi que tinha entrado na puberdade quando as pessoas começaram a me tratar diferente porque eu já tinha mais de um 1,85 e tinha essa voz com 14, 15 anos.

Carol: No meu caso, como uma mulher cis, a puberdade começa num momento bem específico e envolve sangue. Então basicamente a minha puberdade teve um sinal muito claro e isso aconteceu quando eu tinha 9 anos e a partir disso parece que tudo mudou. Foi uma mudança muito clara de personalidade e eu comecei a ficar muito mais melancólica, eu comecei a ter muito mais dificuldade pra me relacionar com as pessoas e eu sempre fiquei achando que ninguém gostava de mim. Então eu me tornei uma pessoa ansiosa e depressiva a partir da puberdade justamente.

Tiago: Nossa, vocês estavam falando e eu pensando aqui que particularmente não tive uma memória assim específica: “Ah nesse momento eu entrei na adolescência”. E nesse contexto da adolescência, principalmente pra nós que tivemos um diagnóstico tardio porque todo mundo aqui foi diagnosticado só na vida adulta, adolescência é esse período que além do seu corpo mudar, do seu emocional mudar (como a Carol disse), que passa por muitas coisas, também é um momento que a gente sofre muitas mudanças em relação aos grupos sociais. E os grupos sociais se diferem muito em relação aos gostos. O que você gostava quando você era criança no espaço de um ano tudo muda, as referências, aquilo que é admirável ou não. Como era a questão dos hiperfocos, dos temas de interesse restritos de vocês? Teve uma grande cisão de criança para adolescente ou vocês demoraram assim pra entrar nessa transição?

Otávio: A minha transição da infância pra adolescência foi muito mais sútil do que da adolescência para a vida adulta. Porque eu sempre fui criado assim numa bolha, certo? Não que eu ache ruim. Então assim, as minhas responsabilidades continuaram as mesmas. Casa, escola, escola, casa. Na questão de hiperfocos, eu comecei a me interessar demais, mas assim, demais, eu tava obcecado, foi quando eu comecei a ler Sherlock Holmes. O que isso reflete? Eu comecei a ficar interessado por coisas mais psicológicas, eu parei de interessar por Digimon. Esse é o pulo que eu dei: de Digimon pra Sherlock Holmes. E eu acho que isso retrata bem a mudança de foco.

Luca: Diferente do Otávio, os meus hiperfocos continuaram os mesmos, inclusive Digimon. Eu e meu irmão a gente assistia Digimon e One Piece dos meus 9, 10 anos de idade até os meus 15. Então os hiperfocos continuaram os mesmos, a mesma coisa, só mudou que eu passei a ter um pouco de vergonha de falar que: “ah eu assisto Digimon, porque vai que pensam que eu estou vendo desenho de criancinha, né?”. Hoje em dia eu falo sem o menor vexame. Mas sinceramente não mudou muita coisa.

Otávio: Tem um meme que é muito rodado na internet. Ele fala: você na infância joga Pokémon. aí você entra na adolescência e fala: “não, Pokemon é coisa de criança”. Aí você entra na faculdade e você vê que tá todo mundo jogando Pokémon de novo.

Tiago: Inclusive eu.

Carol: (Risos)

Otávio: Exato. É como se você amadurecesse da necessidade de amadurecer, entendeu?

Carol: Hmm. Quando eu era criança eu não tinha tanta intensidade nos meus hiperfocos. Isso ficou mais intenso na adolescência até porque quando eu era criança eu brincava muito em espaços abertos. Então a minha interação, a minha minha vida, quando eu não estava na escola, era basicamente brincar na rua ou brincar no quintal.

Quando eu fui ficando mais adolescente e as pessoas da rua começaram a não querer mais brincar. Eu comecei a me isolar um pouco mais e eu comecei a ficar mais ansiosa e as pessoas da escola meio que não me davam muita importância também. E era muito mais difícil fazer amigos e eu precisava ocupar o meu tempo com outras coisas.

E eu comecei a ter um hiperfoco em inglês e era uma coisa bem intensa assim, eu passava o dia inteiro lendo o dicionário de inglês e aí depois eu comecei a ficar viciada na Revista Superinteressante, eu li todas as revistas desde a primeira edição que foi lançada em 1987 e eu lia de todos os meses, eu li na ordem todas as revistas porque antigamente o banco de dados deles era aberto, era disponível para qualquer pessoa no site. Então eu basicamente só fazia isso no meu tempo livre.

E aí um derivado desse hiperfoco na Superinteressante é que teve uma edição que eles falaram sobre sonhos. E aí eu fiquei extremamente hiperfocada no tema dos sonhos. E eu cheguei num livro que falava sobre sonhos lúcidos e foi muito interessante essa época porque eu achava que eu poderia viver tudo que eu não vivia na vida real dentro desses sonhos lúcidos. Então eu fiquei muito focada em conseguir essa habilidade de ter sonhos lúcidos.

Pra quem não sabe, o sonho lúcido é quando a gente acorda dentro do sonho e percebe que está sonhando e se a gente se esforçar muito e desenvolver essa habilidade, tem um método assim pra fazer isso, a gente consegue manipular o que acontece nos sonhos. Então eu muito que isso acontecesse porque eu queria que eu inventasse amigos pra mim, que eu inventasse um romance, que eu tivesse uma vida diferente, que eu conseguisse interagir com as pessoas dentro do sonho meio que pra não precisar fazer isso na vida real.

Luca: Só entrando numa minúscula vertente do que a Carol disse, os meus hiperfocos apesar de não terem mudado da infância à adolescência, a intensidade deles mudou muito. Porque na infância eu assistia desenho animado casualmente, já na adolescência eu assistia quase competitivamente. Eu queria saber absolutamente tudo sobre Digimon, tudo sobre One Piece, assisti 500 capítulos facilmente. Então a intensidade das coisas de fato mudou bastante.

Otávio: Concordo com o Luca. Eu já assisti anime, mas na adolescência foi um ponto de virada pra mim também. Eu comecei a assistir animes que nem todo mundo assistia. Eu virei um hipster de animes, sabe? Naruto, Bleach, One Piece, que eram os três grandes daquela época. E se você pensar assim, eu já tô com quase 30 anos, eu assisto desde que eu tinha 14, 16 anos e One Piece segue firme e forte, viu? (risos).

Tiago: Vocês falaram sobre mudar o hiperfoco ou não conforme a idade e eu quero acrescentar uma coisa que eu acho que é muito importante, principalmente no meu caso. Às vezes o seu hiperfoco se mantém, mas o mundo muda. E foi isso que eu experimentei na minha adolescência, que foi entre 2009 até 2013. Porque, por exemplo, eu era um colecionador ávido de cartões telefônicos de orelhão. E exatamente no final da década de 2000 eles pararam de ser diferentes, de terem coleções. Então, parou de fazer sentido. O mundo me forçou a parar de ter hiperfoco em colecionar cartões telefônicos.

Outra coisa que eu posso consolidar é que eu tive o interesse a vida inteira por áudio, por música, e isso amadureceu conforme o mundo mudou também. Porque na adolescência, tendo acesso à internet, eu consegui usar esse meu interesse restrito em outros contextos, como escrever sobre música, discutir publicamente.

Então, eu vejo que, ao mesmo tempo que os nossos interesses podem mudar, muitas vezes o contexto social ao qual a gente tá incluso acaba forçando essa mudança ou não, principalmente a gente que veio de um período em que a internet, a tecnologia avançou de forma galopante nos últimos 10 anos, foi uma coisa assim, surreal.

Otávio: Basicamente a gente deixou de ter hiperfoco casual pra ter hiperfoco competitivo na adolescência. Acho que dá pra resumir desse jeito (risos).

Tiago: Sim, eu acho que faz sentido, principalmente porque socialmente a gente tem aquela coisa de que a adolescência já é um processo transitório pra vida adulta, que você começa a pensar em trabalho, em profissão, o que você vai fazer. Então, no meu caso, por exemplo, foi a época que eu comecei a usar os meus interesses restritos pra alguma coisa que fosse “produtiva”, sabe?

Mas voltando nesse núcleo mesmo da adolescência, uma parte muito importante e que a gente até já falou em episódios anteriores, como episódio 141 de saudade, adolescência é o momento de algumas experiências muito importantes, muitas vezes o primeiro beijo, a primeira transa, que são coisas que as pessoas contam sobre isso e se orgulham. E lá naquele episódio 141 de saudade, a gente falou que é difícil alguns autistas terem saudade desses da vida se eles não viveram isso, né? E que é algo muito triste.

Então, eu queria saber a noção de vocês sobre relações amorosas: ela é parecida com as pessoas socialmente, só que vocês conseguiam ou não experimentar no mesmo nível? Ou vocês eram totalmente desinteressados?

Otávio: Eu era interessado, mas eu não conseguia essas experiências. Questão amorosa demorou um pouquinho mais pra aparecer. Eu tive algumas experiências, mas nada marcante. E eu tanto na adolescência quanto na infância eu nunca me dei bem com gente da minha idade. As típicas experiências da adolescência eu não tive na adolescência por uma série de razões.

Luca: Apesar de ter tido minhas primeiras experiências por volta de 17 anos, eu não sei, eu acho que eu não tinha tanta vontade de ter experiências sexuais e coisas assim até os 16, 17. Mas eu era muito carente, eu queria só carinho e ser amado (risos). Então, eu não sei descrever se é quase como um meio termo entre aquele negócio de “eu quero ter amigos” como é na infância e “eu quero namorar” como é na adolescência. Eu estava no meio termo de “só eu quero ter alguém com quem eu possa desabafar e me abraçar depois” (risos).

Tiago: Pra mim já foi uma coisa muito mais de conformidade social. Eu via que as pessoas da minha idade com 12, 13 anos, já estavam ficando, tinham historinhas de pegação em alguns lugares, gente já tendo suas primeiras experiências sexuais e eu tinha dois lados. Um lado meu evitava, porque afinal eu era uma pessoa religiosa e eu seguia os preceitos religiosos à risca, então não queria ter experiências maiores. Outro lado meu queria ter pelo menos ali um namoro ou alguma coisa assim e desenvolver algumas habilidades.

E era algo que parecia completamente inalcançável pra mim. Na minha percepção, em algum momento da vida, eu ia me dar bem. Mas não seria naquele momento. Mas aí ao longo da adolescência, principalmente ali dos 16 pra frente, eu comecei a ter a noção real do quão distante eram as minhas habilidades e aquilo que eu poderia conseguir em relação às outras pessoas, que era algo que eu não tinha com 14, com 13 anos. Então acabou se tornando uma coisa bem chata. E é claro, isso também tem relação com a questão da sexualidade. Era muito mais difícil realmente conseguir ter experiências como as outras pessoas porque eu não era como as outras pessoas.

Carol: Comigo aconteceu basicamente a mesma coisa de um jeito um pouco diferente. Eu lembro que teve um marco imenso nessa transição que foi a chegada de uma colega na escola e ela era um ano mais velha. E só isso já fez muita diferença porque parece que ela teve um efeito Regina George em todo mundo, sabe? Parece que ela era rainha da escola e todo mundo queria ser igual ela. E parece que a partir desse momento todo mundo começou a pensar em namoro e ela foi a primeira menina da escola a começar a namorar da minha turma, no caso. E acabou gerando uma grande cobrança das outras em relação a isso.

E eu não tinha nada a ver com isso, sabe? Muito menos ainda porque eu me interessava por meninas. Eu inclusive tinha uma crush nessa menina. Mas eu não entendia assim nessa época. E eu só comecei a entender isso quando eu tinha uns 15 anos. Então passei o ensino fundamental inteiro sem ter nada nem próximo de uma relação amorosa, nem de conhecer alguém, nem de me apaixonar, nem de nada disso.

E quando a primeira vez que eu fiz uma colega lésbica, ela era da igreja. Então eu também tenho essa coisa de ter essa vida religiosa e me privar de ter essas relações por causa disso. E ela me falou que ela era lésbica. E aí eu falei pra ela que isso era errado e que tudo bem ela ser lésbica, mas ela não poderia viver isso, ela tinha que ser feira. Porque se ela era assim, significava que a vocação dela era ser freira, já que ela não ia se casar com um homem.

E eu realmente acreditava nisso. Então o quanto que isso tinha um peso pra me atrapalhar de viver alguma coisa assim. Tanto que a primeira pessoa com quem eu fiquei, eu já tinha 18 anos. E eu evitava ter contato com as pessoas mais próximas assim porque eu morria de medo de alguém descobrir porque eu estava no ensino médio e eu nunca tinha beijado ninguém. E eu mantinha um certo afastamento, eu morria de vergonha. A primeira vez que eu falei abertamente sobre isso com alguém foi com uma amiga que eu fiz no ensino médio com 16 anos.

Tiago: E aí entra a questão da rigidez de pensamento do autismo porque principalmente no caso da Carol e do meu, que envolve uma questão de religião, sexualidade, que a gente até já discutiu também em outros episódios como 131 – Autistas Ex-Evangélicos, aquilo que a gente leva a sério a gente leva a sério de verdade, muito mais do que as outras pessoas que tem uma visão mais flexibilizada sobre o assunto.

E a adolescência é aquele período em que as dificuldades de interação social do autismo, que é um ponto central das características, acabam ficando bem acentuadas. Porque adolescência é esse momento que você quer fazer parte do grupo, que você quer pertencer, que você não quer soar estranho ou esquisito. Vocês percebiam grandes dificuldades para se encaixar em grupos? Como é que era isso? Principalmente no contexto da escola, porque eu acho que é o mais visível.

Otávio: Eu lembro que no final da minha infância eu mudei de colégio e eu tinha um grupo muito fechado de amigos. Eu tinha um grupo muito forte de amigos. Eu mudei de colégio e lá eu não fiz amizades. Amigos não me faziam falta. Agora o fato de não fazer falta me incomodava demais. Eu estou bem numa situação que ninguém está bem. Então tem alguma coisa errada comigo. A expectativa de ter relações de amizade doía mais do que a ausência de relações de amizade.

Luca: Eu nunca tive amigos de verdade na escola. Até hoje na faculdade eu não tenho amizades profundas. Eu tenho colegas com quem eu converso vez ou outra, mas durante a infância até a adolescência de fato não tinha. O ápice foi aos 15 anos onde eu precisava levar livro, quadrinho, jornal, o que fosse, pra eu ficar ocupado durante os intervalos porque ninguém nem olhava pra minha direção.

Mas minha capacidade social durante essa transição da infância pra adolescência piorou muito. Porque durante a infância pelo menos eu conseguia conversar com os colegas de sala, conseguia manter uma boa relação apesar de não ser amigo de ninguém. Mas durante a transição pra adolescência, eu fui perdendo essa capacidade e progressivamente me isolando até ficar realmente completamente sozinho. Hoje em dia eu já tô bem melhor quanto a isso, ainda bem. 

Carol: No começo da minha adolescência, por volta dos 11, 12 anos, foi o período que eu tive mais dificuldade pra ter amigos. Então eu basicamente passava o tempo sozinha. As pessoas com quem eu conversava não era de uma forma muito profunda. E eu também levava livro e ficava me distraindo durante o recreio e o intervalo entre as aulas principalmente pra ninguém falar comigo.

Então eu lia ou eu desenhava muito e se alguém viesse me perguntar e puxar assunto sobre aquilo eu não respondia, porque eu não sabia como responder. Eu simplesmente queria conseguir, queria conseguir interagir, mas eu sabia que eu não ia conseguir conduzir uma conversa sobre aquilo. Então eu não respondia e isso devia ser muito esquisito pras pessoas e isso me impedia de desenvolver alguma amizade mesmo que tivesse a ver com interesse em comum. E eu só comecei a me encaixar em grupos assim depois da metade do segundo ano do ensino médio, que aí pro fim do ano eu já comecei a ter um grupinho.

Mas a questão do grupo eu acho que é muito legal mencionar também o ambiente online. Porque foi nesse período que eu comecei as comunidades do Orkut. Teve duas comunidades que eu comecei a participar nos meus 13 anos por aí e a primeira foi “Eu sou estranho” (risos). E eu achei engraçado porque isso lembra muito a história do Tiago, que ele entrou naquele grupo do Orkut que ele… Ah, fala aí Tiago, eu esqueci agora como é. Aquele grupo de transtorno…

Tiago: Ah, era de transtorno esquizóide, mas era Facebook na época.

Carol: Ah, era Facebook? Nossa, mas eu entrei no Orkut e também teve um um grupo de transtorno de personalidade esquizóide. Então eu entrei primeiro nesse grupo de “Eu sou estranho”, depois eu entrei no grupo de personalidade esquizoide e depois eu encontrei um grupo do Orkut que era “Eu tenho Síndrome de Asperger”. E aí eu amei esse grupo e basicamente por isso que eu falei que no começo eu fui diagnosticada com Síndrome de Asperger com 14 anos. Então no tempo de dois anos eu fiquei participando desses grupos de pessoas estranhas e eu me senti muito parte de um grupo nessa comunidade, eu conversava muito, e eu falava sobre crises por exemplo, do que que causava crises.

E mesmo que eu não tivesse diagnóstico, eu me sentia muito acolhida ali. Depois que a minha psicóloga disse que achava que eu devia ser diagnosticada na infância, então provavelmente eu não era autista, eu deixei isso de lado e perdi essa oportunidade de continuar conversando, porque eu me sentia uma impostora de estar nessa comunidade sendo que eu não tinha diagnóstico. E aí eu parei de falar com todo mundo e só comecei a ter uma amizade maior depois que eu saí desse ambiente online e finalmente fiz uma amizade que me proporcionou várias outras amizades e hoje eu consigo ter uma rede de amigos bem legal assim.

Tiago: Eu passei por maus bocados nessa questão de grupos sociais. Se eu contar vai ser muito longo, mas eu lembro que aos 13 anos, no final do ensino fundamental, eu tinha alguns colegas que eram os mais quietos da turma, eles eram um grupinho assim. E eles deixavam eu ficar perto deles ali, convivendo com eles no recreio, e um dia eles deixaram bastante claro: “Olha, a gente deixa você aqui com a gente porque senão você fica sozinho aí na escola conversando com o pessoal da limpeza”, porque eu não fazia parte de grupo nenhum e ficava vagando pela escola durante o recreio. Mas eles deixaram bem claro que eles estavam fazendo isso por dó e não porque eles necessariamente gostavam de mim 100%. Que eles me achavam insuportável.

Eu realmente era insuportável nessa época. Eu fui uma criança que falava pelos cotovelos. Eu era muito comunicativo, mas é aquela questão do autismo, regras sociais eu era péssimo mesmo né. E isso continuou todos os anos seguintes. Eu entrei no ensino médio numa escola que tinha um nível socioeconômico diferente do que eu estava acostumado, culturalmente tudo muito diferente. E eu estudei em instituto federal e aí eu me vi numa situação mais excludente ainda. Eu realmente não me dei bem com os meus colegas de uma forma geral.

Eu tive um colega que me identifiquei bem, mas ele foi embora pro Rio de Janeiro e depois ele fingiu que eu não existia. E no final do ensino médio eu fui me aproximando até de um colega meu que me tolerava porque eu era bem esquisito e tal, eu era uma pessoa ultra religiosa e ele ateu, mas muito gente boa. Inclusive hoje nós somos super amigos, eu vou até estar no casamento agora em julho. Basicamente eu não consegui fazer parte de grupos nenhum, eu não tive nenhuma amizade durante o ensino médio e isso me causava um sofrimento muito grande. Foi isso que me levou ao diagnóstico de autismo.

Eu já falei aqui várias e várias vezes, então não vou repetir. Quem não conheceu, ouça os outros episódios do Introvertendo. Mas foi aí que eu comecei a ter a sensação de: “ai, eu sou estranho, sou diferente, o que há de errado comigo”, essa coisa que me acompanha a vida inteira que eu não sei o que é. Ao mesmo tempo, a única gota social que eu tinha era internet, então eu frequentava muitos grupos, primeiro as comunidades do Orkut, depois dos grupos no Facebook, fiz amizades virtuais e eu cometi muita gafe social, já fiz cada coisa na internet que ainda bem que não está registrado porque eu realmente teria muita vergonha.

Mas no final das contas, no final da adolescência, eu cheguei com a sensação de que eu estava completando 18 anos e que eu não tinha nenhuma amizade, nenhum vínculo social, chegava o final de semana se eu tivesse que ir pra algum lugar na cidade, eu não tinha pra onde ir, eu não conhecia nada da cidade, não tinha grupo social, não tinha temas de interesse, então era algo que causava muito sofrimento. E eu só fui ter a dimensão profunda desse sofrimento no final do ensino médio, porque muita coisa que eu passei nem eu consegui interpretar direito.

Mas já que a gente já pesou o clima aqui um pouco, eu queria falar com vocês sobre a questão da família. Aqui no Introvertendo a gente tem muitos autistas que ouvem a gente. Eu arriscaria dizer que pelo menos metade da nossa audiência são autistas, mas tem muitos profissionais e familiares e muitos desses familiares tem filhos crianças hoje. E eles ouvem a gente pensando, tentando imaginar quais são as coisas que seus filhos vão viver na adolescência, na vida adulta e fazer com que os seus filhos sofram menos do que a gente sofreu também.

E aí eu queria saber de vocês como era a relação de vocês com a família. Ela piorou, melhorou? Como é que era essa questão do vínculo mesmo do ambiente de família? Já que a gente foi diagnosticado tardiamente e a gente tem com certeza experiências diferentes dos pais que ouvem a gente.

Luca: Eu tinha uma relação muito boa com meus irmãos durante a infância e com meus pais. Conforme eu fui ficando mais velho, essa relação foi se deteriorando até atingir o piso mais fundo quando eu tinha uns 17 anos. Não teve briga, não teve nada, só falta de contato, me fechar muito, não saber como me abrir pras coisas. Mas se isso acalma quem está escutando e às vezes está preocupado ao ouvir isso, foi melhorando muito. Conforme eu fui ficando adulto, eu fui reaprendendo a conversar com a minha família, a me abrir, a expor uma fragilidade da qual eu não conseguia admitir pras pessoas. Então foi uma curva. Ficou ruim, depois melhorou e agora está ótimo.

Carol: Eu tinha muita dificuldade de interagir com qualquer pessoa fora do meu convívio e era dificuldade de não falar. Simplesmente a mamãe querer arrancar alguma palavra minha de tipo: “ah fala com fulano”. E nem sabia dizer oi. E eu tinha as minhas habilidades sociais bem atrofiadas num certo período da adolescência e eu era muito estigmatizada pela família. Todo mundo sabia que eu era essa pessoa que não conseguia falar, que tinha algum problema e que chamavam de “bicho do mato”, “matuta” e tinha gente que achava que eu fazia isso pra chamar atenção. Então era bem ruim, principalmente quanto à minha família estendida porque a minha família é imensa. O meu convívio familiar mais próximo era uma um grupo de mais ou menos vinte pessoas. E principalmente as minhas primas, eu sinto que elas foram minhas grandes amizades na minha adolescência inteira, era com elas que eu interagia.

Também tem uma coisa importante. Geralmente quando se fala de família e autismo, as pessoas consideram os pais e os cuidadores ou sei lá pessoas assim que cuidam, mas não pensam tanto sobre as outras partes da família, então primos, pessoas da mesma idade, os conflitos que podem acontecer nesse sentido. E já teve até um episódio aqui no introvertendo sobre irmãos de autistas, então vou falar um pouco sobre a relação com a minha irmã. Era como se eu fosse uma sombra dela porque ela era o total oposto de mim. Ela era hiper sociável, ela tinha um grupo de amigos imenso e ela tinha namorinhos e essas coisas então era totalmente o que eu queria ser. E eu por muito tempo queria me apropriar dos amigos dela porque era como se fosse um atalho pra ter uma socialização.

Então sempre que ela ia sair pra algum lugar eu queria ir junto e eu ia. E eu acho que a mamãe ficava com pena de não deixar eu ir porque eu não tinha amigos. Então ela deixava eu ir. E ela incentivava que eu fosse. E isso acabava atrapalhando muito a relação dela com as pessoas porque tinha certas coisas que ela não queria falar perto da irmã mais nova, né? Ao mesmo tempo, eu não queria não ter essa interação porque eu sentia que as únicas amigas que eu tinha eram as amigas da minha irmã. E por muito tempo eu não percebia o quanto isso era ruim pra ela. Até um dia que eu ouvi ela falando sobre com uma outra amiga e isso me magoou demais, eu chorei muito.

E eu lembro que tem um marco muito importante que quando a minha irmã foi fazer a formatura dela da oitava série, ela tinha muitos amigos, foi aquele momento de choro, de euforia da adolescência e quando eu fui fazer a minha formatura da oitava série, eu não tinha absolutamente nenhum amigo, tanto que eu passei um mês antes desse dia da formatura treinando como seria o meu sorriso pras fotos e claramente era um sorriso forçado (risos), mas eu tentei memorizar os movimentos faciais pra ver se eu conseguia sorrir.

E quando eu cheguei em casa, eu chorei muito porque eu percebi que eu não tinha nenhum amigo, que foi uma noite péssima pra mim, muito deprimente, que eu via as pessoas fazendo montinhos, tirando foto em grupo e eu não tenho nenhuma foto desse tipo e eu basicamente só participei disso porque a minha família insistiu.

Tiago: A minha relação com a família, com o núcleo familiar, não mudou tanto na verdade. Eu vejo que no meu núcleo mãe, pai, irmão mais novo, meu irmão nasceu exatamente quando eu estava entrando na adolescência, o maior impacto que eu tive foi ele e foi sempre com uma relação muito boa. Eu amo meu irmão, meu irmão se dá super bem comigo. Agora que ele está entrando também na fase da adolescência e ele é brilhante assim em alguns aspectos que eu nunca vou ser na vida.

Mas eu vejo que com parentes, esse núcleo mais distante, primos, tios que a Carol citou, eu me tornei mais retraído da adolescência até a vida adulta. Porque quando eu comecei a ser mais consciente das minhas gafes sociais, as minhas dificuldades sociais, das situações desagradáveis que eu tinha querendo ou não envolvendo os outros por comentários ou por ações minhas, que é coisa de criança, mas ao mesmo tempo coisas bem típicas do autismo, eu comecei a sentir muita vergonha de quem eu era e também de certa forma de sentir um pouco diferente de todo mundo, sabe?

Ao mesmo tempo eu queria ter o vínculo com as pessoas, mas eu sempre me sentia esse corpo estranho. E foi exatamente no início da adolescência que isso começou a ser mais forte, mais vívido e eu lembro que eu fiquei 6 anos sem visitar a cidade natal da minha mãe que é Paratinga de 2010 até 2016 por causa disso. E foi só na vida adulta que eu comecei a lidar com isso de novo, a me aproximar dos meus parentes, a ter vínculos de novo. Como adulto ter uma postura diferente e com o diagnóstico de autismo entenderem. Ah porque eu era de tal forma, de tal jeito. E hoje a relação é muito boa, muito saudável.

Eu percebo que a família é um ponto muito importante para autistas, não só porque é importante pra todo mundo, mas quando a gente tem dificuldades de interação social e de comunicação, acaba que pouco da nossa socialização é a nossa família, como a Carol disse, por exemplo, a questão da irmã. Então, ter isso de uma forma um pouco desestruturada ou de uma forma caótica realmente tem um impacto significativo, né? E eu particularmente fico feliz, na verdade, que hoje em dia a gente tem diagnósticos mais cedo, que tem famílias que são mais engajadas na questão do autismo que são coisas que a gente realmente não viveu.

Do passado a gente olha, às vezes não é muito legal, às vezes é um pouco triste, mas a gente está aqui e a gente amadureceu, a gente é adulto hoje, passou pelo processo e eu acho que é isso que importa, né? E antes da gente terminar o episódio, tem áudio pra tocar aqui. Então vamos lá.

Telma: Oi pessoal do Introvertendo, meu nome é Telma Cardoso. Não sei se eu sou parente da Carol, mas eu moro bem distante dela, eu sou paraibana, servidora pública e conheci o podcast de vocês em novembro de 2021 quando começou a minha saga em busca do diagnóstico. E nesse meio tempo eu ouvi todos, absolutamente todos os episódios do do Introvertendo. Então de certa forma vocês me acompanharam nesse processo até que meu diagnóstico foi oficialmente fechado mês passado, né? Eu sou autista e TDAH.

Eu não consigo mensurar a importância que vocês tiveram ao longo de todo esse meu processo de redescoberta mesmo, de entendimento de quem eu realmente sou. Então, eu tô mandando esse áudio principalmente pra agradecer pelo trabalho que vocês desenvolvem aqui no podcast, não só de conscientização sobre o autismo, de combate ao capacitismo, mas eu acho que principalmente porque vocês promovem esse lance da autoaceitação, da compreensão do que o autismo significa nas nossas vidas.

Então, é isso, pessoal. Muito obrigada por tudo. Continuem com esse trabalho incrível do introvertendo e do lado de cá eu garanto que eu continuarei sendo um ouvinte assídua. Um abraço pra todos vocês.

Luca: Muitíssimo obrigado Telma, de verdade. Uma coisa que a gente nunca, nunca, nunca cansa de ver, é as pessoas felizes por terem gostado ou achado interessante o nosso conteúdo. Então, receber uma mensagem como a sua é sempre gratificante. Obrigado de verdade.

Otávio: Pra você que quiser mandar um áudio, pode mandar um áudio por WhatsApp no número 62 99465-6787. Não façam áudio de mais de dois minutos, certo? Nós ouviremos e se ele passar pelo nosso controle de qualidade possivelmente nós vamos publicar.

Tiago: E então é isso pessoal. Em julho a gente vai ter um período de férias pra dar uma descansada. Então esse é o último episódio por enquanto. E em agosto a gente retorna com uma série muito especial de autistas e regiões do Brasil. Se você quiser saber mais detalhes, acesse as nossas redes sociais e lá saiba até como participar, beleza? Um abraço pra você e até agosto.

(Fim do episódio)

Otávio: Esse episódio ficou deprimente bem rápido, viu? Poxa…

Site amigo do surdo - Acessível em Libras - Hand Talk
Equipe Introvertendo Escrito por: