Introvertendo 189 – Autistas e a Análise do Comportamento Aplicada (ABA)

Quando alguns autistas se deparam com a Análise do comportamento aplicada, a ABA, muitos conflitos podem ocorrer. Isso porque o tema é complexo e cheio de debates, dores e entusiasmos. Neste episódio, Tiago Abreu recebe Cíntia Ridi e Táhcita Mizael para compreender os conflitos que envolvem esta intervenção em uma tentativa de diálogo honesto sobre isso. Arte: Vin Lima.

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Transcrição do episódio

Tiago: Um olá pra você que ouve o podcast Introvertendo, que é o principal podcast sobre autismo do Brasil e que não foge das polêmicas da nossa comunidade. Meu nome é Tiago Abreu, sou jornalista, host deste podcast, e a minha função hoje é ser mais um curioso e apresentar algumas coisas que certamente muitas pessoas na comunidade devem estar curiosas para saber. E hoje nós vamos falar sobre a Análise do comportamento aplicada que eu acho que é um dos temas mais populares e controversos da comunidade do autismo, sobretudo sobre relação dos autistas com esse campo. E pra não ser simplesmente um papo de achismo, eu trouxe então duas convidadas que estão muito mais habilitadas a falar sobre o tema do que eu. Então queria que vocês se apresentassem.

Táhcita: Olá pessoal, meu nome é Táhcita, eu sou psicóloga, sou mestra e doutora em psicologia e tenho trabalhado na área de Análise experimental do comportamento, também sou autista.

Cíntia: Olá pessoal, sou a Cíntia, filósofa, pedagoga, psicóloga, especialista em Análise do comportamento aplicada e autista também.

Tiago: E dada às apresentações, eu queria agradecer muito pela presença de vocês duas aqui neste episódio. Um episódio que o pessoal pede a gente há muito tempo e eu tenho fugindo desse tema e esperando o momento certo do Introvertendo ter uma maior maturidade como podcast pra gente trazer esse assunto de uma forma mais aprofundada. Também quero dizer que esse episódio provavelmente vai ser mais longo do que a maioria dos episódios que nós lançamos aqui no podcast. Então a gente pede bastante que vocês tenham paciência, que se vocês tiverem dúvidas, que vocês confiram os links que vão estar associados a esse episódio lá no nosso site. O Introvertendo é um podcast feito por autistas com produção da Superplayer & Co.

Bloco geral de discussão

Tiago: Quando eu falo que o pessoal pede pra falar sobre esse tema há muito tempo, eu não estou exagerando. Realmente é um tema que traz muitas dúvidas, muitas angústias, muitas alegrias e muitas raivas nas pessoas. É incrível como ABA é um tema que provoca diferentes sensações e sentimentos dentro da comunidade autista, seja por vários motivos. Então eu acho que é muito importante a gente discutir isso de uma forma honesta, profunda e de certa forma iniciar um debate dentro da comunidade que é necessário. E sobre essas questões que rondam isso que a gente chama de ABA. E primeiro vem o que é ABA. Porque eu vejo que tem gente que diz: “ah, porque ABA é uma terapia pra autismo, é um tipo de terapia, é um método”, sabe? As pessoas vão falando várias coisas, o quê que é ABA de fato? (risos)

Cíntia: ABA é uma sigla que é Applied Behavior Analysis, Análise do comportamento aplicada… É importante a gente ressaltar que essa ciência não é aplicada somente para o autismo. Hoje em dia tem-se divulgado muito para o público TEA, porém ela pode ser aplicada em diversas situações. Então quando a gente pensa em Análise do comportamento, que eu falo que é a ciência que sustenta… Então, a gente fala que tem um tripé, tem o behaviorismo, que é a filosofia que sustenta todo esse arcabouço teórico. Tem a parte experimental, que a Táhcita pode falar, assim, de maneira mais substancial do que eu, que é a área dela. E a parte aplicada. Então, aplicada pode ser a N situações, outros públicos também, tá?

Táhcita: Então, como a Cíntia tava comentando, nós temos três sub áreas na Análise do comportamento. A parte da filosofia, que é o behaviorismo radical. A Análise experimental do comportamento é a ciência básica, então são os estudos primariamente de laboratórios que vão identificar os princípios comportamentais, os princípios que estão presentes no comportamento de todos os seres. Então tanto com relação a seres humanos quanto com relação a seres que não são humanos. E com base nessas leis a gente tem a parte da ciência aplicada, então a ciência aplicada que é a análise do comportamento aplicada, ela de fato a aplicação desses princípios básicos do comportamento que são investigados na parte de análise experimental. E também são uma tecnologia, a ABA que a gente conhece também é considerada uma tecnologia, além dessa aplicação da ciência.

Tiago: A Cíntia até comentou no início assim que “ABA é uma ciência”. E aí eu vejo que tem muita gente que fala assim: “ABA é um método, ABA é uma metodologia”, eu vi isso esses dias nas redes sociais assim. E eu vejo muitas pessoas principalmente do ramo da análise do comportamento dizendo que ABA não é método, então por que ABA não é método?

Cíntia: Tiago, quando eu escuto isso que ABA é método, eu quero sair correndo, sabe? (risos). ABA a gente não pode dizer que é método assim, não é correto, porque quando a gente pensa esse método, a rigor, o que que vem em mente? Sei lá, tu pensa até numa receita, tem lá um método, você vai fazer isso, isso e aquilo e X, vai sair aquele produto. Então, ela não é um método. Não é quadradinho.

Táhcita: Exatamente. Eu acho que é importante ressaltar que às vezes acho que as pessoas acabam utilizando esse termo porque ele já está familiarizado. Então, muitas pessoas, inclusive, as famílias da das pessoas audiências costumam utilizá-lo e quando a gente pensa em método, como a gente tava falando da receita de bolo, eu acho que uma grande problemática é que de fato tem pessoas que não têm a formação básica em Análise do comportamento aplicada ou seja, não entendem sobre o behaviorismo radical, não aprendem sobre os princípios comportamentais, que é a área de Análise experimental do comportamento e aí de fato acabam aplicando técnicas sem ter esse conhecimento e gerando consequentemente resultados que podem ser muito desastrosos, porque aí de fato como se você tivesse fazendo uma receita de bolo.

Como a gente tá trabalhando com indivíduos que tem uma história única e partindo desses princípios comportamentais que vão ser utilizados a depender do contexto e de várias outras questões, acaba que a atuação pode de fato se tornar um método e aí nesse caso na verdade ela não deveria ser chamada de ABA, porque aí ela já é uma outra coisa, simplesmente uma aplicação de uma técnica.

Tiago: É interessante vocês falarem isso porque eu percebo que existe e aí eu falo com um mero espectador da comunidade do autismo. Que tem muita gente que fala assim: “ah, porque o método ABA vai fazer isso com o seu filho, com a sua filha” e aí parece tudo tão simples. E tudo tão formatado assim, não pensado no indivíduo. E aí, quando se fala na noção de ciência, a gente vai com algo muito mais rigoroso, muito mais completo que vai ser pensado no indivíduo, na individualidade da pessoa. Então eu acho que essa distinção é realmente muito importante de ser assimilada, até mesmo pras pessoas escaparem de quem tá só se aproveitando e de fato não tem um conhecimento profundo.

Porque olha, pra mim é um tema muito complexo pelo menos do pouco que eu já li sobre, pelo menos especialmente o baviorismo radical. Eu cheguei a comprar um livro do Skinner uma vez por curiosidade, porque eu via na comunidade do autismo o pessoal falar tanto de ABA e aí eu queria saber pelo menos o mínimo pra não falar bobagem. E eu não consegui passar da página 75. Foi um dos livros mais difíceis que eu já li na minha vida. Foi quase como tentar aprender uma nova língua, sabe? (risos) Não sei se essa impressão minha é correspondente mesmo à maioria, mas é algo muito difícil de se entender.

Táhcita: Sim, é muito mais complexo do parece justamente, então de fato você levantou um ponto importantíssimo. Talvez é um papel da gente enquanto analistas do comportamento de trazer algumas informações sobre de fato o que é a ABA para instrumentalizar as próprias famílias que podem contratar profissionais para que não ocorra de fato só uma aplicação de uma técnica sem o conhecimento da teoria subjacente, porque aí de fato não só como eu falei, os resultados podem ser muito danosos, como essa prática acaba sendo antiética, na verdade. Ela acaba indo fora do que nós enquanto profissionais seguimos um código de ética devemos fazer.

Seria muito importante ter talvez aí algumas diretrizes para as pessoas e pra familiares que estão pensando nessa terapia que querem conhecer mais de como identificar profissionais que estão de fato habilitados e qualificados pra fazer esse tipo de atendimento.

Cíntia: Então o que é uma ciência baseada em evidência? Isso significa que, por exemplo, quando a gente pensa na prática do cientista, até digo que o analista do comportamento muito que parece com o fazer dos cientistas. Então tem toda aquela filosofia, tem toda aquela parte experimental, enfim tem toda aquela parte aplicada aos conceitos, então a prática baseada com evidência vai ser exatamente isso. A pessoa vai ter que obviamente quando a gente pensa num triângulo que é o PBE pensa nessa prática, a gente quando tem uma determinada problemática então cê vai buscar na literatura o que determinados artigos vai dizer acerca dessa problemática, desse problema, aí você vai buscar essa parte experimental se teve resultado ou não.

A gente sempre leva em consideração então tem expertise para fazer isso ou não, se tá dentro do meu arcabouço teórico, se eu vou conseguir e acima de tudo a gente pensa também nessa prática baseada com evidência é que vai ser o melhor para o cliente/aluno, que é o termo que eu mais gosto de utilizar, tá? Então é importante que a gente fala que é com evidência, mas assim todo esse arcabouço nesse fazer. Então, ou a gente utiliza práticas dessas três essas três linhas ou a gente não tá fazendo uma prática baseada com evidência.

Tiago: E eu acho que com isso dá pra gente entender bem que quando alguém fala que ABA é ciência, a pessoa não tá falando só pra deixar bonitinho, porque existe toda uma profundidade sobre isso que precisa ser entendida. Mas tem outra questão muito profunda e que aí que demonstra as rachaduras dos autistas com ABA ao longo pelo menos dos últimos anos que é sobre aquilo que a gente entende sobre ABA relacionada a história do autismo. E eu queria que você estivesse em um contexto histórico talvez rápido ou talvez enfim da forma como vocês se sentirem mais confortáveis pras pessoas entenderem como isso se encontrou de fato com o autismo e com a comunidade.

Cíntia: Então quando a gente pensa em ABA que se relaciona com a história do autismo automaticamente às vezes vem o Lovaas, quando ele aplicou os conceitos da análise do comportamento aplicada voltado ao público TEA. Mas até entre parênteses eu já gosto de colocar essa relação que aí já entra com relação às críticas também, eu acho importante a gente ressaltar que a ciência como o próprio operandi dela vai se modificando. Eu, enquanto autista, também acredito que muita dessas técnicas não são tidas como éticas mesmo. Quando geralmente um profissional vai falar acerca de ABA, começa até dizer “porque Lovaas dizia que a criança ia ficar próxima aos pares”, esse conceito de conformidade ou manada, que eu brinco. Então, tem toda essa crítica também quando a gente fala ABA relacionado ao autismo. E eu sempre gosto de deixar assim bem claro que ABA não está relacionada intrinsecamente a Lovaas. Isso é década de 60, a ciência evoluiu demais.

Táhcita: Eu acho importante comentar também que o que que acontecia e pode ainda acontecer em alguns contextos: Você tem um conjunto de pessoas que tão com algumas questões comportamentais e as pessoas que estão lidando com elas não sabem o que fazer. E esse foi o contexto do Lovaas. Então, o que que acontece? Uma pessoa, né, um pesquisador ou um psicólogo, enfim, um profissional, se prontifica a tentar ajudar essa população ou ajudar essa pessoa que precisa lidar com essa população e isso acho que a gente pode pegar esse ponto da história. E como a Cíntia comentou, de fato nessa época a gente tinha, a gente tem princípios comportamentais de fato e vai depender muito de como a gente usa. Porque assim, ao meu ver a Análise do comportamento é uma ferramenta que a gente pode utilizar para diferentes objetivos. Eu posso utilizar isso de maneira ética e posso utilizar isso de maneira não ética.

E naquela época, de fato, na psicologia de maneira geral a gente tem estudos… A gente pode pegar livros como 40 Estudos que Mudaram a Psicologia, são muitos estudos aí da década de 50, 40, 60 que hoje em dia, quando a gente lê, a gente sabe que não poderiam ser feitos porque são eticamente questionáveis e isso não foi diferente. Então é importante a gente levantar esse ponto de que durante muito tempo a Análise do comportamento, assim como a psicologia em geral, tem um histórico de ter auxiliado em diversas práticas segregacionistas, eugenistas, que “robotizam” as pessoas, mas que a ciência vai avançando e de fato como essas discussões sobre direitos humanos, sobre a importância do bem-estar das pessoas, então uma prática que não é baseada somente em resultados, mas de fato no bem-estar, na redução do sofrimento daquela pessoa e isso fez com que essas ferramentas fossem utilizadas de maneiras diferentes.

E hoje em dia, de fato, a gente tem todo um conjunto de regras éticas, que a gente precisa seguir para que esse tipo de coisa não aconteça, pra que qualquer tipo de conduta que é considerada antiética não aconteça. Essas são questões que os profissionais da psicologia deveriam ter aprendido nas suas formações, tanto graduação quanto pós-graduação e especialização. Talvez por conta desse histórico, muitas pessoas ainda acreditam que a prática ocorre dessa mesma maneira, mas ela não ocorre e de fato se você vai para a partir da filosofia, você vai ver que o próprio Skinner ele é extremamente crítico ao uso do que a gente chama de controle aversivo, de punição pra modificar comportamentos. Então quando a gente tem essa base, a gente sabe que tem outros procedimentos que a gente pode utilizar e que o uso de fato desses procedimentos que a gente chama de coercitivos, eles devem ser utilizados em último caso bastante especiais durante o menor tempo possível.

Cíntia: Até mesmo porque quando a gente vai perceber, a gente vai estudar um pouco do atuar do analista do comportamento aplicada, a gente sempre tem que levar em considerações essas sete dimensões do que que é ser esse analista do comportamento aplicado, do que é essa intervenção. Então quando a gente a primeira é a questão que a gente sempre fala o que significa isso que é ser aplicado? É aplicado porque é importante para o sujeito, para o indivíduo, sua família e o foco sempre vai ser na melhora de qualidade de vida pra ele. Então ela não é um método porque ela é customizada, então assim a intervenção que eu faço pro Joãozinho não vai ser o mesmo pro Carlinhos. Então assim, ela é customizada mesmo, o que que vai trazer benefício para aquele sujeito, o que é relevante pra ele. O termo de ser conceitual é aquilo que a própria Táhcita mencionou muito bem. Com relação a toda essa teórica e robusta que tem por detrás de se fazer do ABA.

A questão comportamental é no sentido de que estamos lidando com o comportamento, seja ele público ou privado. Mas é a questão comportamental que a gente tá levando em consideração. E a gente diz também que ela é analítica, porque é uma ciência, então pra ser ciência a gente precisa ter essas coletas de dados, então todas as as decisões são baseadas em dados. Ela é tecnológica porque todos os procedimentos que eu utilizo, outra pessoa poderá replicar e isso também vai dar o mesmo resultado.

Então assim, é importante mencionar qual a atuação então também dentro dessa série de dimensões? É o fato dela ser eficaz. Então ela vai trazer impacto positivo na vida dessa pessoa e também ser generalizado, então esses pontos positivos, tudo isso que ela aprendeu ela vai levar pra escola e qualquer ou qualquer outro canto que ela está. Então você vê que é uma atuação que não é simples. Sei lá, hoje em dia cê fala, “ah, estou fazendo ABA, eu sou analista do comportamento aplicada”, então assim, você é se você tá agindo com essas sete dimensões. E pra mim assim todas são cruciais e fundamentais, mas aqui acho que ressalta meus olhos é essa questão de ser aplicada, porque a gente sempre vai pensar em estratégias, o que é benéfico para o indivíduo. E se a gente levar isso em consideração e levá-lo como uma máxima mesmo kantiana, né, como um preceito, a gente não vai utilizar de coisas aversivas, não vamos repensar nessas práticas coercitivas e punitivas.

Tiago: Então, só pras pessoas até se aprofundarem, a Cintia falou dessas sete dimensões, e ela tá se referindo a um artigo, né, Cíntia, que se não me engano foi publicado em 1968, muito importante, que fala sobre o bom uso da Análise o comportamento aplicada, então o link tá lá no nosso site, você pode consultar e ler profundamente quais são essas sete dimensões. Uma das preocupações que eu tive na hora de propor esse episódio aqui no Introvertendo foi de que a gente pudesse reunir a maioria das críticas ou pelo menos as críticas até mais recentes que são feitas pelos próprios autistas ao que a gente chama de ABA até pra pra ver quais dessas críticas são justas, quais não são justas e ter um uma conversa honesta sobre isso.

E eu acho que a crítica mais comum que a gente pode falar que inicialmente é de alguns autistas dizendo que ABA tem sido utilizada para tirar comportamentos que não necessariamente são prejudiciais, como alguns comportamentos repetitivos, que alguns chamam de stims e no jargão médico por estereotipias e tal, você acha que é isso mesmo ou não é bem assim?

Táhcita: Esse é um assunto bastante complexo e é muito importante de fato pra gente conversar. Eu acredito que assim, isso acontece de fato, eu não nego que isso aconteça, mas do meu ponto de vista isso não teria uma característica intrínseca à ABA. Essa questão de uma possível normalização ou esse desejo de retirar stims que não gerem dano pra pessoa ou pras pessoas que estão ao redor me parece mais uma característica da nossa sociedade enquanto uma sociedade aí que tem alguns valores que considera alguns tipos de comportamentos como “normais” e que tem pouca tolerância e respeito por divergências. Então eu acho que isso na verdade é um reflexo de uma prática profissional que não tá levando em consideração aspectos éticos.

Porque, em primeiro lugar, uma pergunta muito importante de ser feita principalmente quando a gente trabalha com crianças é: a queixa desses cuidadores é uma queixa que existe porque está incomodando os cuidadores ou porque é uma queixa que gera dano de fato a esse indivíduo? Então, acho que esse é um ponto importante de ser levado em consideração em que infelizmente é muito comum que a gente leve queixas, coisas que nos incomodam mas que não tá gerando dano de fato pra esse indivíduo. Então eu que devo levar isso na minha terapia (risos). Em segundo lugar, essa questão ética mesmo de você entender que o foco das terapias, em qualquer tipo de terapia, vai ser sempre o seu cliente. O seu cliente não é a família, não são os pais, o cliente é o próprio indivíduo a quem a gente tá planejando essas intervenções.

E como eu tô falando, eu concordo que isso infelizmente tem acontecido e eu acho que acaba sendo uma falha numa atuação que é comprometida com valores de equidade, com valores de antirracismo, que vão buscar o respeito à diversidade humana que existe. Não tem como a gente negar que existe diversidade. Essa atuação que é descolada dessas questões sociais, então da influência que eu sofro enquanto psicóloga, enquanto terapeuta, sobre o que que eu aprendi que é correto, o que eu aprendi que é errado, o que que eu aprendi que é moral, é imoral e assim por diante, é uma coisa que eu sempre preciso levar em consideração na minha prática para que de fato eu tenha esse cuidado de não tá normalizando de fato essas crianças ou esses indivíduos, de não estar tentando produzir mudanças que não não tem a ver com o bem-estar desse indivíduo, mas tem a ver com talvez o bem-estar de outras pessoas que estão inseridas numa cultura que é muito machista e racista e classista, e assim por diante.

Tiago: E eu acho que a crítica que eu mais vejo popularmente, inclusive a primeira vez que eu ouvi falar sobre ABA que eu nem sabia o que que era, que eu tava na universidade numa disciplina especificamente, é o discurso de que ABA robotiza, cria dependência e alguns até usam de forma meio que jocosa falando assim: “ah, porque a ABA é como adestrar cachorro”. Eu sempre ouço falar muito isso, é fato? Isso é exagero, o que é isso aí?

Táhcita: Isso é um mau uso de princípios comportamentais, esse é o uso de uma aplicação que não é pautada nos princípios comportamentais. De fato, como a gente acabou de comentar sobre as dimensões da Análise do comportamento aplicada, ela não é pra causar dependência, nem robotizar e nem ser como adestrar um cachorro. Os princípios comportamentais são questões que existem, são evidências científicas e se um analista o comportamento está fazendo Análise aplicada do comportamento, isso não acontece. Não é pra acontecer. E aí quando eu digo isso assim eu não tô invalidando o relato de ninguém que está reclamando, está se queixando de intervenções feitas com essa nomenclatura de ABA. O meu questionamento aqui é de que a minha hipótese é que essa pessoa está utilizando esse termo pra fazer uma coisa que na verdade não é ABA.

Cíntia: Inclusive, né, Táhcita, quando a gente pensa hoje em dia no CDC, tem lá as 28 práticas baseadas em evidências, para pessoas com TEA. Então, quando alguém diz: “ABA robotiza”, automaticamente acho que a pessoa já imagina uma criança sentada numa mesinha, que é o ensino DTT, que é o ensino estruturado de tentativa discreta, que é um um treino sem erro. Então eu acho que vem na mente uma questão militar, ensinar só a obedecer, controle instrucional. E não, porque se fizer isso, porque assim, de fato, infelizmente, a gente acaba vendo muitos profissionais fazendo isso. E de fato pode acontecer isso de robotizar no sentido de que é preciso, aí que vem, né, uma uma linha que eu gosto bastante, que é esse treino mais naturalístico. Não é dizendo que esse outro treino não é importante, ele é importante, ele é fundamental, mas somente ele não dá conta de todo a dimensão que é o ser humano.

Então a gente precisa sim propor estratégias naturalísticas que partem da motivação do da pessoa, do sujeito. E com isso quando a gente pensa ai que ABA conforme você me falou, cria dependência. Cria dependência porque no momento que tá fazendo todo um procedimento de ensino, a gente precisa ensinar a desvanecer esse tipo de ajuda. Porque o foco principal é qualidade de vida e autonomia pro sujeito. Então a gente precisa até já colocar no procedimento como vai ser essas ajudas que você vai estar diminuindo, enfim. Quando a gente fala isso eu já ouvi bastante também, viu? Que os pais geralmente quando chega no consultório, “isso é tipo adestrar cachorro, né?”. Acredita que ABA é só você vai lá, dá um biscoitinho e acabou. Então assim, são críticas que obviamente por conta de alguns profissionais que não entram muito dentro da literatura, que tem esse todo esse arcabouço que nós comentamos conceitual um pouco falho. Mas a gente acredita que sim, se não for utilizado de maneira ética, se não for utilizado assim como todas as outras estratégias, pode acontecer. Então por isso que a gente tem um tipo de intervenção que é chamado de tipos de intervenção combinada, onde você se utiliza tanto DTT, naturalístico e quantas as outras outras vinte e cinco práticas que existem.

Tiago: Eu trouxe aqui pro episódio também três artigos que eu vejo circular e muito entre autistas. Tanto autistas que participam na internet, autistas ativistas, são três artigos que muitas vezes usam como críticas a ABA e cada um desses artigos, segundo a interpretação de alguns autistas, postula algumas coisas. E aí eu queria apresentar aqui pra saber a avaliação de vocês em relação a esses artigos, qual é o nível de qualidade desses artigos, se eles realmente afirmam o que algumas pessoas dizem. E um deles, que é bem comum, afirma que ABA causou transtorno pós-traumático em autistas.

Cíntia: Então, esse artigo que conforme você mencionou, que veicula bastante dizendo o quanto que alguns autistas tiveram transtorno pós-traumático com relação a terapia ABA… eu acho importante a gente dizer que assim como tem esse artigo que vai dizendo que pessoas que forem expostas a esse tipo de intervenção. Depois tem um outro artigo que você começa a dizer os furos que esse teve. Então assim, a minha grande preocupação não é dizer “sei lá teve erro de interpretação”, não, a gente tem que dizer: olha, foi uma prática que trouxe sofrimento, que trouxe dano.

Inclusive, viu Tiago e Táhcita, eu já cheguei a ouvir de uma pessoa assim que eu acho que ela foi extremamente infeliz na sua fala: “ai se os autistas estão reclamando, mas é porque eles tão falando”. Eu até falei que é um conceito até meio que “importante que chegou lá, não importa o meio”, então isso é extremamente errôneo, é uma falácia tal fala. E não, a gente tem que dizer o seguinte: se teve falha enquanto ciência, a gente precisa analisá-la para não replicar.

Táhcita: Eu vou concordar discordando, Cíntia. Eu discordo assim, eu acho que é importante a gente avaliar o conhecimento científico, até porque as pessoas às vezes vão pegar esse artigo e vão utilizar ele pra querer desqualificar qualquer prática científica, então eu acho que é sim importante a gente ver sempre a qualidade do material que a gente tá lendo, se é artigo, se é capítulo, enfim, uma fala de alguém. Mas com certeza o ponto que eu concordo com você absolutamente é que se essa crítica existe, se são muitas pessoas que estão reclamando, é porque tem alguma coisa que tá acontecendo aí errado. Então, algum tipo de prática, seja na formação, seja na questão ética, tem alguma coisa aí que tá gerando dano.

Então, a gente enquanto analistas do comportamento precisamos, na nossa posição de cientistas, olhar para isso pra remediar, porque como a ciência avança nessa maneira, se tem alguma coisa ali que tá causando sofrimento, o nosso papel de fato é tentar entender o que que é, então de fato ouvir essas pessoas que estão com essas críticas, entender, tentar discriminar, identificar exatamente o que que tá acontecendo aí que tá gerando qualquer tipo de dano que pode ser relatado pra gente de fato ter uma prática que é ética, que é justamente o nosso objetivo. Uma prática que vai dar bem estar pras pessoas e autonomia e não o contrário.

Tiago: E também tem outro artigo que é muito comum circular entre outros autistas que diria que a ABA tem poucas evidências.

Cíntia: Então Tiago, o artigo na verdade eu fui buscar a fonte de onde surgiu esse artigo. Aí uma pessoa até me falou que esse artigo surgiu de um determinado grupo de plano de saúde dos Estados Unidos, é uma própria pessoa que mora lá e disse assim: “olha, é um grupo que tem algumas falhas”, enfim. Então, quando a gente pensa da onde que veio a qualidade, conforme a Táhcita mesmo falou, da importância da qualidade de buscar artigos, enfim, eu fui buscar essa informação complementar, da onde que veio então esse artigo.

Tiago: E também uma coisa que eu trago aqui não é um artigo. A nossa terceira fonte é mais um texto na verdade, um post falando que o Governo dos Estados Unidos tinha concluído que ABA não funciona. Então é uma conclusão bastante forte, queria saber aí o que realmente é fato nisso, o que é fake ou se é tudo verdade, se é tudo mentira, enfim.

Táhcita: Eu fui atrás, na verdade, do próprio relatório. Então eu li o relatório, um relatório que saiu no ano de 2019, ele não tem muitas informações na verdade, mas de fato assim na primeira página aparece o seguinte, é uma citação direta, uma tradução que eu vou fazer: “76% dos beneficiários do plano tiveram pouca ou nenhuma mudança na apresentação dos sintomas dentro do curso de 12 meses de serviços de Análise do comportamento aplicada com 9% adicionais demonstrando um sintomas ainda piorando”. Então essa seria a conclusão do estudo e eu acho que a pessoa leu a primeira página e já disse que ABA não funciona. De fato eu fui ler esse documento na íntegra, me chamou atenção e é uma coisa importante da gente saber se não tá funcionando pra gente poder modificar a nossa prática, e o que eu achei difícil aqui nesse caso é que não há especificação exatamente do que que foi feito em termos de ABA.

Eles falam de números, então o número de pessoas que foram atendidas e tal, mas não tem gráficos e tabelas, a gente tá acostumado a lidar com isso, e não tem nenhum tipo de dado nesse sentido pra gente ver esses dados de fato, ver os dados ali no no Excel, alguma coisa nesse sentido. Então fica até difícil de tentar contra argumentar ou de pensar em como a gente pode mudar a prática porque não tem informação suficiente pra gente entender o que que eles tão chamando de não ter dado certo.

Mas enfim, eles utilizaram três medidas que são bastante utilizadas assim na ciência pra avaliar sinais de TEA, mas o que acontece quando você vai pra última página desse relatório eles dizem que apesar de terem dito de fato que aproximadamente 76% desses beneficiários não tiveram melhora nos sintomas, eles dizem… e aqui eu vou de novo tentar fazer uma tradução direta, eles dizem: “essas descobertas devem ser interpretadas com cuidado porque essa medida é apenas uma métrica de várias coletadas e reportadas”.

Adicionalmente eles vão dizer que é preciso ter cuidado porque não consideraram outros fatores nesse documento como a idade desses indivíduos, a severidade dos sintomas, o número de horas de serviços, a duração total dos serviços de ABA, outros serviços onde essa criança está em termos acadêmicos escolares. De fato eles estão dizendo isso, afirmando na primeira página, mas a gente não consegue ter informação suficiente nem para analisar essa afirmação de fato.

E ao final do relatório eles dizem pra ter esse cuidado e essas informações me chamaram a atenção porque como que eu posso afirmar que não houve melhora ou que houve piora de qualquer tipo de serviço se eu não fiz uma análise de fato de quem eram esses indivíduos. Então qual é a idade deles? Qual é a severidade dos sintomas, como eles dizem aqui? Qual é o número de horas de serviço? Não tem como comparar vários grupos diferentes em uma medida só e dizer que aquilo foi bom ou não. Então, seria necessário, de fato, ter esses detalhes pra poder, ao meu ver, eu conseguir ter uma conclusão de fato sobre melhora ou não dos sintomas ou enfim, do que era esperado nesse tipo de intervenção.

Tiago: É muito interessante esse comentário que você faz porque às vezes eu tenho a impressão, acompanhando muito o que os autistas falam sobre ABA, principalmente aqueles que vão correr atrás e acham uma fonte estrangeira, etc, sempre muitas vezes cai nessa zona cinza, sabe? Tem muito click bait. “Ah, porque eu encontrei esse artigo aqui, esse artigo desmascara a ABA” e não sei o que.

E aí há essas falhas metodológicas quando encontram quando encontram algum artigo. Ou quando acham algum post de blog, é muito centrado muitas vezes em títulos sensacionalistas. Por isso que eu tenho muito pé atrás em relação a essas coisas porque afinal não sou da área e acho que também não seja muito bom apenas me basear em relatos externos que podem ter conflitos de interesse.

Então por isso que eu quis trazer esses artigos também porque eu vejo ele circulando muito entre autistas falando: “olha isso aqui são fontes fortes que falam isso e isso” enfim, eu tenho minhas sérias dúvidas. Mas existem algumas críticas que do meu ponto de vista de espectador, como alguém que faz parte da comunidade, que observa algumas coisas, me parecem um pouco mais justas.

E uma das críticas que eu acho que eu até já vi você, Táhcita, fazendo, seria em relação a um certo elitismo do acesso a ABA. Que ABA é um serviço caro e, portanto, é um pouco difícil de ser alcançado principalmente se a gente considerar certos locais do Brasil para grande parte da população que tem uma renda baixa. A gente sabe que o Brasil é um país extremamente pobre. ABA seria elitista nesse sentido?

Táhcita: Eu diria que sim (risos). Como eu já mencionei, infelizmente é, sim. A gente fala de ABA, mas acho que grande parte dos serviços na verdade acabam sendo elitistas porque o que acontece: pra um profissional ser qualificado de fato para atuar enquanto analista aplicada do comportamento, e aí, Cíntia, por favor, é me corrige se eu falar alguma coisa errada ou complemente, é muito importante que ele tenha uma formação, uma formação forte nessa área. 

Então, não é só uma graduação em psicologia que garante que o indivíduo vai ser um analista aplicado do comportamento. Geralmente, no mínimo, é preciso que esse profissional tenha uma especialização, mas idealmente ele deveria ter mestrado e doutorado também na área da análise do comportamento. E aí uma formação que vai além da graduação realmente encarece os serviços. Porque a pessoa de fato passa bastante tempo se atualizando, e aí que você gasta pra ir em congressos, você gasta pra fazer cursos, pra se aprimorar, e acaba que o valor do seu serviço vai refletir isso.

E infelizmente, por conta de toda essa desigualdade social que a gente tem no nosso país, o acesso acaba ficando muito restrito pra pessoas que têm uma condição financeira mais favorável, e isso acaba sendo um problema social no sentido de alcance. Se a gente tivesse algum tipo de política pública, por exemplo, que estabelecesse, independentemente do tipo de prática, mas práticas que são baseadas em evidência para tratamento de autismo, seria muito mais fácil, onde teria um alcance muito maior tanto da ABA ou de outras práticas que também eu imagino que não são acessíveis a qualquer pessoa. 

Cíntia: Sem contar no arcabouço de supervisão que a gente tem que ter. Eu até falo que é um ciclo sem fim, independente, cê pode ter doutorado que cê vai ter seu supervisor e aí vê que o supervisor vai ter outro supervisor. Então, tudo isso acaba encarecendo mesmo. Até porque quando você vai pensar, quando a gente pensa em ABA, inclusive quando fala assim, “ai, eu fiz ABA e não funcionou”. Tá, quantas horas você faz? “Ah, fazia uma vez por semana”. Então assim a gente sabe que a depender do nível de suporte, enfim, através da avaliação, tem pessoas que necessitam de um número de horas maior por semana. Até quando a gente pensa todo aquele relato baseado em evidência, a gente tem que levar em consideração a carga horária, a intensidade. A gente sabe que a precocidade e a intensidade são fatores assim fundamentais na literatura. Isso acaba então ficando bem fora da realidade da grande parte da população brasileira.

Mas quando você menciona de políticas públicas, eu acredito muito nisso, então dá pra se fazer. Então quando a gente pensa no indivíduo já pequeno, uma criança que passa boa parte do tempo na escola, como eu já vou bastante pra essa linha naturalística, é possível sim a gente fazer treinamento com os professores, fazer com que essas crianças também já tenham acesso, eu com isso você amplia esse número de carga horária e também você não tira a criança do meio da sociedade e enfia dentro duma clínica. Então infelizmente ainda acaba sendo elitista nesse sentido de que poucas pessoas acabam tendo acesso e então fica bem triste mesmo a realidade. 

Tiago: Nós estamos inseridos numa comunidade que historicamente já foi machucada de várias formas e aí eu me refiro aos autistas, me refiro também aos familiares que por muito tempo foram estigmatizados, principalmente as mães, quando se tinha aquela ideia das mães geladeira, que pra quem não sabe muito bem ouça o episódio do Introvertendo sobre Bruno Bettelheim, e eu percebo principalmente nos últimos vinte anos que quando o ABA começou a se popularizar dentro da comunidade do autismo, isso começou de certa forma a alimentar esperanças dentro da comunidade, principalmente de familiares no sentido de seus filhos desenvolverem uma autonomia que antes não se tinha indicações.

O autismo era praticamente uma sentença de morte até um certo período, até porque o que a gente entende hoje por autismo leve nem era considerado como autismo até um certo período. Então era um cenário completamente diferente, e aí aonde que eu quero chegar? Eu percebo que à medida que ABA foi se tornando um sucesso na comunidade do autismo pelos seus resultados, por toda uma seriedade que a gente tá conversando aqui nesse episódio, a profundidade e a complexidade que esse tema exige, pelo menos eu tenho a impressão de que começou a se ter dentro da comunidade uma noção de que “olha, ser analista do comportamento, trabalhar com ABA, dá dinheiro”.

E aí eu vejo muitos autistas, não só autistas, mas eu vejo outras pessoas falando assim, “ah, porque o autismo virou um comércio, porque existe uma indústria do ABA e essa galera aí ganha muito dinheiro pra fazer o que faz.” Então, eu queria saber se essa crítica é realmente justa, vocês acham que tem isso de muita gente que começa a trabalhar com ABA mais com a intenção de ganhar dinheiro do que realmente por interesse pelo tema, por aprender, estudar e tudo mais? 

Táhcita: Eu diria não somente que existe uma indústria no ABA, mas que existe uma indústria do autismo, na verdade, porque o que a gente vê de tratamento falsos, sem essa base científica, sendo utilizados e sendo vendidos muito caro, sabe? Livros e palestrantes, a lista é longa, que de fato, se torna uma commodity quase, então as pessoas acabam se esquecendo que a gente tá lidando com seres humanos, com questões muito importantes pra poder ganhar dinheiro em cima da preocupação dos familiares, de cuidadores e de próprios indivíduos que tão buscando uma qualidade de vida melhor pras suas vidas. 

Cíntia: Eu acredito, mais uma vez a minha fala vai começar com infelizmente. Infelizmente na minha crítica, também acredito que tem tomado esse rumo sim. Então algumas pessoas, como em qualquer área, a gente tem pessoas que são bem intencionadas e outras que não. Enfim, quem somos nós pra julgar isso? Mas que entende como comércio mesmo, é empresa. Então tem toda uma divisão de como se fosse uma empresa para fins lucrativos, enfim. Então é algo que acaba sendo danoso, porque tira todo esse olhar humanístico, respeitoso, no qual eu acho que tu devia ser perene no tratamento.

Como nós vivemos num sistema capitalista, onde que eu vou dizer, a Táhcita mencionou muito bem, eu acho que não é somente com relação a ABA, mas a temática autismo é algo que eles enxergam como um cifrão. Porque imagina só, as famílias que têm os cuidadores estão no período de sofrimento, então se te vender qualquer coisinha ali vai dizer que vai sumir aquilo, aí entra todas essas questões que eu fico bem nervosa, nessa cura do autismo, então assim os familiares vão tentando. Então por isso que é importante a gente ter no Brasil essa conversa de qual que é esse serviço do analista do comportamento, a BPMC então vai ter que trabalhar pra dar esse respaldo no sentido de qual que é a atuação, qual que é a função, até pra trazer um pouco mais de seriedade. Porque hoje em dia se não qualquer um que se forma faz qualquer cursinho e já tá sendo analista de comportamento e sai fazendo práticas assim pavorosas. 

Tiago: Inclusive não só profissionais, mas eu vejo muitos familiares que produzem conteúdo sobre autismo nas redes sociais com esse discurso, digamos assim, ABA vai curar o autismo, e eu fico assim “meu Deus, isso é um clickbait horrível”, é um exagero gigantesco e isso mexe muito com as esperanças e com as dores das pessoas aí imagina, acham qualquer um profissional que traz uma promessa como essa e faz uma intervenção mal feita e pode trazer danos, então é algo que realmente precisa de muita prudência.

E vocês falaram também sobre essa questão de indústria do autismo, pra quem se interessar tem um artigo muito interessante no nosso site relacionado a este episódio que fala sobre a comoditização do autismo. Pra quem quiser entender o que é comoditização no contexto desse artigo aí tem uma um viés marxista de discussão e aí quem quiser ler, esse link tá lá pra conferir esse artigo que fala um pouco sobre isso, sobre uma comunidade que se move em torno do conhecimento a partir do autismo, principalmente que tá centralizado nos profissionais e que o autismo se torna mercadoria, mas enfim, essa é outra discussão, então, vamos voltar pra questão do ABA aqui.

E por fim, fechando essa parte das críticas, tempos atrás eu assisti uma live de um profissional que é bastante gabaritado no contexto do autismo, que é o Celso Goyos, e ele fez uma comparação que me deixou um pouco chocado no sentido de que pra mim a ela ilustra muito bem o porquê de alguns autistas torcerem tanto o nariz pra ABA e enfim, eu vou tocar pra vocês ouvirem e aí eu falo mais ou menos a minha opinião e depois eu jogo a bola pra vocês. 

(Celso Goyos: Se você tem uma doença maligna, todos nós sabemos que quanto mais cedo você souber, ter o diagnóstico e tratar, melhor vai ser. Com autismo não é diferente.)

Tiago: Então a gente vê que uma comparação de autismo com doença maligna, que é um negócio bem pesado, e tinha ali umas cinco pessoas na live e ninguém esboçou nenhuma reação de susto ou desconforto. E pra isso soar tão natural, num ambiente por exemplo como uma live, eu imagino que tem que ter um contexto que seja natural pensar o autismo como doença. E eu acho que nesse sentido talvez críticas que muitos autistas e muita gente da comunidade traz a ABA têm relação com a forma como profissionais podem falar sobre o autismo ou pensar sobre o autismo. Eu como jornalista eu tenho uma séria dificuldade de criticar atitude de outros jornalistas por mais que muitos façam coisas absurdas, mas a gente tem uma questão dentro da profissão que dificulta bastante isso e eu imagino que dentro da análise do comportamento deve ser também um pouco assim, já que é uma área tão rigorosa. Mas eu sinceramente fiquei bastante chocado com esse áudio e eu não consegui tirar ele da cabeça, pra mim ele ilustra muito bem o porquê de muitos autistas torcerem o nariz pra ABA. 

Táhcita: Eu acho que tô pensando aqui no fato de ter outros analistas do comportamento e que talvez ninguém tenha se posicionado. Eu acho que tem uma questão de relações de poder que às vezes dificulta com que a gente se posicione mesmo com coisas que a gente não concorda, porque infelizmente isso existe, essas questões de relações de poder, de hierarquia e hierarquização. Por outro lado, talvez tenha uma influência também do próprio modelo médico que acaba perpassando aí na análise do comportamento, então tanto no sentido dessa concepção do autismo como se fosse uma doença, o que não é verdade, mas também numa concepção enquanto “eu sou analista do comportamento, eu sei mais do que outras pessoas”, e isso de fato é uma coisa que eu acabo vendo bastante, infelizmente.

Eu concordo com vocês que foi um comentário infeliz, não sei também qual é a intenção, só que a gente como analista do comportamento, inclusive, a gente sabe que o comportamento, como ele vai ser  interpretado não depende da intenção, então eu posso de fato magoar uma pessoa, ofender uma pessoa se fizer algum comentário e pensando nesse tipo de comparação eu não vi essa live, não tenho todo o contexto com base só nesse excerto, eu acho que também que é um comentário aí relativamente infeliz e que se de fato isso for reconhecido, ele reconhecer que é um comentário que pode ofender as pessoas, se retratar. Nós nós estamos aí, a gente não é infalível, então a gente faz parte da cultura e a gente tá aprendendo a ser antirracista, a ser anticapacitista, e pessoas que tentam se comportar em prol de uma sociedade melhor e mais equitativa. Então eu acho que é sempre importante a gente ter essa humildade de parar pra pensar às vezes que de fato a gente pode tá reproduzindo algumas concepções que não são muito legais. 

Tiago: Durante essa conversa, muitas vezes, principalmente a Cíntia, falou das práticas baseadas em evidências, evidências científicas, etc, citou até algumas intervenções além de ABA que têm evidências científicas, e tem muito do discurso entre alguns autistas que é o seguinte: “ah, mas muitas pessoas falam que a única intervenção é a ABA e isso é errado porque existe integração sensorial, existe musicoterapia, existe uma série de coisas.” Mas aí ao mesmo tempo vejo algumas pessoas levantando a discussão que essas outras intervenções que também têm evidências científicas, elas têm objetivos distintos, apesar de todas serem intervenções baseadas em evidências. Seria algo parecido tipo, “ah, eu não gosto de viajar de avião” e aí eu falo, “ah, mas eu gosto de bicicleta”, só que o meu destino é ir pra Sydney, na Austrália. De bicicleta fica um pouco difícil de chegar, então não significa que a bicicleta não sirva, mas para o objetivo em si talvez não seja aquilo que seja indicado. Eu vejo muito geralmente comparações desse tipo. Então essa é a seguinte pergunta: ABA é realmente necessário? 

Cíntia: Não vou dizer que é necessário, mas fundamental. Até quando a gente pensa na criação de, vamos pensar num currículo, de intervenção precoce. Conforme a gente já tava mencionando antes, a gente tá ensinando um sujeito a aprender. Então, coisas que quando a gente olha os marcos do desenvolvimento, um bebê de seis meses já começa a balbuciar, ele já começa a querer apontar e imitar. Grande parte das crianças chegam sem esse repertório, com esse déficit, então o ABA é fundamental nesse sentido da gente ensinar esses programas pré-requisitos que nós consideramos como comportamento cúmplice, ou seja, são comportamentos que vão ensiná-los a aprender outras coisas mesmo sem a gente ensinar. Então, pensando mediante a isso, acredito que sim, ela não é somente fundamental e necessária, mas é crucial no sentido de trazer modificação de vida para o sujeito. 

Táhcita: Eu concordo parcialmente, mas aí de novo vou relembrar que eu sou uma pessoa da área experimental, então eu estou falando deste lugar. Eu diria assim que é possível ensinar habilidades básicas pra autistas sem a ABA, eu não diria que a ABA é necessária, eu acho que com base no conhecimento que eu tenho sobre os benefícios que ela pode ter, ela seria altamente desejável, mas grosso modo, o que a gente acaba fazendo em ABA não é extremamente diferente do que os próprios cuidadores e familiares costumam fazer na educação dos seus filhos e de crianças de maneira geral. O que acontece é que a gente acaba tendo uma sistematização, então a gente faz de uma maneira que traz uma efetividade.

Então é uma coisa que é eficaz e efetiva, ela não só funciona como ela é o melhor meio para garantir esse resultado, mas se a gente precisa de fato eu já diria que não, e muitas pessoas foram educadas sem ter tido esse tipo de ensino sistemático. Quando se fala em indivíduos  autistas, por conta das nossas próprias características acaba auxiliando a gente ter isso sistematizado. 

Tiago: Olha, isso é uma dúvida minha, mas ao mesmo tempo isso mistura um pouco com as críticas que eu já vi autista falando assim “ah a gente quer menos ABA, mais comunicação alternativa”, mas ao mesmo tempo eu ouço falar que tem uma certa relação de ABA com comunicação alternativa. Aí eu queria saber, comunicação alternativa e ABA são temas totalmente separados ou ABA de alguma forma tem relação com comunicação alternativa, já que é uma coisa tão importante na comunidade do autismo? 

Táhcita: Eu acredito então que não são coisas separadas completamente, até porque a gente pode utilizar os princípios da análise do comportamento pro ensino da comunicação alternativa e ampliada. Então de fato, às vezes pessoas podem tá utilizando CAA e acreditando que é uma coisa muito diferente de ABA, mas isso pode não acontecer, na verdade, porque essa sistematização pode ser utilizada pra tudo, na verdade. Como a Cíntia comentou logo no começo, a gente tá falando aqui de ABA para o autismo, análise do comportamento aplicada ao autismo, mas análise do comportamento pode ser aplicada numa diversidade de cenários e de grupos. 

Tiago: É, inclusive uma coisa que eu tô pensando muito aqui, é que a comunidade autista quando ouve muitas vezes falar em ABA já tem aquela questão negativa, tem muita coisa dentro da comunidade do que eu entendo que tem uma relação com ABA mas que não é tão mal vista. Por exemplo, o programa Teacch é baseado em ABA, não é? Também tem Denver e outras coisas assim que não recebem muitas críticas, mas têm uma relação, pezinho, digamos assim, com a ABA, ou eu tô errado? 

Cíntia: É exatamente, Tiago. Quando a gente pensa, eu também fico preocupada de ABA ser vista somente pra aquisição de planos de habilidades básicas. Quando a gente pensa, sei lá, vamos supor um público de adolescentes trabalhando com história social, vídeo-modelação, tô trabalhando com script, trabalhando com rotina, tudo isso é ABA. Então o próprio arranjo do ambiente do TEACCH a gente não pode dizer que não é ABA. Obviamente quando a gente vai, eu não sou a pessoa mais gabaritada para falar de dentro por não ter essa formação, mas grande parte do princípio também é ABA. Outros não, por isso que ainda não foi comprovado com tanta evidência científica quando a gente olha o rol do CDC. Mas aí não é uma questão pra gente tratar aqui.

Então é importante a gente dizer, acredito que inclusive quando eu vou até as escolas e a gente vai falar algumas coisas, “ah eu não sei nada de ABA” você olha toda a rotina, e “poxa, cê está sinalizando o ambiente, toda a pautinha, todo o script que a criança tem que fazer, falo “não, como você não faz aba? É que você não sabe que tem esse nome, mas você faz.” Então, acredito que o ABA está no nosso dia a dia, só que a gente só não usa essa nomenclatura. Algumas ferramentas, até mesmo quando a gente, a própria Táhcita usou uma fala que ela foi bastante feliz quando ela diz, “olha, o o próprios cuidadores quando ensina as crianças, mesmo sem ser analista do comportamento aplicado.” Exatamente, quando você vê uma mãe ensinando uma criança, “diga mamãe, mamãe, mamãe”, enquanto não sai mamãe ela… E quando sai, ela faz aquela festa. É isso mesmo, ela não é analista do comportamento aplicado. Então, a ABA está no universo, tá aí no dia a dia. 

Táhcita: Eu tô contemplada com a resposta da Cíntia (risos).

Tiago: Alguns autistas que não gostam de ABA praticamente pouca coisa vai convencê-los do contrário, ou não sei se necessariamente alguma coisa precisa convencê-los do contrário. Na verdade a gente tá aqui discutindo questões que devem ser pensadas, mas enfim, cada um tem, quando a gente fala de convicções aí a gente tá em outro território que tá de fora de uma discussão científica, mas muitos autistas, principalmente no ativismo, eles têm aquela dúvida de que se a prática profissional, dos profissionais que trabalham com ABA seria compatível com a ideia de neurodiversidade.

Lembrando quem ouviu o episódio 172 – Anti-neurodiversidade sabe que neurodiversidade pode significar três coisas diferentes: pode ser um o conceito, que vem lá da socióloga, Judy Singer, pode ser o movimento, o ativismo que muitas vezes ganha o nome de movimento da neurodiversidade e tem uma terceira coisa que a gente chama de modelo da neurodiversidade, que é uma concepção filosófica que consiste basicamente em postular que a ideia de um cérebro “normal” é algo socialmente construído e alguns autistas que vão ter uma postura digamos mais radical, mas aqui sem usar o sentido necessariamente negativo pra palavra radical, tá? Mas alguns autistas que têm um pensamento radical em relação a isso vão ser contra todo e qualquer tipo de intervenção, e aí a maior delas é ABA. E aí eu queria lançar essa pergunta pra vocês, como profissionais, e também como autistas: ABA é compatível ou incompatível com a neurodiversidade? 

Cíntia: Aí vem esse ponto que eu acho fundamental você abordar, dessa questão da neurodiversidade. Se eu tô dizendo que eu vou fazer uma intervenção que tá embasada de ser aplicada para o sujeito, e cada sujeito é único pra mim já fica meio que às vezes até um pouco óbvio que é sim compatível com a neurodiversidade, e para isso é importante, a gente sabe que ao longo da história da análise do comportamento teve, e espero que não tenha mais, vamos sonhar com o universo dessa forma, que muitas práticas não sejam aplicadas simplesmente para que o sujeito fica dito como “normal”, ou como próximo aos pares, então a partir de agora que a gente entende, compreende um pouco mais essa ciência e tem todo esse arcabouço ético, humanístico por detrás, a gente vai respeitar o enfim, então quando a gente pensa também numa estratégia que é da área do qual maior falo que quando eu penso na estratégia naturalística, eu estou levando em consideração a motivação do sujeito, estou levando em consideração aquilo que ele deseja, o que ele quer. Então acredito que sim. Estou falando do ponto de vista da onde eu atuo. 

Táhcita: Eu concordo. Até onde eu sei, eu entendo pouco na parte de literatura sobre neurodiversidade, mas levando em consideração o pouco que eu sei, eu diria sim que é compatível, até porque isso. A análise do comportamento aplicada não existe só para autistas, a análise do comportamento aplicada pode ser utilizada pra qualquer indivíduo e, de fato, como eu tava mencionando previamente, muitas estratégias que são utilizadas, como o exemplo que a Cintia falou, “fala mamãe”, e tal,  são utilizadas por talvez a maioria, senão todas as pessoas no ensino dos seus filhos, de crianças de maneira geral e são princípios de comportamento e estão presentes em todas as pessoas. A gente tá falando aqui de questões comportamentais.

Nesse sentido eu acredito também que a ABA é compatível com a neurodiversidade e além disso a análise do comportamento como uma área ainda maior do que somente a ABA também. Justamente porque a gente parte dessas concepções de que cada indivíduo tem uma história de vida única e de que quando a gente se comporta, as coisas que nós fazemos vão sofrer essa influência de questões biológicas ou genéticas, vamos ter essa influência de questões individuais e vão ter influência de questões culturais, e esses padrões normativos que a gente tem na sociedade acabam influenciando muito.

Quando a gente estuda, sei lá, conformidade, a gente tem vários tópicos em psicologia social, por exemplo, que é pra de fato entender um pouquinho a influência da cultura no comportamento dos indivíduos e a análise do comportamento parte deste pressuposto de que cada um vai ter uma história única por conta dessa interação entre esses três que a gente chama de níveis de seleção. E é isso, uma coisa não é voltada somente para autistas. É uma questão que todo mundo pode aprender com ABA e tem profissionais de fato com páginas  no Instagram, por exemplo, que mostram ou ensinam seus filhos utilizando ABA também, então essa sistematização, essa maneira de utilizar a ABA e os benefícios também ocorrem pra qualquer pessoa, não é restrito a indivíduos autistas. 

Tiago: É, inclusive eu conheço, e isso foi um dos fatores que me motivou a fazer esse episódio, é que eu conheço muitos autistas que gostam de ABA, que trabalham com a ABA, além de vocês duas, e tudo mais, e eu sempre senti que eles ficam sempre meio que de escanteio na comunidade do autismo, com medo, porque existe um discurso construído de que os autistas odeiam ABA, e aí eu sempre fico me perguntando “tá, mas quem são esses autistas que odeiam ABA de verdade? A gente pode generalizar nesse sentido?”

Então eu percebo que também essa discussão que a gente fez nesse episódio é um pouco pra contemplar também essas questões, porque eu por exemplo, estando num círculo social que eu conheço autistas que gostam de ABA, algumas discussões que eu tive com essas pessoas já me levaram a alguns que me ajudaram muito na minha vida pessoal, e olha cê vê que coisa interessante. Eu não tenho nenhum interesse, hoje em dia, em temáticas relacionadas à ABA, pra ser bem sincero, o que eu li foi mais uma questão mesmo de estar minimamente por dentro pra não falar bobagem na internet, e mesmo assim algumas coisas que eu tive na convivência, de coisas que eu sei que são baseadas, me ajudaram bastante, e eu acho que isso é um outro ponto que faz a gente pensar com uma perspectiva totalmente diferente sobre um tema muito além daquilo que a gente vê ali na internet, que é um vídeo de uma criança numa mesinha, então acho que isso é realmente legal. 

E isso também me faz pensar numa responsabilidade muito grande que nós autistas que produzimos conteúdo na internet temos que ter ao falar sobre um tema tão complexo, e a gente sabe que é um tema que obviamente traz muitas dores etc, mas tem uma coisa que pra mim é indispensável, que é o seguinte: eu vejo muitas vezes autistas que simplesmente, às vezes nunca passaram por uma intervenção baseada em ABA na vida e falam assim, “ah, porque ABA é ruim e você mãe, pai deveria ficar atento ou não trazer seu filho pra esse tipo de intervenção”, e eu já vi isso acontecer. Aí tem um pai ou uma mãe que vai lá, tira ou não leva pra essa intervenção ou, enfim, deixa criança totalmente sem intervenção, acha “beleza, meu filho vai ser igual esses autistas que falam na internet”, que vai ser igual, que vai ser uma maravilha, e isso pode trazer um dano muito grande, e eu vi inclusive uma ativista há uns tempos atrás falar assim, “ah, mas quem tira é o pai e a mãe, eu não tenho nada a ver com isso” e eu fiquei assim: “como assim não tem nada com isso?” Então, quer dizer então que, por exemplo, a gente pode falar que o Bolsonaro não pode ser responsabilizado por toda a questão da cloroquina em relação a pandemia, porque o Bolsonaro não colocou arma na cabeça de ninguém falando: “tome cloroquina”. Então assim, eu vejo que nós autistas temos uma responsabilidade muito grande em relação a isso e aí você goste ou odeie ABA, mas quando a gente vai trazer informações sobre o autismo a gente precisa ter um certo cuidado em relação a isso.

Táhcita: Eu concordo totalmente com o que você falou, talvez uma mudança de postura num sentido assim, independentemente do tipo de intervenção que vai ser proposto pra esse indivíduo, já que não existe só ABA enquanto uma intervenção que é cientificamente comprovada, eficaz, é esse tipo de instrumentalizar os familiares a conseguir identificar bons profissionais, a despeito do tipo de intervenção que vai ser escolhido. Eu acho que isso acaba tendo um impacto muito mais bacana do que eu simplesmente afirmar que ABA não funciona, por exemplo, a despeito de toda a evidência. Então sim, é importante que a gente tenha críticas e até o final acho que talvez seria bacana eu e a Cíntia comentarmos algumas críticas que nós temos de fato, a gente não acha que ABA é perfeita, longe disso mas eu acredito pessoalmente que nós temos uma grande responsabilidade enquanto pessoas que estão falando, e tem muitas pessoas que nos ouvem, muitas pessoas que vêm até a gente com questões, com dificuldades, estão buscando alternativas e que o que a gente fala pode ter um impacto aí, como você falou, não só a curto prazo, mas a longo prazo também. 

E essas estratégias sobre a escolha de profissionais eu acho que acaba sendo uma dica muito mais bacana, na minha opinião, porque independentemente do tipo de intervenção que vai ser escolhida, vai ser esse tipo de perguntar assim, “o profissional tá se baseando no bem-estar das crianças, desse indivíduo, ele está te consultando, ele está te contando todos os passos que ele planeja, ele está fazendo esse planejamento com você? Qual o tipo de formação que esse profissional tem? Esse profissional está sendo atualizado, esse profissional tem supervisão?” Então acho que são algumas perguntas independentemente da abordagem, do tipo de intervenção, são perguntas importantes que vão dar dicas sobre a qualidade desse serviço que vai ser prestado.  

Cíntia: Eu concordo com vocês. Eu acredito que a gente precisa ter uma, chamo de responsabilidade social, a partir do momento que a gente manifesta uma opinião, sobretudo se você tá falando de um lado enquanto autista pra uma família, acaba já sendo um pouco tendencioso, então no sentido que precisa sim, pode trazer um impacto na vida de uma criança tanto a curto como a longo prazo terrível, então é importante, obviamente, que existem profissionais e profissionais, então quando a gente fala de ABA é importante a gente tá querendo dizer “será que nós estamos criticando ABA ou estamos criticando  certos profissionais que dizem que fazem ABA?” Obviamente não tô querendo dizer que a análise do comportamento aplicada já está pronta, acabada. Não está, se não, não é ciência. Então a ciência para que ela mesma tome o seu curso enquanto ciência a gente precisa sim sempre melhorá-la. 

E aí eu tenho também várias críticas enquanto autista pra essa ciência. Então é importante a gente ter sempre isso em mente, que o que a gente fala, se você tá falando de um posto enquanto uma figura pública, precisa sim ser bem responsável, que a sua fala pode afetar de fato a vida do outro. 

Tiago: E já que vocês comentaram, acho que é uma ótima oportunidade, principalmente pra quem ouviu o episódio até agora, então, de saber quais são as críticas que vocês têm sobre ABA, ou sobre análise do comportamento de uma forma geral, então vou deixar aí vocês meterem o pau.

(Risos)

Táhcita: Ixe, tem uma lista (risos). Eu tô brincando. Vou falar de um ou outro ponto que eu acho bastante relevante, num vou falar exatamente sobre análise do comportamento, porque aí eu acho que é uma outra discussão, vou tentar focar na questão da ABA. Eu acho que é um ponto muito importante que acaba sendo negligenciado, é o fato da gente ter uma postura, muitas vezes, de ignorar a própria comunidade com a qual a gente está trabalhando, e isso não é restrito ao autismo, é com relação a todos os tipos de população que a gente trabalha, então essa visão às vezes de que eu enquanto profissional sei mais do que a própria população é uma coisa que eu acho muito problemática, e infelizmente acabo vendo bastante esse tipo de posicionamento.

Inclusive recentemente a Cíntia e eu escrevemos um artigo que está em em avaliação nesse momento, constando algumas críticas que nós temos com relação à ABA, e eu acho que uma delas que vale a pena mencionar é justamente esse fato da gente muitas vezes pensar as intervenções sem incluir a própria população alvo. Então existem já iniciativas que são de fato para incluir, no caso os autistas, nessas discussões, então se você vai fazer uma pesquisa, por exemplo, você se encontra com um grupo de autistas pra perguntar o quê que vocês acham que é importante ser pensado, dizer “eu sou pesquisadora de autismo, queria saber o quê que vocês acham que é importante pra gente pesquisar, que tipo de linguagem que a gente utiliza…”, porque às vezes tem esse embate, pessoa antes do diagnóstico, e a comunidade autista falando “não, eu sou autista, não preciso falar pessoa com autismo.” Então, eu acho que é uma forma excelente da gente tornar o nosso conhecimento de fato válido pra essa população, socialmente relevante, e de fato de mostrar que a gente tá ouvindo essa população. Então, de que não há essa questão hierárquica de que o profissional sabe mais do que eles, porque ao meu ver é uma troca, eu tenho algumas ferramentas e você tem a vivência. Você precisa me falar. É importante que você me fale o quê que é importante pra você pra que eu te mostre essas ferramentas e você verifica se essas ferramentas podem ser úteis ou não pra você. Eu acho funciona muito como uma conversa onde as duas partes são igualmente importantes. 

Cíntia: Perfeito, Táhcita, concordo com você. E pensando em algumas críticas que a gente, inclusive debatemos bastante entre essa questão com relação também a intervenção para adultos. Porque eu fico muito brava mesmo quando usa sinônimo, sei lá, de ABA ou autismo com criança, então a gente precisa que a nossa comunidade de analistas do comportamento comece a pensar em estratégias e além de escutar os autistas adultos, sobretudo, para que a gente comece a ter uma intervenção que seja mais eficaz. E outra crítica assim que eu tenho que pra mim pega muito, quando fala de controle instrucional. Alguns analistas do comportamento que a gente acaba conhecendo ao longo da carreira, prezam muito por essa questão do termo obediência, de obedecer a qualquer custo, e assim a minha crítica eu acho que até enquanto filosofia mesmo, isso é muito danoso porque você só tá ensinando o sujeito a seguir regras, e isso é muito, pensando na adolescência, na vida adulta, você tá ensinando o sujeito a se colocar em risco.

Então uma crítica que eu trago também é que a criança tem, quando falo criança é o sujeito, a pessoa, o adolescente, o adulto, ele tem o direito de negar, de não querer fazer alguma coisa, não de ser uma relação de ensino, que eu vejo a análise do comportamento aplicada como isso, uma relação de ensino, onde que eu mando e você obedece, e não é dessa forma. Então a gente tem que ensinar a criança a escolher, tô falando do viés da onde eu vivencio, do que eu acredito, então ela tem direito de escolher. “Ah, tem X programas pra fazer, mas eu quero fazer esse primeiro, eu quero… esse eu não quero fazer hoje”, e ok tem dia que a gente não tá legal e que a gente não quer fazer determinada coisa, então precisa ter acho que esse olhar, porque às vezes eu noto que muitos analistas do comportamento, até uma vez eu fui dar uma palestra e uma pessoa me falou “ah, você é analista do comportamento mesmo?” Daí eu quase falei assim: “poxa, por quê? Eu sou tão radical? Eu que me acho?” E ela falou assim: “Ai, porque você é tão sorridente, é tão querida, tão meiga, nem parece que é analista do comportamento.” Ou seja, essa impressão que passa que a analista do comportamento é uma pessoa séria, fria, que não é amorosa, então acho que essas são práticas que precisam ser modificadas. Eu não somente acho que a prática, mas que o fazer do analista do comportamento. 

Táhcita: É, perfeito, assim só pra fechar, eu acho que essa discussão que a gente tá fazendo, na verdade, ela tem muito a ver com ética. E, de fato, esse é um ponto que a gente verificou que acaba faltando muito nos cursos. E isso eu acho que se expande não só em termos de análise do comportamento, mas da psicologia em geral, de que falta uma formação ética às vezes muito sólida, e especificamente nos cursos de análise do comportamento que são voltados, aplicadas ao autismo, a gente verificou que são raros os cursos que incluem disciplinas sobre ética e tudo isso que a gente tá falando, essa questão que a gente chama de compliance, ou controle instrucional, a questão de seguir regras, de você ver aquela criança não como um ser que não tem vontades e que não tem escolhas, mas como um indivíduo de fato que pode ter dias bons e dias menos bons e que têm uma vontade própria, são questões éticas e que a gente precisa de fato ter uma formação continuada com relação a esses tópicos pra gente de fato não correr esse risco de pegar essas estratégias que a gente pode utilizar, toda essa ferramenta, e utilizar de uma maneira que vai ser danosa pros indivíduos. 

Tiago: Sensacional, eu fico extremamente honrado de ter vocês aqui nesse episódio, ainda mais um episódio tão denso, tão longo assim, foi uma discussão realmente bem grande que a gente teve e que com certeza, eu pelo menos, do que eu acompanho da comunidade do autismo aqui no Brasil há muitos anos eu acho que a gente tocou em alguns pontos que não são comumente falados quando a gente fala sobre ABA e a relação dos autistas. Então acho que com certeza a gente tem aqui muitos insights, muitas coisas pra debate entre a comunidade. E eu até te sugiro que você que ouve o Introvertendo envie uma mensagem pra gente, comente o post, que eu acho que vai ser uma discussão bastante produtiva. Mas antes do episódio terminar, eu queria que vocês falassem as suas redes sociais, onde o pessoal pode encontrar, o conteúdo de vocês as discussões, enfim fiquem à vontade, o espaço é de vocês e muito obrigado mais uma vez. 

Táhcita: Eu que agradeço o convite, foi uma conversa muito bacana, apesar da duração imensa de fato que muitas coisas ficam de fora. Pra quem quiser me acompanhar, o meu Instagram é @tahcita.mizael,  quem quiser seguir lá eu costumo postar muitas coisas, enfim, eu posto algumas coisas sobre autismo, mas também sobre outros temas que eu trabalho. Especialmente questões raciais, que é o meu principal tópico de pesquisa e também questões de gênero e sexualidade, populações LGBTQIA+, psicologia e coisas pessoais também. Nem é um Instagram profissional, é um Instagram pessoal que eu acabo divulgando algumas pesquisas, algumas coisas que eu faço e algumas coisas que eu tenho interesse.  

Cíntia: Muito obrigada, Tiago, pelo convite. Táhcita, foi um prazer poder falar de autismo e ABA que meus dois hiperfocos. Filosofia também, fica pra depois. Então minhas redes sociais. Acho que tem o TEA Reinventar, que é do espaço de aprendizagem que hoje eu posto um pouquinho sobre a literatura sobre a análise do comportamento aplicada, sobre ABA e um pouquinho do universo do autismo, enfim.

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