Introvertendo 88 – Autistas na Medicina

Uma das profissões de maior notoriedade na sociedade, a Medicina tem autistas não só na ficção, mas também na vida real. Neste episódio, Tiago Abreu e Otavio Crosara recebem Vittor Guidoni, o Vittinho do SUS, para uma conversa sobre formação, mercado, dificuldades relacionadas ao autismo e, claro, personagens autistas em séries médicas.

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Transcrição do episódio

Tiago: Um olá pra você que escuta o podcast Introvertendo, que é o principal podcast sobre autismo do Brasil e provavelmente o único que traz autistas em sua equipe de produção. Meu nome é Tiago Abreu, sou jornalista, host deste podcast, diagnosticado com síndrome de Asperger em 2015 e hoje só temos pessoas que trabalham na empresa Medicina.

Otavio: Olá, meu nome é Otavio Augusto, eu sou estudante de medicina do 10º período, fui diagnosticado em 2015 também e estou muito animado de falar sobre autistas na medicina neste episódio.

Vittor: Oi, pessoal, meu nome é Vittor Guidoni, eu sou estudante de Medicina de quarto período e eu fui diagnosticado em 2019. E estamos aí para falar sobre autismo na medicina! Massa! (risos)

Otavio: Pra quem não reconheceu, o nosso querido Vittor é o Vittinho do SUS, que apareceu nas redes sociais recentemente com uma ideia genial de uma camiseta e durante o episódio nós vamos explicar o porquê a ideia é genial.

Vittor: Ah, para! Sou modesto, estou ficando vermelho! (risos)

Tiago: E se você quer colocar seu jaleco branco e acompanhar o nosso podcast, é só você acessar o site introvertendo.com.br. Vale lembrar que o Introvertendo é uma produção capitaneada e organizada por autistas que conta com a assinatura da Superplayer & Co.

Bloco geral de discussão

Tiago: Este é o segundo episódio da série sobre autistas em diferentes áreas de profissão – o primeiro foi o episódio 78 – e hoje eu trouxe o Otávio, que faz parte da nossa equipe, e o Vittor para poder discutir uma área que tem uma relevância muito grande dentro da sociedade e dentro do autismo. E eu queria começar com aquela pergunta bem clichê e simples: Por que fazer medicina?

Vittor: Eu acho que, para mim, minha motivação nunca foi realmente fazer medicina. A minha motivação, como eu sempre digo por mais clichê e bobinho que seja, foi salvar o mundo. Só que, claro, isso é um desejo de criança, um sonho completamente ingênuo e utópico. Só que eu cresci em cima disso, querendo ajudar o máximo de pessoas possíveis com maior eficiência possível. E é claro, se eu não posso salvar o mundo, pelo menos eu posso salvar o que der. Tudo bem, na Engenharia você consegue fazer isso, você consegue inventar coisas que melhoram a vida das pessoas; Direito você consegue literalmente salvar a pessoa de um crime que ela não fez ou até mesmo fazer alguém sem indenizado por um crime que não cometeu; só que na medicina, desde o primeiro semestre, você já tá lá atuando com o pessoal das áreas mais pobres da maneira que um calouro tenta e, conforme se vai evoluindo, só vai ficando cada vez mais íntima essa relação estudante-paciente. Mesmo que você não possa prescrever remédio, mesmo que você não possa fazer uma operação oficial, você tá lá ajudando as pessoas. Eu acho que isso é maravilhoso para mim e foi uma das maiores coisas que me influenciou a fazer o que faço. 

Otavio: Eu desde pequeno gostei de robôs e a vida inteira sempre quis fazer Engenharia. Eu gostava da ideia da criação e daí eu passei na engenharia na USP para 2010 e com 16 anos eu fui para São Paulo. Muito jovem, muito novo, e eu fui muito insanamente absurdamente ingênuo. Eu fui para o mundo dos adultos e eu levei na cara. Depois eu voltei para Goiânia e encontrei, dentro da Medicina, um caminho no qual eu consigo viver uma vida feliz.

Tiago: É interessante que, no relato de vocês, há dois contrastes muito significativos. O Vittor traz um relato bem alegre assim, de certa forma, sobre as aspirações e os sonhos e o Otávio trouxe uma coisa que eu queria até perguntar agora, que é sobre as dificuldades dentro do curso. Medicina é um curso muito concorrido, é um curso pesado. Imagino que lá dentro seja tão complicado quanto e eu queria perguntar para vocês: Quais características, dificuldades ou habilidades dentro do espectro vocês observam que ajudam ou atrapalham vocês dentro dessa trajetória acadêmica?

Vittor: Quando você falou que eu dei um relato muito felizinho, é claro que eu tive que omitir metade da minha vida e talvez mais…

Otavio: O que eu devia ter feito!

Vittor: (Risos) É porque eu tô tentando contar uma história e uma história nem sempre ela tem que ser completa. No meio disso tudo teve decepções, tive os meus problemas, tive as minhas dificuldades; só que, apesar de tudo, a gente conseguiu chegar onde a gente está. O que importa, no final da viagem, é o destino e os amigos que você faz no caminho (é clássico). Fora da faculdade de Medicina, para quem quer entrar, é claro que você vai ter os seus diversos problemas. Além da dificuldade estudantil, uma pessoa [dentro do espectro] tenta focar numa aula, num assunto e às vezes o próprio transtorno pode atrapalhar. Esse foco pode causar uma certa deviância do que ela realmente quer. Por exemplo, você tá muito querendo focar na aula de biologia. Porém, você tá mais interessado em pensar sobre um desenho que você viu hoje mais cedo ou algo do tipo. É claro que você consegue encaixar esse exemplo em infinitos contextos porque cada pessoa tem o seu próprio foco, a sua própria distração. E você ainda tem aspectos sociais. Uma pessoa com autismo claramente tem um déficit social… pelo menos é o traço mais característico do transtorno. Eu, por exemplo, não me lembro de uma parte da minha vida que eu tive mais do que dois amigos. E olha lá, eu não tô falando de melhores amigos. Eu tô falando de amigos. Ultimamente eu encontrei um grupo mais saudável, que eu me sinto seguro, que eu me sinto bem com eles, foi a minha salvação. Só que, até o meu segundo ano do ensino médio, eu tava completamente sozinho na sala de aula, e tentando fazer amizade com pelo menos os professores para prosseguir uma vida levemente e emocionalmente estável. Agora, dentro da faculdade, como eu mudei completamente de cidade e consegui certa distância das pessoas que me faziam mal, eu sinto que eu pude reiniciar o meu ciclo social. Eu cheguei aqui tentando dar o meu máximo para entender as pessoas ao meu redor e me adaptar para o contexto delas usando de estratégias sociais que eu aprendi ao longo da vida para me envolver nos grupos sociais. O aspecto social hoje em dia não me atrapalha tanto além de, claro, festas e coisas de grande porte – porque a escala me deixa um pouco assustado e eu não fico confortável no ambiente. Já no aspecto estudantil, novamente, eu creio que por ser a algo que eu sonho em fazer por ser, algo que eu amo estudar, eu tenho uma facilidade. Mas eu consigo ver que outras pessoas têm problemas com isso. Eu já vi relatos de pessoas falando pra mim que elas estão cursando um curso que não gostam de verdade. Elas culpam os seus transtornos, entendeu? É triste ver isso, porque a pessoa não tá tentando entender… Eu não sei dizer de verdade, eu acho um pouco triste isso… Eu queria poder ajudar esse tipo de gente. Eu converso com elas, tento indicar um profissional (que é o ideal a se fazer). Isso realmente ajuda. Eu queria que essas pessoas pudessem ter pelo menos um pouco mais de atendimento hoje em dia, porque aqui na minha faculdade tem atendimento preferencial para pessoas com deficiência. Eu mesmo me apliquei lá no final de 2019 porque eu tava precisando e eles aceitaram de braços abertos. Em algumas faculdades particulares ou federais, o serviço social é praticamente inexistente, se é que é mencionado dentro da faculdade. E isso é completamente ridículo! Para você ter uma escala tão grande de pessoas que pagam imposto, você não tem um mínimo de apoio para uma pessoa que tem uma dificuldade que ela não escolheu… eu acho muito triste. É algo que tem que mudar definitivamente o quanto antes.

Tiago: Com certeza. Além disso, há de se considerar que, por exemplo, no contexto do Introvertendo, quase todos os integrantes vieram da Universidade Federal de Goiás. Nos conhecemos a partir de um serviço de saúde mental que ocorre lá, que é o Saudavelmente. Mas esse serviço só nos atendeu porque tinha uma profissional interessada em entender o autismo. Começou, inclusive, atendendo o Otavio e a partir do Otavio me conhecendo, e aí juntando várias outras pessoas… Mas eu fico pensando: Quantas pessoas dentro da própria universidade que eu vim nunca tiveram nenhuma assistência e sequer conhecem da existência do próprio Saudavelmente. Então a gente vê que o buraco é muito mais embaixo.

Otavio: O Saudavelmente foi um bote salva-vidas. Foi muito bom. Eu sinto que nós todos crescemos muito com o convívio um com os outros. Na Faculdade de Medicina da UFG, você vê que a faculdade em si não tem esse lado voltado para a saúde mental nem mesmo dos alunos neurotípicos.

Tiago: E Otavio, no contexto de interação com seus colegas, como é que é para você? Você acha que tem uma diferença com relação a seus colegas ou você percebe que as suas dificuldades são muito sutis?

Otavio: As minhas dificuldades são muito sutis, só que elas ainda são dificuldades. Eu perdi 18 meses no curso por causa disso. Eu tive dificuldades em me adaptar ao ensino e eu acabei perdendo 18 meses. Quando eu digo dificuldades, eu digo que tive muitas dificuldades em prestar atenção na aula, porque o professor não falava as coisas de forma sistematizada e sim numa linguagem própria da experiência dele. E como eu estudava pelos livros e não pelo conteúdo da sala de aula, acabava estudando coisas que eu não precisava e o meu desempenho foi mediano em grande parte do meu curso.

Tiago: Imagino que quem esteja ouvindo o podcast deve estar esperando o grande momento em que o Vittor conta de onde surgiu a grande ideia da camiseta que viralizou no mês de julho de 2019, então jogo a bola para você (falando figurativamente, menos autisticamente).

Vittor: Cara, em 2017, eu lembro de ter visto uma imagem de uma camisa, eu acho que era uma página do Facebook… era uma camisa escrito alguma coisa nela e eu lembro da parte mais impactante: “Klebinho das leis”. E aquilo ficou comigo pelos anos que passaram. O tempo foi passando e aquele pensamento não saía da minha cabeça. De tempos em tempos eu lembrava dessa camisa, e eu pensava em fazer uma. Então eu tive a sorte de passar em Medicina, só que eu esqueci disso, eu esqueci completamente. Um ano depois eu fui lembrar de novo. E, quando eu lembrei, eu tava em casa, na minha cidade natal, e eu pensei: “é agora que eu vou fazer isso!”. No mesmo dia eu abri o Photoshop, fiz o modelo da camisa, pintei tudo bonitinho e estava lá as palavras que fizeram mágica com a minha vida: “Sim, eu faço Medicina, mas por favor não me chame de doutor. Me chame de Vittinho do SUS”. 

Tiago: É engraçado que a sua camiseta também me faz pensar em uma coisa que também é muito importante, na verdade. Medicina é um curso que, socialmente, agrega certo status independentemente das intenções de quem vai prestar o curso. Como é que vocês se sentem com relação a esse status? Vocês se sentem pressionados para “dar certo” num curso tão concorrido?

Vittor: Medicina é, com certeza, um curso desejado, mas eu temo que seja pelos motivos errados. Eu tenho quase certeza que a maioria dos pais que pedem para os filhos correr atrás da Medicina não é que o filho seja um grande salvador e sim para que ele consiga se sustentar, o que é uma visão meio alienada da profissão, eu diria. Porque existe médico que ganha pouco, seja por ele ser ruim ou seja pela pouca capacidade de achar um emprego que tenha uma boa remuneração. Me incomoda um pouco saber que pelo menos 30% de uma sala de medicina cheia tá lá só para pela remuneração ao invés de ir pelo sonho. Eu não posso culpar eles, é uma profissão que você ganha bastante, é uma profissão que você tem que se dedicar bastante e se você não se dedicar, não vai ganhar. Então pelo menos tem isso… a pessoa que quer ganhar muito dinheiro vai se dedicar bastante, o que geralmente deveria fazer com que ela fosse mais competente e menos irresponsável, assim como a gente vê muito profissional igual aquele doido lá do Doutor Bumbum. Igual você vê também tem médicos que apoiam visões completamente irreais de vacinas e autismo… é o que me faz acreditar que a medicina tem um pouco de tudo. Você tem um pouco dos fanáticos por dinheiro, os doidões buscando salvar o planeta igual eu… Eu acho que tem um peso em cima do título de médico, porque você tem que salvar uma vida. Eventualmente você tem que evitar que uma pessoa morra. Em algum horário, em algum lugar, vai ter alguém deitado no seu braço e você vai ter que salvar aquela pessoa. Porque vai ser a primeira pessoa que vai morrer no seu braço e às vezes não vai ter como você fazer muita coisa. Às vezes acontece, e quando acontecer, a gente sente o peso. O fardo cai. Eu creio que, para ser um bom médico, tem que ser bem intencionado. Eu não acho que o médico vai se dar bem se ele for atrás só do dinheiro. É claro, você tem os sortudos, mas eu quero acreditar que para um médico ser fazer jus ao título que ele ganha depois de seis anos de estudo e quantos mais para residência e especialização, tem que ter amor à profissão, tem que acreditar no que ele faz mais do que ele ganha.

Tiago: O Vittor falou algo muito interessante, principalmente com essa questão do movimento antivacina, essa galera aqui se baseia naquele “estudo” no final da década de 90 que ainda continua a trazer estragos dentro da comunidade do autismo e também referência a questão do MMS, que sempre retorna prometendo curar alguma coisa que surgiu (agora o coronavírus), e eu queria aproveitar para poder fazer uma provocação também: Existe uma crítica muito forte dentro da comunidade do autismo, principalmente nas porções mais especializadas, que a gente tem pouca capacitação profissional dentro do Brasil. Vocês estudaram ou vão estudar autismo ainda no curso de vocês? Tem alguma coisa na grade curricular ou esse assunto passa completamente fora?

Vittor: Para mim nunca apareceu nada por enquanto. Eu imagino que, no futuro, quando eu tiver aula de psicologia e psiquiatria, isso venha aparecer. Mas, no momento, nunca apareceu.

Otavio: No eixo clínico eu não vi muito disso. A gente vê muitas bases da psiquiatria, psicopatologia e psicofarmacologia, algumas questões básicas de certas condições psiquiátricas mais prevalentes como a esquizofrenia, transtorno bipolar, transtorno de ansiedade… Autismo eu estou vendo agora no internato. Não vai demorar, nos próximos anos o ensino sobre autismo vai estar mais presente. Só que eu acho que existe uma dificuldade para ensinar isso, porque o espectro é muito grande. A diferença entre dois autismo é tão grande quanto a diferença de duas pessoas não típicas.

Tiago: E vocês tem interesse em trabalhar com autismo futuramente ou vocês querem atuar em outra atividade?

Vittor: Eu não saberia dizer agora, porque eu tenho interesse incrível em, por exemplo, Psiquiatria. E saúde mental é uma das coisas que eu acho mais TOP na medicina. Até porque os artigos que eu escrevo são todos em torno disso. Eu gosto de falar sobre a cabeça das pessoas, sobre a mente das pessoas, porque é o dispositivo mais intenso e mais bem feito que a natureza conseguiu criar… o cérebro, os neurônios, e tudo isso é uma dança de partículas numa escala fundamental que possibilita coisas como a consciência, que é tão simples para gente quanto é infinitamente complicado para as partículas que estão se mexendo lá em baixo. E eu acho tudo isso tão incrível, você pegar uma perspectiva de um uma pessoa e comparar a outra, assim como a gente faz com neuroatípicos com os neurotípicos. Eu acho isso muito importante, para você conseguir estabelecer limites, assim como estabelecer coisas em comum. Porque hoje em dia a gente tem um discurso muito separatista de vez em quando e as pessoas acham que, só porque você ter autismo, você é incapaz de ser uma pessoa normal; que você é frágil, que você é vulnerável, que você não tem voz própria, que é o discurso capacita como eu descobri pouco tempo. Eu não sou tão ligado com a comunidade autista como deveria ser e preciso conectar um pouco mais, só que aos termos que eu já aprendi até agora capacitismo é um dos maiores que você. Porque infelizmente é a verdade, as pessoas acham que a gente simplesmente é um pedaço de carne que não consegue pensar acima do que vai jantar. E olha lá, porque tem gente que tem dificuldade, só que ao mesmo tempo você não pode desmerecer a pessoa completamente porque ela tem dificuldades em algumas coisas, e eu acho que o profissional médico tem que ajudar nisso, porque é a pessoa que mais tem poder de palavra para falar sobre você. Tem psicólogos, você tem pedagogo, você tem inúmeros outros profissionais que falam sobre, só que infelizmente o médico é o que destaca mais, o que leva fama para algumas coisas boas, assim como coisas ruins. No fim das contas, a minha resposta é que eu não saberia dizer no momento, apesar de ter uma boa chance de eu acabar me envolvendo com isso. Eu gostaria sim de atuar com pessoas autistas e ajudar pessoas com autismo a crescer e a se mesclarem no convívio social, porque é o que a gente precisa.

Otavio: Quando eu fui diagnosticado em 2015, a doutora que diagnosticou fez uma consulta de 2h30min, e eu fiquei apaixonado por aquela capacidade semiológica. E, por muito tempo, eu pensei em fazer psiquiatria. Agora que eu estou chegando perto do final da minha graduação, eu vejo que eu não tenho perfil. Eu não tenho uma carga emocional grande o suficiente para aguentar o desgaste que é ser um psiquiatra. Para você ser um psiquiatra, você liga muito com a parte emocional, a parte subjetiva, e eu não tenho paciência para isso. Eu não teria uma boa qualidade de vida, não importa quanto dinheiro recebesse, chegaria em casa triste e isso inclusive me prejudicaria na minha capacidade de atender meus pacientes. Eu estou escolhendo uma área mais laboratorial e eu decidi que quero ser patologista. E, vendo as dificuldades que eu tive durante a minha graduação, eu tenho muita vontade de ser professor na faculdade e isso envolve aumentar a capacidade de assistência à saúde mental dos alunos, inclusive de alunos autistas.

Tiago: Uma coisa que é muito curiosa também é que toda a produção cultural que a gente tem sobre autismo traz com muita frequência personagens autistas em conteúdos médicos, sejam séries, filmes e etc. Temos dois casos bastante relevantes, especialmente um, que é a série The Good Doctor. Essas séries médicas, como Grey’s Anatomy, Good Doctor, essas séries que tem personagens autistas… vocês acham essa representação do autismo em médicos legal, ruim, forçada?

Vittor: Todas as séries tem uma um nível de dramatização, porque afinal eles tem que ganhar dinheiro em cima de uma história que, se fosse igual a vida real, não ia ter graça. Eu adoro séries, assisti todas Atypical eu já até vi alguns episódios da versão coreana de Good Doctor e eu gostei também. Você tem o Sam e o Shaun, os dois claramente são casos moderados. Eles têm problemas muito maiores do que nós aqui, eles se esforçam bastante para tentar se manter no controle da vida deles. Pelo menos o Sam demorou um pouquinho para chegar lá, mas o Shaun desde o começo tá sozinho, fazendo o possível para viver sozinho. Eu acho que, em um mundo real, não creio que ele ia conseguir se virar daquele jeito. Você precisa de bastante terapia para fazer com que uma pessoa se recupere daquele tipo de trauma que ela tem no começo. Eu acho que é uma versão muito romantizada do autismo, só que ela funciona. Ela transmite para o público que, apesar de você ter essa dificuldade para algumas coisas, você consegue ser bom em outras. Então eu acho que as duas são ótimas sim, elas tem algumas falhas, assim como toda série tem, mas elas não devem ser diminuídas por isso.

Tiago: Uma coisa muito marcante no seu Twitter, inclusive e principalmente no seu nome artístico, é a questão da saúde pública, o SUS. Eu queria te perguntar uma coisa que para mim e acredito que para algumas pessoas é muito óbvia, mas para outras talvez não seja, então é importante falar sobre isso: Por que defender a saúde pública?

Vittor: Eu acho que a saúde pública no Brasil tem uma importância ridícula, num sentido bom da palavra. No sentido que é tão grande que você não consegue expressar com adjetivos comuns. A gente tem uma população imensa e ela é mal distribuída. Você tem uma enorme concentração no litoral, na região Sudeste e o Sul, enquanto no Norte, por exemplo, você tem uma quantidade e distribuição de pessoas por metro quadrado muito baixa. Você tem que pensar que, a gente vivendo no Sul, no Centro-Oeste, a gente vê a saúde pública como algo muito mundano, como algo que pessoas pobres vão usar, como algo que pessoas que não têm capacidade de pagar um plano de saúde vão usar. Poxa, eu tenho um plano de saúde, mas mesmo assim eu vou até o SUS fazer coisas diárias. Eu não vou gastar R$ 200 de uma consulta ridícula que eu posso fazer em um postinho de graça. Muita gente reclama de fila e sim, fila é um problema, só que a qualidade do atendimento não se resume ao tempo que você espera. E eu digo com certeza que a maioria dos médicos que atendem pelo SUS fazem o mesmo atendimento do serviço particular à noite ou de manhã, dependendo do turno. Só que os pacientes tendem a acreditar essa falsidade de que o SUS é para pobre, que o SUS é uma qualidade inferior mal, sabendo que é um serviço de referência, que é um serviço de extrema qualidade que só é diminuído pelas pessoas que não entendem. E quando eu falo da escala do país, novamente, eu quero dizer: imagina para uma pessoa que mora em uma cidade menor no Amazonas, o posto de saúde daqui do lugar é o que salva todas aquelas milhares de vidas, assim como já salvou o Brasil inteiro diversas vezes com o programa de imunização, assim como já salvou o Brasil inteiro contendo epidemias e surtos de doenças contagiosas como a febre amarela, como chikungunya… quem faz isso é o SUS. Quem regula se um estabelecimento é bom ou não é a Anvisa, que é regulada pelo SUS; os centros de epidemiologia são regulados pelo SUS, centro de imunização, tudo isso tem a tag do Sistema Único de Saúde atrelado a ele. Se você mora em uma casa você usa, se você come alguma coisa você usa, porque é o SUS que regula toda a qualidade por trás disso tudo. Há um preconceito e um ódio gratuito sendo distribuído sem motivo e a gente tem que desmistificar, a gente tem que quebrar esse paradigma. Você tem profissionais incompetentes, assim como particular também tem. Você tem equipamentos falhos, no particular você tem. Você tem a gestão falha assim como no particular. É porque tem engravatado atrás de mesa chique, no terno chique, que acha que a vontade dele é maior do que a de dezenas de milhares de pessoas. A gente tem que fazer alguma coisa para parar isso, eu espero poder contribuir fazer alguma diferença,

Otavio: Deus do céu Vittor, eu não poderia ter falado melhor. Nossa, eu gostei demais.

Tiago: Vittor, muito obrigado pela participação aqui no introvertendo. É um prazer ter autistas falando sobre autismo e sobre outros temas aqui no Introvertendo. Eu queria que você deixasse um recado aí para quem tá ouvindo, as suas redes, enfim o espaço é seu. E se você quiser que a gente fale sobre outras profissões e traga autistas de várias áreas do conhecimento para poder falar sobre as suas atividades, envie um e-mail para ouvinte@introvertendo.com.br. E se você quiser que Vitinho do SUS esteja mais algum outro momento, é só mandar mensagem para nós e mandar mensagem para ele também porque ele retorne em qualquer momento, muito obrigado pela sua presença.

Vittor: Foi maravilhosa a experiência. Eu adorei, que isso chegue para outras pessoas, eu amei o conceito e espero retornar eventualmente.

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Equipe Introvertendo Escrito por: