Introvertendo 122 – Amor no Espectro

Lançada originalmente em 2019 pela ABC e liberada para o mundo em 2020 pela Netflix, a série australiana Amor no Espectro (Love on the Spectrum) recebeu intensa atenção da comunidade do autismo no Brasil. Neste episódio, Tiago Abreu recebe Carol Cardoso, Paulo Martins-Filho e Táhcita Mizael, todos autistas, para discutir a primeira temporada do reality show: personagens, representação do autismo, temas apresentados e suas premissas. Arte: Vin Lima.

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Transcrição do episódio

Tiago: Um olá pra você que escuta o podcast Introvertendo, que é o principal podcast sobre autismo do Brasil. Meu nome é Tiago Abreu, sou host deste podcast, jornalista, diagnosticado com autismo em 2015 e geralmente uma série pra me atrair precisa ter algum motivo muito importante, que é o caso da série que nós vamos falar aqui hoje.

Paulo: Meu nome é Paulo, eu sou professor, pesquisador de uma universidade federal, a Universidade Federal de Sergipe. E sou epidemiologista e expert em medicina baseada em evidências. Fui diagnosticado com Síndrome de Asperger já numa fase mais adulta da minha vida e também tenho um Instagram, que é @aspie4all.

Táhcita: Olá pessoal, eu sou a Táhcita Mizael, eu sou psicóloga, sou doutora em Psicologia. Trabalho bastante com temas relacionados a questões raciais, gênero, sexualidade e feminismos, eu também sou autista, meu diagnóstico é super recente (desse ano, na verdade, menos de dois meses) e eu espero que eu possa contribuir aqui com a conversa de hoje.

Carol: Oi, meu nome é Carol Cardoso, eu moro no Amapá, sou estudante de Arquitetura da Universidade Federal do Amapá e fui diagnosticada com autismo em 2018, aos meus vinte e um anos de idade. E esta vai ser a minha segunda participação no Introvertendo.

Tiago: Show. Queria agradecer bastante a participação de vocês aqui pra discutir uma série que todo mundo tá conversando e que tem muitos pontos interessantes a serem abordados, que é a série Amor no Espectro. E só pra avisar, esse episódio tem spoilers, então se você não assistiu ainda, você assiste e depois você retorna aqui que nós vamos fazer muitos comentários legais sobre a série.

Bloco geral de discussão

Tiago: O tema de hoje é a série Amor no Espectro (em inglês, Love on the Spectrum). É um documentário que ao mesmo tempo é um reality-show originalmente lançado em novembro 2019 pela ABC, uma emissora australiana, ou seja, uma produção feita na Austrália, tem direção do Cian O’Clery, foi liberado pro mundo pela Netflix, agora no final de julho de 2020, grande parte da popularidade veio depois da Netflix. E essa série acompanha jovens autistas em busca de um relacionamento sério. Eu falei sobre a série em alguns outros lugares, também vi muitos autistas comentando, muitas opiniões interessantes e por isso que eu quis trazer vocês três aqui pra termos uma discussão amplificada sobre o tema. Primeiro eu queria saber de vocês, como é que vocês avaliam a representação do autismo nesta série?

Carol: Na minha perspectiva foi uma das melhores representações que eu já vi em mídias diversas, porque em geral as representações midiáticas do autismo tendem a ser um pouco estereotipadas. E eu gostei que por mais que todos os personagens (eu vou dizer personagens porque eu não sei, não sei qual termo melhor pra me referir às pessoas) apresentam diferenças entre si, isso fica muito claro. Porque de uma forma geral o que me incomoda nas representações de autismo é que elas tendem a enquadrar o autismo num ponto de vista muito enrijecido, de um jeito que acaba parecendo que todas as pessoas são iguais. E com essa série eu percebi que ficou muito claras as diferenças de personalidade entre as pessoas, ainda que boa parte delas compartilhem dificuldades semelhantes em relação ao tema dessa série, que é relacionamentos amorosos.

Táhcita: Eu concordo. Uma coisa que eu achei bastante interessante é que a série vai mostrar que vários mitos que a gente tem com relação aos comportamentos que todos os autistas deveriam demonstrar são de fato mitos, sabe? Então, coisas que até profissionais da saúde falam, como que autistas nunca oram nos olhos das pessoas ou não sorriem. Então, acho que com essa diversidade das pessoas que participaram desse programa, que também não é gigantesca, mas em comparação com outros trabalhos de mídia vai mostrar um pouquinho isso, eu acho.

Paulo: Gostei bastante da série, eu assisti a série basicamente de uma só vez. É uma série que mostra o autismo na vida real, sem o viés da ficção ou de extrapolar a forma como é o realmente o autismo se coloca. E a série é interessante porque realmente ela desmistifica muitas ideias que rodeiam o transtorno. Eu também gostei da série de uma maneira geral porque ela consegue mostrar, mesmo com uma quantidade pequena de autistas participando, as várias nuances dentro do espectro.

Tiago: Eu também gostei bastante da série, eu acho que tem vários pontos positivos e a representação do autismo é uma delas. Tem vários personagens que pra mim fogem bastante do arquétipo de personagem autista que aparecem em muitas produções. Apesar de ser apenas cinco episódios, há muitas histórias e há muitas camadas dentro da série. O plot é muito simples: são pessoas que querem amar, são pessoas que querem relacionamentos duradouros, mas todo desdobramento ao longo disso, as frustrações, as alegrias, as expectativas das famílias e das próprias pessoas, tudo isso tá muito bem representado de uma forma que não é expositiva e acaba aparecendo de forma natural. E são tantos personagens que eu fico pensando se vocês se identificaram em especial com algum personagem. Então, eu queria lançar essa pra vocês. Tem algum personagem favorito de vocês nessa história?

Paulo: Na verdade, eu gostei todas as pessoas que participaram dessa série. Eu acho que as diferenças entre eles são importantes a se destacar. Inclusive algumas outras deficiências foram abordadas. Mas particularmente eu gostei do casal do último episódio, da forma como eles, juntos, encaram o desafio desse relacionamento dentro da individualidade de cada um, que inclusive, no final, eu acho, que ele propõe ela em casamento. Isso mostra uma evolução muito interessante especialmente dele ao longo das filmagens. Ele começa a filmagem extremamente tímido, eu diria assim, extremamente desconfortável com o que tava acontecendo ali, embora ele tivesse junto da sua companheira. Mas no final das gravações me chamou atenção o fato dele ter conseguido cantar e dançar com ela, inclusive beijar na frente das câmeras, que é algo que logo no começo das gravações ele não não tinha conseguido fazer e ele tinha deixado muito claro que não iria fazer.

Carol: Tiveram dois personagens com os quais eu me identifiquei mais, que foram o Andrew e a Olivia. A Olivia eu me identifiquei bastante com o fato de que ela se considera uma pessoa muito romântica e eu também me considero uma pessoa muito romântica, embora eu tenha muitas dificuldades quanto a isso, porque eu passei a entender que um pré-requisito para uma coisa ser considerada romantismo é a reciprocidade. E reciprocidade é uma coisa que eu não tive muito ao longo da minha vida. Então, eu me identifico muito com a Olivia, porque ela também teve muitas paixões frustradas e não correspondidas. E me identifiquei bastante com a forma como ela fala que ela sente como se ela tivesse dentro de uma caixa em que ela não consegue sair, ninguém consegue entrar. E por boa parte da minha vida, até antes do meu diagnóstico, eu me sentia muito assim, como se eu não conseguisse sair e como se eu desejasse muito que as pessoas pudessem ler os meus pensamentos, pra ver que eu sou uma pessoa que vale a pena conhecer. Então eu acho que o meu diagnóstico fez muita diferença nesse aspecto. E ela também teve um diagnóstico bem tardio, assim como o meu. E outro personagem que eu me identifiquei bastante foi o Andrew, porque a Olivia se sente como eu me sentia antes do diagnóstico e ele seria como eu me sinto agora depois de certas intervenções. A terapeuta que prestou assistência pra ele diz que ele desenvolveu algumas habilidades sociais muito boas, mas tem problemas de flexibilidade e ainda de interpretar essas coisas bem mais subjetivas, que é uma coisa particular do autismo. Mas aí eu sinto que como essa dificuldade se manifesta no Andrew se assemelha muito a como eu me sinto, principalmente quando ele recebe uma mensagem e ele entende uma coisa que a terapeuta diz que era outra. E essa semana mesmo eu tava discutindo com algumas amigas sobre como eu entendia muito errado mensagens que me mandavam de pessoas que possivelmente estariam interessadas e eu não entendia que as pessoas estavam interessadas ou o contrário, quando eu não entendia que as pessoas não estavam interessadas. Então, nisso eu me identifiquei bastante com esses dois personagens.

Táhcita: No meu caso, eu não sei dizer se eu me identifiquei com algum personagem específico, mas eu achei bacana os comentários que a Carol acabou de fazer, porque de fato o que eu acabei me identificando foram alguns comportamentos que eu vi em diferentes pessoas, principalmente nos dois que ela acabou de comentar. Acho que a questão ali de você se sentindo uma caixa em que as pessoas conseguem te ver e conseguem “interagir” mas você não consegue sair da caixa pra ter uma interação completa e a pessoa também não consegue entrar foi uma coisa que me tocou bastante. Porque é um sentimento que eu venho carregando durante toda a minha vida, buscando explicação pra isso, que já tentei encaixar em outras em outras questões que eu tenho, como uma mulher que é negra e bissexual. Então, acabei me identificando mais com alguns relatos, alguns comportamentos e a questão da literalidade também. Isso especialmente acho que em relacionamentos, não só relacionamentos amorosos, mas interpessoais de maneira geral, foi uma coisa que eu acabei percebendo nos últimos tempos. A pessoa tem que saber expor isso muito bem pra mim, porque senão eu vou entender o ela está falando, não as entrelinhas. Isso acaba trazendo muitas dificuldades. Então, foram momentos em especial que eu que eu me identifiquei.

Paulo: Enquanto as meninas tavam falando, eu tava aqui refletindo um pouco. Eu também não sei se eu me identifiquei com algum personagem específico, mas essas situações que elas também comentaram, me chamaram um pouco de atenção, mas dentro do que elas falaram especificamente, eu acho que essa coisa de estar na caixa e não conseguir sair pra minha vida pessoal foi um pouco superado. Acho que a Carol falou algo em relação a reciprocidade e eu acho que um segredo pra um relacionamento dar certo, especialmente pra alguém que tá dentro do espectro é que o respeito e a reciprocidade é fundamental pra isso dar certo. O teu companheiro, a tua companheira, entender e respeitar os teus limites, as tuas dificuldades, as tuas particularidades. E você ser recíproco também acho que é uma fatia importante desse processo de relacionamento. A reciprocidade ficou muito evidente nos dois casais que a série mostrou.

Tiago: Eu também não me identifiquei exatamente com um personagem, mas com várias situações. Como a série mostra vários encontros, há muitos detalhes de como a câmera demonstra isso. O desconforto de uma pessoa ou outra, o ambiente, a questão sensorial, são vários elementos ali que compõem cada encontro que acaba sendo impossível você não se identificar com algum elemento ou outro. Mas em termos de simpatia e de profundidade da história, eu gostei bastante de dois personagens que são o Mark e a Olivia. A Olivia pelo motivo de que entre todos dá pra perceber que ela é a menos apegada com as regras sociais, tanto é que ela faz algumas coisas ali durante o processo dos encontros que seria considerado completamente absurdo. Acho que ela arrota em uma cena assim e eu vi alguns autistas falando que sentiram nojo assistindo a cena. Enfim, ela é uma personagem bem diferente dos demais. E ela incorpora uma discussão que a série não desenvolve muito, mas que ela consegue resolver sozinha que é essa questão primeiro do subdiagnóstico em mulheres, e essa transição da síndrome de Asperger para o espectro do autismo no DSM. E tem uma cena específica no primeiro encontro dela que me chamou muita atenção. Ela tem aquilo que as pessoas chamam de estereotipias ou stims de uma forma muito mais aparente do que os outros personagens. E aí o cara que tá saindo com ela, que também é autista, imita ela. Ela se sente ofendida com isso e fala: “não faça isso, você está rindo da minha deficiência”. E ele fica desconsertado, fala que ele não tava fazendo isso, mas pelo menos eu tive a impressão de que ele tava fazendo sim e não quis admitir isso. E o Mark é um personagem que me chamou muita atenção, porque ele me lembra muitos outros autistas que eu conheço e que até agora eu não tinha visto em produções sobre autismo. Ele é extremamente expressivo, tem uma ligação muito forte com a família, ele se dá muito bem com os pais, ele é muito amoroso. Não que eu estou falando que autistas não têm empatia, mas geralmente as produções sobre autismo retratam personagens mais frios. E o Mark vai completamente contra esses estereótipos. Inclusive eu acho que ele é o único personagem autista da série que eles não apresentam de imediato que ele é autista, eles só apresentam que é autista de fato no episódio seguinte, então fica algo bastante implícito a forma como ele lida com as outras pessoas, com a forma de como ele é gentil, e até tem um nível de habilidades sociais maior do que as outras pessoas. Ele mostra muito bem essa parte dos autistas que tem uma autonomia, mas que muitas vezes podem passar despercebidos. Eu gosto muito da história dele, da forma como é desenvolvida e eu acho que ele, junto com a Olivia, são os personagens mais fortes da série. E eu também queria comentar sobre o Michael, porque a visão dele sobre relacionamentos me lembrou muito o fato de que tem muitos autistas que tem uma visão meio moralista, meio tradicional, sem juízo de valor propriamente dito, sobre relacionamentos. Por exemplo, tem uma parte ali na série que ele estabelece uma crítica a pessoas que só querem ter encontros para sexo. E isso parece me lembrar muito a visão moralista que eu tinha sobre relacionamentos há oito, nove anos atrás. Hoje eu tenho uma visão completamente diferente, mas eu vejo muitos autistas que tem essa coisa mais tradicional, essa coisa de julgar as outras pessoas, porque elas têm relacionamentos casuais. E uma das coisas que eu acho que realmente resume o espírito da série é quando uma das profissionais diz que as pessoas têm um senso comum de que autistas não gostam de interações sociais. E, portanto, eles estão felizes em não ter relacionamentos. E na verdade, quando a gente convive dentro da comunidade do autismo, a gente sabe que isso não é verdade. Uma grande parte dos autistas querem relacionamentos, mas eles desistem porque eles têm essa dificuldade. Então, é quase que uma arrogância nossa, do tipo: “não consigo ter relacionamentos, então eu vou falar que eu não quero, que eu sou feliz sozinho, porque assim eu não consigo enfrentar/desafiar realmente a dificuldade que eu tenho”. Então, eu já vi isso acontecer em muitos autistas. Ao mesmo tempo que eles negam a necessidade de ter relacionamentos, dá pra perceber que eles sofrem com a falta de relacionamentos, que eles já tentaram no passado e falharam tanto que uma hora chegaram a desistir. E já que eu mencionei as profissionais, eu queria perguntar principalmente para a Táhcita, qual é a avaliação que você faz, como alguém da psicologia, sobre o trabalho das duas profissionais que estão lá na série?

Táhcita: Então, a Jodi é que eu tô lembrando, e eu não tô lembrando da outra profissional. Eu gostei bastante da abordagem da Jodi porque ela vai desenhando. Ela não faz uma abordagem de dar uma instrução somente e esperar que a pessoa faça aquilo. Ela vai primeiro vendo qual que é a concepção que cada uma das pessoas tem. Do ponto de vista profissional, isso é o que a gente chama de linha de base, você vê qual que é o repertório que a pessoa tem para a partir disso verificar quais habilidades que a gente pode aprimorar, que a gente pode trabalhar para que essas dificuldades que foram trazidas pela própria pessoa possam ser trabalhadas. E eu achei ela bastante sensível assim a dificuldades. Eu tô lembrando de um episódio que é num restaurante e aí o Michael faz como se fosse um roteirinho do que ele precisa fazer para ir ao restaurante. A gente tem que ter um cuidado também quando a gente trabalha com pessoas, porque quando a pessoa tem esse histórico que a gente chama de “fracasso”, tem que ter um cuidado pra você de fato motivar essa pessoa e mostrar que isso pode ser prazeroso, que ela pode conseguir resultados fazendo pequenos passos. Acho que ela trabalhava com a motivação também das pessoas que estavam na série. As pessoas queriam ter encontros, queriam conhecer pessoas e a partir disso é necessário seguir algumas recomendações para coisas que são socialmente esperadas. Então, eu achei bem bacana essa abordagem dela. A outra moça eu não me lembro quem que é a outra.

Tiago: Elizabeth Laugeson, aquela que faz o panorama coletivo, que ela junta ali, todo mundo num curso de treinamento…

Táhcita: Ah, tá. Lembrei agora. É, eu acho que eu teria que rever as cenas. Eu não percebi alguma coisa errada do ponto de vista profissional, sabe? Isso são recortes. Então, também é uma coisa que acaba sendo difícil de avaliar, porque a gente tá vendo o que o diretor escolheu deixar na série. Mas a grosso modo, pelo que eu lembro, me pareceu uma abordagem interessante.

Carol: Sobre o personagem Michael, uma coisa que eu observei é que ele tinha papéis de gênero muito específicos na cabeça dele. Então, ele acabava reproduzindo muito esses papéis de gênero. No caso, “uma mulher deseja isso, ou um homem deve fazer isso”. São coisas que pessoas de desenvolvimento típico acabam incorporando e que pessoas com autismo tendem a ter certa dificuldade. Mas aí nesse caso a gente pode se perguntar como que essa parte da orientação profissional ou familiar de como que uma pessoa autista deveria se portar num relacionamento amoroso, o peso que isso pode ter na vida de uma pessoa. Porque o fracasso nesse relacionamento pode ser justamente por essa rigidez de papéis de gênero que ele pré estabeleceu. Inclusive a moça com quem ele saiu achou que ele foi muito formal e etc. O problema, eu imagino, talvez não tenha sido a formalidade em si, porque esse é um traço de personalidade, no caso eu também posso ser considerada muito formal, mas eu acho que a questão é mais de que existe certa projeção de um papel que uma possível parceira deveria desempenhar em um relacionamento e que precisa muito ser discutido também quando se trata de orientar pessoas com autismo sobre como se comportar em um relacionamento amoroso.

Paulo: O que me chamou muita atenção, dentro do que do que elas comentaram, é essa questão da rigidez. Basicamente foi um padrão dentro da série, isso me incomodou um pouco, que as conversas básicas se iniciavam com a pergunta de qual era os interesses das pessoas. E quando o interesse do outro não casava com o seu interesse, parecia que que aquilo ali era um ponto de corte para o fracasso do relacionamento que estava sendo construído. Isso me chamou um pouco a atenção e me incomodou um pouco.

Tiago: Já que você tocou na questão de pontos negativos, eu já queria lançar essa pra vocês também, porque eu tenho as minhas críticas a série. O primeiro ponto, na verdade não é exatamente uma crítica. Mas a gente entende que, por ser uma produção australiana, existem elementos culturais que aqui no Brasil talvez não vamos compreender ou que não vai fazer sentido pra nós. Então, por exemplo, aquele trecho que o Michael vai atrás da Dawn Wells, eu fiquei me perguntando: “quem é essa mulher?”. Depois eu fui pesquisar, ela é muito relevante na Austrália, mas aqui no Brasil ela é uma completa desconhecida. Mas o fato da série toda ser construída em pessoas que se conhecem no encontro presencial, é algo que não faz parte da minha realidade. A minha realidade é sempre os aplicativos. Então, geralmente eu uso um aplicativo de relacionamento, eu vejo o perfil da pessoa, eu dou like na pessoa, a pessoa dá um like em mim de volta, eu tenho essa conversa inicial pela internet até marcar o encontro presencial. Não me parece ser intuitivo encontrar uma pessoa assim às cegas. Depois eu entendo que é um reality-show, então aparentemente deve ter uma equipe escolhendo as pessoas pra ter os encontros, o que é algo pra mim meio assustador. Isso me incomodou porque eu imagino que pra muitos autistas, como muitos que vivem no nosso país e que já usaram aplicativos, às vezes você não consegue nem marcar o encontro para se ter presencialmente com a pessoa. Já aconteceu comigo das pessoas saberem que eu sou autista e não quererem marcar o encontro ou somem. Então, existe um elemento na interação social para se obter um relacionamento ou para se ter um encontro que não é explorado pela série, que antecede esse encontro presencial e isso me incomodou muito. Eles citam alguma coisa relacionada a sites em um momento, uma conversa ali do Mark com um amigo dele, mas fica só nisso. Então, eu gostaria muito que eles explorassem isso numa segunda temporada. Então esses pontos culturais, até porque eu sei que em alguns países as pessoas conversam via SMS, que é algo completamente sem sentido pra gente, que usa WhatsApp, por exemplo, mas foi algo que me pareceu incompleto. E o que vocês não gostaram na série?

Carol: (Risos) Não sei, vai começar as polêmicas agora.

Paulo: (Risos)

Carol: Bom, por um lado eu achei que um ponto positivo é que existiram duas personagens que são bissexuais na série. Ainda que elas tenham aparecido brevemente, no final da série fazem uma retrospectiva dessas personagens, de como aconteceu. Eu acho que é um ponto de discussão sobre a representatividade LGBT nas mídias que abordam o autismo. Eu sinto que já é difícil ter representação de pessoas LGBT nas mídias de um modo geral, quando a gente faz um recorte ainda mais restrito como o do autismo acaba sendo um pouco complicado. Como uma mulher lésbica, sinto muita falta desse tipo de representação. Por um lado eu fiquei feliz de ter visto, mas por outro lado me chamou muito a atenção o fato de que boa parte dos personagens que apareceram na série são heterossexuais e os encontros amorosos que eles tiveram foram com pessoas do sexo oposto. Inclusive isso foi usado algumas vezes como gancho de conversas, tipo “o que você espera do sexo oposto?”. Isso é uma coisa que eu não vivo. Nunca faz sentido uma pergunta assim pra mim. O que eu acho do sexo oposto? Nada! Porque enfim (risos), não me interesso, mas a questão é que eu sinto que as outras formas de viver a sexualidade que não sejam heteronormativas são muito individualizadas no autismo. Porque já é difícil aceitar que uma pessoa com autismo tenha desejos amorosos ou sexuais e ainda é mais difícil quando esses desejos fogem de um padrão heteronormativo. Sempre que a gente vê representações de autismo, eu me identifico em partes, porque eu vejo que eu sou um indivíduo que se identifica como mulher, lésbica e autista e nenhuma dessas categorias exclui a outra e nenhuma tem mais peso que a outra pra mim. Eu não quero mais ser invisibilizada. Não existe a Carol e o autismo e não existe a Carol e a homossexualidade, só existe a Carol.

Táhcita: Vou aproveitar esse gancho então, porque é uma coisa que eu sempre reparo também por estar trabalhando nessa temática já há muitos anos e também por fazer parte da comunidade LGBT. Acho que qualquer produção midiática que a gente vê, a gente acaba prestando atenção nessas questões. Eu não coloco exatamente como uma crítica, só como observação mesmo, eu não sei como é a discussão sobre isso na Austrália. Então como você comentou, Tiago, no começo é um pouco difícil tecer críticas sem entender sobre os contextos de lá. Mas algumas coisinhas que eu observei é essa questão de pouca diversidade sexual. Apesar que foram duas pessoas e eu até falei: “Ah, OK, muito bacana colocar”. É importante mostrar que a gente fala muito de espectro com relação a necessidade de suporte e eu acho bacana a gente ampliar essa discussão pra pensar no que a gente chama de interseccionalidades, em outras características das pessoas que também vão influenciar na maneira como elas são vistas, como elas são tratadas. Relacionado a isso, uma coisa que eu fiquei pensando foi na diversidade racial. E aí, novamente, sem críticas porque eu não sei exatamente qual que é a composição racial na Austrália. Então, eu fiquei pensando, por exemplo, sobre a população nativa. Acho que são questões que quem sabe nas próximas temporadas eles possam explorar. E uma coisa que eu fico pensando é na questão da exposição das pessoas. Eu acho que é possível que muitas delas tenham sofrido bullying durante a sua vida, principalmente na infância ou adolescência, por conta das características das próprias pessoas. E eu fico pensando sempre quais as vantagens de publicizar isso. Acho que por um lado é importante publicizar o autismo na sua variedade, principalmente retratando pessoas reais e não só personagens. Mas que no outro lado também, qual será o efeito da visibilidade? Isso vai vir com que tipo de custo? Será que essas pessoas vão ser marcadas negativamente por conta de alguns comportamentos consideradas “estranhos”, por exemplo? Como eu sou psicóloga, eu acho que é uma coisa que eu fico pensando muito na questão do impacto que isso pode ter, tanto do lado positivo quanto do lado negativo. Eu acho que a série teve alguns cuidados, mas tem que sempre ter esses cuidados porque a curto prazo pode ter alguns efeitos e a longo prazo outros.

Carol: Eu queria saber se vocês também sentiram de que as pessoas com autismo só se relacionaram com outras pessoas com autismo e ou com outras deficiências.

Tiago: Eu particularmente me senti pensando um pouco nisso também. Talvez eles colocaram só pessoas com deficiência ou só autistas de uma forma geral para a produção ter maior coesão. Mas ao mesmo tempo teria sido interessante se tivessem pessoas comuns. O que eu acho que é um ponto positivo de abordar só pessoas com deficiência é que eles tem essa relação ambiental com as outras deficiências, algo que talvez não teria se o encontro fosse só com pessoas comuns. Por outro lado, eu acho que a gente perdeu um pouco dessa perspectiva do que é se relacionar com uma pessoa que não é autista. Por exemplo, eu estou em relacionamento e o meu relacionamento não é com uma pessoa que é diagnosticada com autismo. Na verdade, eu nunca saí com alguém que tem o diagnóstico de autismo. Então, eu nunca tive essa experiência que o documentário, por exemplo, traz, então acho que realmente é alguma coisa que a gente poderia pesar na balança aí.

Paulo: Isso foi a coisa que incomodou na série, na verdade. Talvez por ser de uma geração um pouquinho mais velha do que vocês, eu não conseguiria fazer essa série se eu fosse um personagem. No meu ponto de vista, as pessoas que estavam ali gravando foram extremamente corajosas sobre a forma como foi proposta a série. Eu talvez jamais conseguiria participar de um programa com esse tipo de exposição. Por estar junto da minha esposa há cerca de vinte anos, a forma como a gente lidava em relação a isso é diferente do que se tem hoje. Em termos de tecnologia, de aplicativos, eu não tenho essa experiência na verdade. Mas o ponto que mais me incomodou na série, na verdade foi essa questão de incluir pessoas dentro do espectro. Não sei se passa a impressão para população de uma forma geral, pras pessoas que assistiram, de que autistas só conseguem se relacionar com autistas.

Tiago: É engraçado que agora que você tá falando isso, Paulo, eu também penso que uma coisa que a série fez bem nesse recorte, é mostrar que relacionamentos entre autistas não necessariamente dá certo, porque todos os encontros ali praticamente deram errado, todos. Então assim, as pessoas têm essa ideia de que namoro entre autistas é legal. No Introvertendo, nós temos duas pessoas que estão dentro da equipe que tem relacionamento, o Luca e a Mariana. E também temos a Yara, que tem o marido autista. E as pessoas sempre tem essa ideia de que o relacionamento entre autistas vai ser super legal, vai ser superdivertido. E não necessariamente. Autistas muitas vezes tem…

Paulo: Mas você não acha que isso pode ser feito daquilo que eu havia comentado, da questão de basicamente toda a conversa se iniciar com a questão do interesse? Eu também concordo com você, que parece que o relacionamento entre autistas parece muito mais difícil.

Tiago: E só pra finalizar essa parte das críticas, eu também, ao longo do momento que eu assistia, eu ficava pensando que se fosse eu, eu não ia conseguir. São muitos detalhes. Inclusive tem um personagem que é o Kevin e chega uma hora que ele fala assim pro câmera: “cara, pode parar, desliga, chega por hoje”. E o encontro dele pra mim é um dos mais vergonhosos, da forma como a menina inicialmente despreza ele, ficando jogando lá, foi um negócio que me incomodou em certa medida. Então, eu fico pensando: “nossa, imagina sendo exposto assim numa produção”. Então, é algo que realmente a gente pode parar pra pensar. Tem tantos assuntos a serem discutidos sobre essa série, que é impossível retratar aqui no episódio de uma forma completa, por isso eu queria lançar o espaço pra quem tá ouvindo a gente, escrever por email. Eu queria agradecer bastante a vocês pela participação aqui no Introvertendo, foi muito legal a discussão, a gente conseguiu abordar muitas coisas aqui sobre a série que talvez passaram despercebidas. Pra finalizar, eu recomendo a série. E vocês recomendam também a série?

Carol: Não só eu recomendo como eu recomendei para várias pessoas do meu ciclo social, eu achei muito interessante a percepção que elas tiveram da minha e por isso que eu fiquei tão entusiasmada de gravar esse episódio. Sim, eu recomendo, eu gostei muito da série, apesar de tudo, apesar das críticas, porque foi uma das primeiras vezes em que eu vi uma boa representação do autismo, uma representação que eu considerei bastante fidedigna.

Táhcita: Eu também recomendo. Acho que ela é bastante interessante para discutir as coisas que a gente falou e muitas outras. É interessante principalmente pra pessoas que tem pouco contato, diferentemente das outras séries, que são com personagens, é com pessoas reais. Então, acho que vale a pena conhecer.

Paulo: Sem dúvida, eu acho que é uma série interessantíssima de ser vista, recomendo também que as pessoas assistam e ela e ela vem exatamente nesse sentido. De trazer talvez uma realidade que a gente não encontra em muitos outros filmes ou inclusive seriados. E espero que mais séries desse tipo sejam feitas, mostrando a realidade como exatamente ela é e não estereotipando o autismo e o indivíduo com autismo da forma como a gente tem visto ao longo dos anos. Então é isso e obrigado, Tiago, pela oportunidade. Até a próxima.

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Equipe Introvertendo Escrito por: