Introvertendo 86 – O Que É o Autismo?

Estudado ao longo de décadas, o autismo é um campo multifacetado, composto por diferentes ideias, áreas e, claro, gente. Neste episódio do Introvertendo, abordamos o desafio que é definir autismo, o conflito existente entre as visões médicas, científicas e até sociais acerca do diagnóstico e o seu impacto para a formação de uma comunidade.

Participam desse episódio Tiago Abreu e Willian Chimura.

Links e informações úteis

Para nos enviar sugestões de temas, críticas, mensagens em geral, utilize o email ouvinte@introvertendo.com.br, ou a seção de comentários deste post. Se você é de alguma organização, ou pesquisador, e deseja ter o Introvertendo ou nossos membros como tema de algum material, palestra ou evento, utilize o email contato@introvertendo.com.br.

Apoie o Introvertendo no PicPay ou no Padrim: Faça a sua doação no PicPay usando o nick @introvertendo ou no Padrim neste link e nos ajude a manter nosso conteúdo a ser produzido e atualizado.

Agradecemos aos nossos patrões: Francisco Paiva Junior, Luanda Queiroz, Priscila Preard Andrade Maciel e Vanessa Maciel Zeitouni.

Avalie o Introvertendo: Caso você utilize o iTunes/Apple Podcasts, assine e avalie nosso podcast lá por meio deste link.

O Introvertendo está no Spotify, no Deezer, no CastBox e no Google Podcasts: Ouça e acompanhe o podcast por estes lugares. Siga o nosso perfil no Spotify e acompanhe as nossas playlists com episódios de podcasts.

Notícias, artigos e materiais citados e relacionados a este episódio:

*

Transcrição do episódio

Tiago: Um olá para você que escuta o podcast Introvertendo, que é o principal podcast sobre autismo do Brasil. Meu nome é Tiago Abreu, jornalista, host deste podcast, diagnosticado com autismo em 2015 e hoje no introvertendo trazemos uma discussão fundamental quando se trata de autismo.

Willian: E eu sou o Willian Chimura, também sou diagnosticado com Síndrome de Asperger, faço Mestrado em Informática na Educação no Instituto Federal de Ciência e Tecnologia do Rio Grande do Sul e a minha pesquisa é justamente autismo mais voltado para um viés educacional. Também sou alguém que adora pesquisar sobre autismo, além de ser um autista. E agora estarei muito mais aqui no Introvertendo e também gosto muito dessa discussão mais básica sobre o autismo e que no final das contas acaba sendo, eu acho, a discussão mais importante quando a gente fala sobre conscientização do autismo.

Tiago: Exatamente. O Introvertendo tem quase dois anos, mas nós nunca falamos durante todo esse período sobre o que é o autismo. Então este episódio é para gente falar sobre a dificuldade de definirmos o chamado Transtorno do Espectro do Autismo

Willian: Inclusive, eu imagino que as pessoas que viram o título desse episódio, mesmo as pessoas que já acompanham há algum tempo, provavelmente pensaram assim: “Nossa, mas esse tema é muito básico”. Mas ainda assim tem várias questões sobre o “básico” que não são discussões tão fáceis. O autismo é um transtorno espectro, não é um transtorno fácil de se entender, tem muitas coisas ainda que geram confusão, e você discutir o básico não quer dizer que é uma discussão fácil.

Tiago: Sim, com certeza. E se você quiser saber mais sobre autismo, nosso podcast está disponível nas diferentes plataformas. Vale lembrar que o Introvertendo é um podcast produzido por pessoas dentro do Transtorno do Espectro do Autismo e que conta com a assinatura da Superplayer & Co.

Bloco geral de discussão

Tiago: Antes de entrarmos na discussão sobre o que é o autismo, nós precisamos fazer uma visão geral sobre a história do autismo. Nós não fizemos ainda nem um episódio e nem uma série porque o tema é muito denso. Falar sobre a história do autismo é falar sobre lutas e também sobre estudos de décadas, mas prometemos que vamos fazer isso um dia. No geral, autismo é um termo que surgiu da esquizofrenia. Era definido como aquele distanciamento da realidade que geralmente é típico dentro do contexto da esquizofrenia. Foi somente na década de 1940 que, nos Estados Unidos, Kanner estudou o chamado autismo de grau 3 e, lá na Europa, o Hans Asperger estudou o autismo que a gente chama de autismo de grau 1. Nessa época, o autismo ainda era considerado uma sentença de morte ou de total incapacidade. Inclusive, autistas geralmente não tinham o direito de frequentar a escola. As mães eram consideradas culpadas pelo autismo de seus filhos. Mesmo assim, em contraposição ao pensamento vigente da época, muitas mães e alguns pesquisadores começaram a lutar pela inclusão de autistas nos ambientes sociais, incluindo a escola.

Willian: Eu fico imaginando os primeiros pais a receberem um diagnóstico de seus filhos. Tudo isso começou acontecer na década de 1940, então a gente não tá falando de um diagnóstico que há muito tempo é compreendido. Essa condição é relativamente recente e eu imagino as primeiras pessoas – a gente tá falando aqui de até três décadas, duas décadas atrás – que tem o seu filho diagnosticado com autismo e ao mesmo tempo tem uma corrente “científica” que diz que possivelmente a condição dos seus filhos é por conta de falta de afeto da mãe e do pai e eu fico imaginando que deve ter sido uma experiência horrível, infelizmente, para alguns pais ao longo da história do autismo.

Tiago: Sim, imagina a dificuldade que essas pessoas passaram entre a década de 1940 até os anos 1960, quando começaram as primeiras lutas significativas e mais organizadas, principalmente nos países anglófonos.

Willian: E relacionando aqui com o cenário do nosso próprio país, eu acho que todo mundo vai concordar que hoje a gente discute muito mais autismo do que antes. E eu vejo que isso se deve ao fato de justamente termos conquistado o direito das pessoas com autismo de estar na escola regular, uma vez que a Lei Brasileira de Inclusão estipula que as pessoas com autismo devem estar na escola regular. Mas a gente está presenciando parte da história da inclusão de autistas aqui, porque ainda há uma série de dúvidas de como a gente pode garantir a qualidade de vida para essas pessoas.

Tiago: A luta por políticas públicas aproximou a temática do autismo das outras deficiências, como a síndrome de Down, ao mesmo tempo que, na comunidade científica, nós tivemos várias mudanças com relação ao entendimento do que é o autismo. Por exemplo, se pegarmos um manual de transtornos dos Estados Unidos, que é o dsm, e analisarmos ao longo das suas cinco edições, autismo passou como algo parte da esquizofrenia até a visão de espectro, em 2013. É claro que isso também envolve uma questão de nomenclatura, porque o autismo já foi definido como uma psicose, distúrbio e hoje normalmente se fala transtorno. As décadas passaram e hoje a gente fala muito mais sobre autismo nos espaços públicos. E isso tem muito a ver com a chamada Síndrome de Asperger, um diagnóstico que entrou oficialmente na quarta edição do DSM, em 1994. Asperger é, digamos, o “autismo leve” e exatamente este diagnóstico começou a ter uma penetração muito grande em produções culturais, como a TV, o cinema e a música. E hoje, no início da década de 2020, a gente entende o autismo como um espectro. Mas como definir o autismo? Dentro da comunidade interna, socialmente, nós temos diferentes definições sobre autismo que estão em diferentes grupos ou facções. Por exemplo, temos vários pais e mães que acreditam que o autismo seja uma doença, algo ruim com sintomas fixos que deve ser retirado/extirpado da pessoa. Assim há também outro grupo formado principalmente por adultos diagnosticados que definem o autismo como algo bom, parte da identidade. E, além disso, o autismo é estudado em diferentes áreas, como a genética, biologia, educação, neurologia… cada área dá sua contribuição e a gente forma um pensamento variável sobre o autismo dentro da própria comunidade. E aí vem a pergunta de um milhão de reais: Willian, definir o que é o autismo é uma questão científica ou também é uma questão social?

Willian: É uma pergunta muito interessante, Tiago, porque eu fico imaginando que talvez uma pessoa que esteja ouvindo sobre autismo pela primeira vez nesse episódio pode-se questionar um pouco o que seria as questões sociais envolvendo o autismo. Porque sempre quando a gente vê falarem sobre o autismo nos programas de televisão, estamos acostumados a ver um médico, alguns programas também convidam uma pessoa com autismo, mas sempre muito voltado essa questão da saúde. E, querendo ou não, autismo também é sim uma questão de saúde pública. Mas ao mesmo tempo, como você mesmo já explicou aqui, uma vez que o diagnóstico de Asperger foi incorporado na noção do que a gente chama de Transtorno do Espectro do Autismo, temos visto de fato que o autismo têm ganhado muito mais visibilidade. As pessoas com Asperger são pessoas com mais autonomia em relação a outras pessoas que estão no espectro do autismo. Essas pessoas criam um podcast, como o Introvertendo, ou criam um canal sobre autismo no YouTube, também se tornam ativistas da causa se manifestando por meio da da internet e em espaços públicos, como congressos e simpósios, e juntamente com isso vejo um surgimento muito nítido de vários aspectos socioculturais do autismo. E, curiosamente juntamente com isso, também vemos o surgimento de alguns ativistas que não necessariamente concordam com essa visão que eles chamam de modelo médico do autismo, que é justamente tratar o autismo nesse viés de doença. Também temos as pessoas, numa via científica e profissional, que entende que a qualidade de vida desse indivíduo deve ser garantida e que de fato precisamos de novos medicamentos, novas intervenções e mais tecnologia para a gente conseguir habilidades e mais autonomia para pessoas com autismo. E neste sentido, estamos falando das pessoas com autismo de dificuldades mais acentuadas. E eu vejo que é papel da ciência de se tentar compreender o mais precisamente possível o autismo em todas as esferas para a gente ter previsibilidade sobre a condição daquele indivíduo, porque quando a gente consegue definir e teorizar melhor, a gente consegue ter uma previsibilidade sobre como vai ser o futuro dessa pessoa e o que podemos fazer para garantir a qualidade de vida dela. E conforme as pesquisas vão avançando, essas pesquisas são publicadas geralmente em um manual de diagnóstico, como o DSM, que é o manual mais atualizado em termos de diagnóstico e auxilia o profissional a diagnosticar condições, especialmente transtornos mentais. E conforme pessoas são diagnosticadas com essas condições, ela tem um impacto social. As pessoas com as mesmas condições vão começar a enxergar pontos em comum de dificuldades, por exemplo, na escola, no trabalho, no transporte público, em todas as esferas. E conforme essa comunicação vai acontecendo, bandeiras e movimentos sociais vão surgindo. E aí acontece esse fenômeno social e se torna não somente uma condição médica, mas uma questão de identidade para muitas pessoas. Até porque um bom convívio social e habilidades sociais também envolvem a condição. Vejo também que se discute na esfera social, nos espaços públicos e até mesmo esse episódio de podcast também manifesta interesse por parte da comunidade científica no que eles devem pesquisar ou deixar de pesquisar.

Tiago: Concordo totalmente. E eu acho que a nossa dificuldade em entender o autismo vem do fato de ser um transtorno espectro. Ou seja, um autista nunca vai ser igual o outro. Talvez as pessoas nos conheçam pelo Introvertendo, no seu canal do YouTube, e tem um uma visão sobre autismo. Aí elas vão na associação de autismo da cidade delas e conhecem outros autistas e não vão enxergar uma conexão entre nós e eles. E isso com certeza deve bugar a mente das pessoas.

Willian: Certamente, Tiago. Inclusive uma das coisas que eu sempre falo é que o autismo é um transtorno espectro e, mesmo se não fosse, ainda assim teria a sua dificuldade de se compreender esse transtorno, porque estamos falando sobre seres humanos e obviamente todo ser humano é diferente de outro ser humano. Mas quando a gente faz para um transtorno, ao mesmo tempo tempo há características semelhantes entre todas as pessoas com esse transtorno. Só que os níveis de dificuldade os tipos de apoio que essas pessoas precisam podem variar muito, na verdade.

Tiago: Também há de se acrescentar que temos uma questão significativa com comorbidades e isso ajuda bastante a criar diferenças entre autistas. Nós temos autistas com depressão, autistas com ansiedade, autistas que só tem autismo, autistas com deficiência intelectual, autistas com altas habilidades, é um repertório muito grande de condições dentro de um mesmo transtorno espectro. É curioso que eu vejo no discurso de alguns cientistas e até pessoas comuns dentro da comunidade que o correto seria não falarmos mais sobre autismo, mas sim sobre autismos, várias formas diferentes de se manifestar o mesmo diagnóstico nos indivíduos. Com base nisso, precisamos de uma concepção única sobre autismo?

Willian: Eu acho que para esse momento, principalmente depois de 2013 com o surgimento do DSM-5, que revela o consenso do que a gente tinha de evidência científica de como compreendemos o autismo, a melhor maneira de se entender o autismo é dessa maneira unificada. É mais fácil compreender que todas as pessoas com condições de diferentes nomes era um tipo de “autismo”. Mas é claro que as pessoas com Síndrome de Asperger, em comparação as pessoas com diagnóstico de autismo infantil, por exemplo, vão precisar de níveis de apoio diferentes. Por isso, juntamente com a noção unificada do espectro do autismo, também veio a noção de níveis, o que eles chamam de graus do autismo. Vejo uma utilidade de se compreender dessa forma porque ela deixa um pouco mais claro que, quando a gente fala sobre autismo, falamos sobre níveis de dificuldades que podem ser flutuar ao longo da vida. Uma pessoa com autismo que foi diagnosticada principalmente aos dois anos de idade, por exemplo, e com intervenção adequada, a qualidade de vida dessa pessoa pode aumentar muito em comparação a outras pessoas que também foram diagnosticadas com autismo mas que não receberam intervenção específica. Por outro lado, conforme a ciência vai avançando e a gente vai entendendo e compreendendo mais como o autismo, quais são os tipos de autismo, é possível sim que o autismo deixe de ser tão unificado ou até mesmo que existam novamente outros subtipos de autismo. Porque quanto mais específico a gente conseguir ser sobre a condição de um indivíduo, novamente, mais previsibilidade a gente vai ter sobre o futuro dessa pessoa e mais fácil é conseguir estudar essa condição científicamente; entender quais remédios, quais intervenções, quais são os possíveis dificuldades que vão aparecer ao longo da vida. Eu vejo sim uma utilidade de conseguirmos ser cada vez mais específicos sobre as múltiplas condições que existem do espectro do autismo. Porém, neste momento, a melhor forma que a gente consegue compreender ele é através desse único espectro. A gente tem que ver o que então a Associação de Psiquiatria Americana vai decidir nas próximas edições dos seus manuais de diagnóstico e a comunidade científica em si, porque esse debate já está acontecendo. A ciência não vai parar tão cedo.

Tiago: E para destrinchar as características do autismo, toda sexta-feira nós estamos aqui no podcast Introvertendo. Willian, muito obrigado pela sua participação agora constante com a gente.

Willian: Imagina, Tiago! O prazer é todo meu de estar aqui no Introvertendo. Como eu disse no início do episódio, não é porque é um tema básico que significa que seria uma discussão simples. Pelo contrário, a gente viu aqui que há várias discussões que são muito delicadas entre a própria comunidade do autismo, até um certo conflito de perspectivas e espero que a gente tenha conseguido passar um pouco dessa perspectiva aqui nesse episódio.

Site amigo do surdo - Acessível em Libras - Hand Talk
Equipe Introvertendo Escrito por: