Introvertendo 216 – O Enquadramento da Experiência

Muitas pessoas partem do pressuposto de que quando uma pessoa é autista, ela consegue falar apenas sobre o seu próprio autismo. Falar sobre as próprias experiências pode trazer audiência, mas também limitações. Neste episódio que é uma espécie de ensaio narrado, Tiago Abreu disserta sobre o que chama de “enquadramento da experiência”, as relações com o capacitismo e as suas consequências. Foto: Edilson Ribeiro. Arte: Vin Lima.

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Transcrição do episódio

Tiago: No início de 2021, estava dando uma entrevista para uma jornalista sobre autismo. Ela me perguntou qual era o impacto da pandemia na minha vida. Comecei dizendo que no meu caso não teve impacto algum, mas que no círculo social de autistas que conheço… Ela me interrompeu e disse: “eu quero a sua experiência”.

Aquilo definitivamente quebrou todo o bom humor restante que sobrava. E como você já deve ter percebido, este não é um episódio comum do Introvertendo. Então, boas vindas ao enquadramento da experiência.

(Abertura)

Tiago: Meu nome é Tiago Abreu. E se você chegou no Introvertendo de paraquedas, pela primeira vez exatamente neste episódio, eu sou jornalista, escritor e olha… também estou no espectro do autismo.

Como disse, eu estava dando uma entrevista para uma jornalista. E, sendo jornalista, sei que nós criamos alguns recortes para tornar nossas pautas possíveis. E é claro, também, eu tinha entendido que minha função ali era limitada. Mas queria desafiar, alargar perspectivas, oferecer mais do que as pessoas podem esperar de alguém que está ali como “autista”.

O corte dela me revelou uma frustração por dois motivos: Em primeiro lugar, eu simplesmente não poderia fornecer o que ela queria, que era uma experiência que representasse com exatidão os impactos da pandemia nos autistas. Em segundo lugar, eu tinha algo muito mais rico, que era o impacto coletivo, a amostra. Poxa, querendo ou não, eu trabalho diariamente com um monte de autistas.

Eu poderia falar mil coisas sobre como alguns colegas jornalistas me fazem sentir vergonha da profissão, mas a atitude dela revelou um problema não só de jornalistas. Foi a partir daquele dia que comecei a pensar mais profundamente em uma coisa que passei a chamar de “enquadramento da experiência”.

Mas o que é o “enquadramento da experiência”?

  1. É a ideia de que ser autista lhe dá a possibilidade de conhecer e falar apenas sobre o seu autismo;
  2. E falar sobre o autismo de forma mais geral ou conceitual é para um observador externo, “neutro”, que geralmente é o profissional (e quando falo profissional, é tanto da saúde ou da educação);

É importante deixar bem claro aqui que eu não estou inventando a roda. Coisas parecidas, com outros nomes, já foram mencionadas por ativistas históricos do autismo como Jim Sinclair. E aliás, esse fenômeno pode ser visto facilmente em outros âmbitos com outras nuances.

Um exemplo são as pessoas negras e a experiência com temas como racismo. Existem pessoas negras que vão estudar questões de raça de um ponto de vista conceitual, ou até estudam sobre qualquer outro tema. Mas para elas, e especialmente em datas específicas, o que as pessoas e até jornalistas querem saber – e que permitem saber – é a experiência pessoal com o racismo, ,esmo que essas pessoas tenham muitos outros aspectos de vida ou profissionais para abordar. Isso demonstra um certo enquadramento, uma redução.

É isso que estou querendo chegar. O enquadramento da experiência, essa ideia de que autistas expõem suas experiências com o autismo, é uma espécie de redução. E essa redução tem duas funções, uma positiva e outra negativa.

  1. Quando você observa algo, reduzir pode ajudar que você consiga aprofundar o ângulo. É tipo uma câmera fotográfica com aquelas lentes potentes, sabe? Dando zoom, você consegue ver os rostos das pessoas que estão posando até melhor. Quando autistas falam de suas próprias experiências, você está trazendo algo que as pessoas sequer prestavam atenção antes. É um ato de especificar;
  2. Mas quando você especifica, você também não consegue captar outros ângulos, ou sequer saber se havia um outro lado até mais relevante do que aquele que você escolheu. É mostrar melhor o rosto das pessoas, mas o fundo, o contexto, ficar um pouco borrado com tanto zoom. É um ato de limitar;

O que ocorre é que, por muito tempo, autistas começaram a adentrar o meio do autismo para serem ouvidos. Ou seja, para que essas vivências fossem observadas, especificadas. Marcar espaço como grupo social até relativamente homogêneo. Com isso, temos aquela questão de ser autista, não ter autismo, essa identidade tão marcante que altera tudo que está em você.

A questão é que hoje a gente já sabe bem que toda aquela ideia padrão do “autista”, apenas autista, é algo que na prática não é tão verdadeiro na comunidade do autismo. A cada ano que passa, vamos descobrindo mães e pais de autistas que na verdade são autistas, profissionais conhecidos do autismo que se descobrem autistas, e por aí vai…

…mas aquela pessoa que surgiu na comunidade do autismo como “autista” continua sendo lida como “autista”. E isso foi algo que me intrigou muito nos últimos anos. E pensar no enquadramento da experiência foi o que trouxe as respostas que eu procurava.

Assumir publicamente essa identidade, enquanto autista, é o centro dessa questão em dois pontos:

Geralmente quem é “autista” no âmbito do ativismo geralmente não tem o que perder. Não tem um histórico “externo” com o autismo. E se tem, não importa. As pessoas já o conheceram como “autista”.

Geralmente quem tem o diagnóstico de autismo depois, já tem uma imagem social atrelada como profissional ou familiar. Falam sobre o próprio autismo de forma discreta, um pouco mais impessoal, para não se expor tanto.

Observe: essa pessoa discreta pode sim, em algum momento, ser socialmente vista como “autista”, caso ela se exponha bastante. Mas quem já está exposto como “autista”, não tem escolha e terá muito mais dificuldade de fazer o caminho oposto.

E eu preciso fazer um ponderamento aqui antes que você chegue na conclusão errada: o problema não deveria ser autista ou assumir essa identidade enquanto autista.

Isso é o reflexo do capacitismo. Já falei muitas vezes, mas é bom repetir. As pessoas geralmente falam que capacitismo é discriminação contra pessoas com deficiência, e isso é uma simplificação gigantesca. Capacitismo é algo muito mais complexo do que isso. É essa teia de relações em sociedade, essa desigualdade, sobre quem detém mais poder e mais controle e sobre escolher como pode e deve ser visto pelos outros.

É por isso que quem pode, não se coloca nesse lugar. É esconder o próprio autismo como ato de sobrevivência para viver em um mundo injusto, que vai te julgar e vai te diminuir por uma deficiência que mal conhece.

Só que tem mais uma questão, que diz respeito ao que eu disse lá no começo do episódio. Ao mesmo tempo que autistas podem ser reduzidos por esse enquadramento, também se beneficiam do enquadramento da experiência. Ser o autista que fala das suas experiências gera audiência, engajamento, visibilidade, atenção. E isso, em certo nível, acaba sendo bom, não é verdade?

E se beneficiar do enquadramento da experiência não é estranho. Pessoas com deficiência podem se beneficiar do capacitismo, quando nos sujeitamos a ser espetáculo, modelos inspiracionais, exemplo e referência, por exemplo. Não seria diferente disso.

Acho que muitos aqui no Introvertendo já ouviram falar num grupo de quatro comediantes autistas chamado Asperger’s Are Us. Eles tem até um documentário bastante conhecido na Netflix. Mas eles tem outro documentário, que é muito mais interessante, na HBO, chamado On Tour With Asperger’s Are Us. No terceiro episódio, o New Michael, que é um dos integrantes desse grupo de comediantes autistas, fala que se eles tivessem realmente destacado o fato de serem autistas, teriam chegado muito mais longe e muito mais rápido, principalmente no acesso com a imprensa.

Aí, olhando retrospectivamente, o New Michael diz que fica pensando no quanto o Paul McCartney, em entrevistas, tem que sempre falar sobre John Lennon, Beatles, por um milagre um pouco do Wings para depois abordar o que ele realmente quer, que é um novo álbum, um novo projeto. Agora, imagine fazer isso por toda a sua vida sobre algo extremamente pessoal. Seria como dar entrevistas tendo que falar as mesmas coisas sobre a sua deficiência e você ser conhecido, de alguma forma, só por causa disso.

New Michael: …but imagine if instead of spending 55 minutes talking about the thing you did 40 yerars ago that everybody likes and thinks is really good. But imagine instead of that, they talked about how you’re famous for having this weird disease.

(Tradução: …mas imagine se ao invés de passar 55 minutos conversando sobre o que você fez há 40 anos que todo mundo gosta e acha muito bom. Mas imagine em vez disso, eles falam sobre como você é famoso por ter essa doença estranha).

Tiago: Ter essa visibilidade acaba sendo uma forma de empoderamento? Não sei. Como eu disse, pode dar audiência, pode render até algum dinheiro… mas não me parece confortável a longo prazo, porque não permite que a pessoa tenha muito controle sobre como ela pode se portar e ser vista no futuro.

A verdade é que o “empoderamento” real, na sociedade, só é concedido a conta gotas para quem se submete e segue as normas. Quem quer falar sobre o autismo de um ponto de vista externo e fugir do enquadramento vai ter que esconder o seu autismo. Quem quer falar sobre o autismo de um ponto de vista interno e ter reconhecimento sobre isso vai ter que aceitar todas as reduções.

Isso se reflete na forma como eu, particularmente, faço as coisas. O Introvertendo nasceu da experiência, da vivência, isso é o que define a história do podcast e pra nós isso sempre esteve tudo certo, porque faz parte do conceito do projeto. Nós escolhemos ativamente falar das próprias experiências e aqui no podcast temos o controle total do que e como vamos falar sobre essa vivência. Nós fazemos o nosso próprio enquadramento da forma como nos sentimos mais confortáveis. Mas fora daqui, do podcast, a situação é completamente diferente.

Como eu contei neste episódio e no episódio anterior, já passei por situações ruins em eventos e entrevistas ao longo dos últimos anos, porque eu nunca acreditei nessa coisa de autistas apenas relatando seu pequeno universo e as pessoas, “do lado de fora”, falando como quiserem de qualquer coisa relacionada ao autismo. No meu livro sobre neurodiversidade, escolhi diretamente não falar sobre o MEU autismo. Perdi oportunidades de ter espaço em grandes veículos simplesmente porque não quis vender a pauta do “jornalista autista escreve livro sobre neurodiversidade”.

Tudo isso porque eu realmente acredito que, para vermos autistas como seres que são, precisamos começar a quebrar a caixinha do “autista”, “familiar” ou “profissional”. Essas são categorias que nos ajudam a entender os tipos de pessoas que participam da comunidade do autismo, mas a verdade é que, na vida real, muitas dessas coisas são entrelaçadas. E como acreditamos que essas caixinhas ainda representam com perfeição a comunidade do autismo de hoje, no século 21, isso molda toda a forma como nos relacionamos em comunidade, como consumimos conteúdo sobre autismo e, claro, como produzimos.

Isso impacta a comunidade de outras maneiras também, de forma que naturalizamos certas coisas que até demandam um comitê de ética. Afinal, quantas vezes você já viu formulários nas redes sociais buscando respostas e relatos de autistas sobre assuntos variados, dos mais simples aos mais íntimos? Lógico, relatos são importantes. Mas não vejo, na mesma proporção, uma boa vontade em se trabalhar lado a lado de uma pessoa no espectro do autismo que pesquisa. Percebe as dinâmicas de poder neste sentido?

Todo autista que quiser falar apenas sobre suas experiências e viver apenas disso tem que ter a liberdade de fazer isso do seu jeito, nos seus termos. Afinal, como eu disse, é uma possibilidade de viver (e em alguns contextos, viver razoavelmente bem). Mas quem não quer também deveria ter essa liberdade. Superar o enquadramento da experiência deveria ser uma bandeira de toda a comunidade.

Porque, na prática, não é muito emancipador estar em um evento de autismo e alguém te olhar como um ser exótico e dizer: “ah, que lindo! Como é bom ouvir os autistas” ou clichês do tipo. Porque isso, na prática, acaba dizendo mais sobre a pessoa que elogia querer se validar como parceira da “inclusão” e não um real interesse em debater o que está sendo dito. Parece que estão admirando a pessoa no espectro do autismo da mesma forma que admiram um animal de estimação fazendo algo “fofo”.

A verdade é que, muitas vezes, quando os autistas servem ao enquadramento da experiência, as pessoas não se importam com o conteúdo, e sim com o ato “inspiracional” de falar. E querem validar isso a todo custo, mesmo que isso signifique não pensar ou não analisar criticamente o que está a sua frente.

E o que eu proponho? Eu proponho é que, quando você ver autistas falando sobre autismo, independentemente de nível de suporte, gravidade ou o termo que você quiser usar, você as encare como um discurso ou uma palestra qualquer. Faz sentido o que é dito? Isso acrescenta a você? De que forma acrescenta? Se tiver elogios, faça elogios reais, contextualizados. Se tiver críticas, pontue. Converse com uma pessoa autista como gente que ela é, não como bicho. Se ela achar ruim, isso é outro assunto. Pelo menos você a abordou no mesmo nível e não sendo complacente com ela.

Quando aquela jornalista interrompeu o meu fluxo de pensamento, a vontade que eu tive era de encerrar tudo e me despedir. E eu tive essa mesma vontade muitas vezes em outros contextos. Já quis abandonar o círculo do autismo e voltar para minha vida “normal” que eu tinha antes de ser codificado como “o autista”. Mas o próprio enquadramento da experiência me fez sorrir amarelo, ser educado, e suportar. Afinal, os comportados, os certinhos, os bonzinhos, sobrevivem.

Por fim, sei que é contraditório criticar o enquadramento da experiência com base na minha experiência, mas acho que vocês entenderam. Até mais.

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Equipe Introvertendo Escrito por: