Introvertendo 54 – Conhecimento Inútil

Um dos critérios básicos para a identificação de autistas é o hiperfoco. O hiperfoco, como um interesse considerável e acima da média em relação a alguns temas, envolve aprender coisas que, socialmente, podem não ser interessantes. Neste episódio, nossos podcasters investigam o que é o dito conhecimento inútil, se essa inutilidade é real, e de que forma isso pode ser relacionado ao autismo.

Participam desse episódio Luca Nolasco e Tiago Abreu.

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Transcrição do episódio

Tiago: Olá para você que escuta o podcast Introvertendo, esse espaço que falamos de temas relevantes e também irrelevantes para todos vocês aqui nessa plataforma de neurodiversos, que também é dedicada para neurotípicos. meu nome é Tiago Abreu, estou hoje com Luca Nolasco para falar de inutilidades, ou seja de conhecimento inútil. Você vai saber de coisas que você não gostaria de saber mas que você já vai saber porque está ouvindo isso aqui.

Luca: Olá eu sou o Luca e eu sei falar sobre átomos.

Tiago: E se você quiser fazer a sua crítica, a sua opinião, o seu comentário sobre esse episódio, você pode enviar um e-mail para nós que é direcionado a ouvinte@introvertendo.com.br, não deixe de registrar sua participação, inclusive nós também lemos os comentários que recebemos em outros espaços como o facebook, twitter, instagram, e também no nosso site introvertendo.com.br; se você comentar nos episódios na plataforma eles aparecem para nós, alguns atrasados, alguns podem aparecer como spam, mas enfim, não deixe de enviar que a gente acompanha. E se você quiser conversar com a gente sobre algum assunto não diretamente em relação aos episódios, você pode também enviar uma mensagem para contato@introvertendo.com.br que lá nós discutimos outras questões. E se você quiser patrocinar o podcast, afinal nós temos contas para pagar e muitas coisas para investir, você também pode achar a gente no picpay, é só pesquisar lá por introvertendo e fazer sua doação lá tem várias opções.

Bloco geral de discussão

Luca: Bom Tiago, como é que você define o que é conhecimento inútil? Para mim é algo que a maioria das pessoas não vai ver alguma utilidade prática, mas ainda assim para você é algo que tem alguma importância, portanto se conhece bastante, mas como é que você diria isso?

Tiago: Eu acho que conhecimento inútil é todo tipo de aprendizado sobre alguma coisa que não tem um valor em si mesmo e não muito direcionado outras coisas que não tem uma aplicação muito prática, e isso incluiria tanto coisas de fã, fã clube, o que geralmente é utilizado quanto à questões muito específicas, que só tem um conhecimento muito específico acadêmico, e que só são válidas a partir de outras coisas também né. Com base nisso, qual que seria o seu principal conhecimento inútil?

Luca: Mesmo que eu falei na introdução eu não sei bem a razão, mas eu tenho um interesse muito grande em átomos, então tudo que tange a química e a física atomística por mais que eu não tenha conhecimento acadêmico suficiente para entender de fato com profundidade, eu sempre tento conhecer o máximo possível, não tem nenhuma utilidade para mim, só acho muito legal. E pra você?

Tiago: Aí é uma história longa, porque minha vida é permeada de conhecimentos inúteis. No meu período de infância, o meu principal conhecimento inútil era tudo sobre cartões eletrônicos, então eu sabia série, sabia temáticas envolvidas, sabia quando uma empresa fez a mudança de estilo em algum negócio, sabia sobre tiragem sabe, são coisas totalmente inúteis, pra quê você vai saber  detalhes sobre sobre cartões eletrônicos? Então essa parte do dos aspectos mesmo, de interesses assim, era um tema bem de nicho, bem de fã mesmo. Quando eu falo cartões eletrônicos, na verdade eu estou me referindo a cartões telefônicos, daqueles antigos de orelhão, só para esclarecer; e eu acho que também é uma coisa muito interessante sobre conhecimento inútil, é que de alguma forma ele pode se transformar em alguma coisa importante no sentido de carreira e tudo mais, e a Wikipédia me ajudou muito a usar os meus conhecimentos inúteis a fim de transformar em alguma coisa, e isso também acabar se tornando relevante no ponto de vista de trabalho, então por exemplo, temos o maior interesse na minha vida música então às vezes detalhes sobre biografias e tiragens e artistas e históricos de bandas, que no sentido prático as pessoas não se interessam muito, as pessoas querem músicas, querem a experiência da música e muitas vezes isso não é muito relevante, mas esse tipo de conhecimento, muito geralmente dito como inútil, tem algum tipo de relevância. E aí a gente chega no ponto do hiperfoco. Você acha que tem uma relação entre o hiperfoco e o conhecimento inútil? 

Luca: Acredito que tem, porque qualquer coisa que desperta seu interesse, principalmente considerando que muitas vezes o meu interesse não é despertado por muitas coisas, quando isso ocorre para mim, é algo que traz muita vontade de consumir tudo aquilo, então isso agrega ao fato de que você queria saber mais sobre alguma coisa muito nicho, então acredito que é extremamente vinculado a questão de hiperfoco, que para quem não sabe, o hiperfoco é a tendência onde pessoas autistas e em alguns casos as pessoas neurotípicas tem de ter uma concentração extremamente exacerbada em assuntos específicos, a ponto de se desligar do mundo de fora e saber tudo sobre aquilo dependendo do grau. Então acredita que tem conhecimento que é inútil ou é só uma peste aqui pegou e não sai?

Tiago: Olha, eu acredito que depende do contexto, esse conhecimento inútil ele tem um valor, se você chegar por exemplo, em uma comunidade rural, uma população que as pessoas não tiveram oportunidade de estudar, quando eu falo estudar pelo menos até a 4ª série do Ensino Fundamental, você vai ver que os temas de relevância para ele de conhecimento são coisas da terra, são conhecimentos que passaram de gerações, aquela coisa da tradição oral e de certa forma muitas vezes um tema específico sobre cultura popular do sei lá, da década de 70 por exemplo, se a gente pegar alguma coisa da literatura, da música, não vai ser o tema relevante, vai ser um conhecimento inútil, agora se você tiver numa comunidade acadêmica, por exemplo, de uma área das ciências exatas presente na matemática, e se você chegar com um tema específico sobre tradição oral, sobre essas coisas da comunidade, da terra para eles, é totalmente inútil, não vai ter valor nenhum né, então eu acho que essas habilidades conforme o contexto são úteis. Eu acho que a maior dificuldade do autista com relação ao mundo e o seu hiperfoco é exatamente esse, ele sabe utilizar esse perfil que ele tem, esse interesse exacerbado num tema e canalizar isso para algo produtivo ou pelo menos a algo que não seja totalmente limitado ao prazer de ter e de saber, compartilhar isso com o mundo, então eu acho que esse é um ponto assim muito fundamental.

Luca: Eu sinto e vejo nas pessoas autistas uma dificuldade em relacionar muitas vezes o interesse dele ao assunto, ao tema em questão, então por mais que seja algo muito presente no interesse dele, e como ele não sabe relacionar ou pode ser usado num contexto completamente diferente e o que muitas vezes as pessoas veem como algo ruim, muitas pessoas neurodiversas vêem como algo ruim ou simplesmente não é usado, porque muitas vezes é por tantas tentativas falhas, acredito que a pessoa fica desestimulada a tentar mostrar, agregar algum conhecimento.

Tiago: Isso me fez pensar em duas coisas. Durante todos esses anos que eu frequento grupos na área de autismo, eu já vi muitos relatos de mães falando que os filhos desenvolvem um interesse muito grande em algumas coisas, por exemplo filmes, filmes específicos, livros, histórias, e eles levam aquele conteúdo literalmente, eles decoram o texto, decoram a narrativa e tudo mais, e levam frases e pontos específicos para o dia a dia e repetem aquilo fora de contexto, que é uma característica bem grande principalmente em pontos, digamos assim, mais moderados e substanciais do autismo. Agora quando você falou isso, eu pensei em uma outra questão, um dos meus hiperfocos são música, então eu já me vi durante horas falando sobre música, sobre um trabalho específico e não é qualquer pessoa que tem vontade de ouvir aquilo e tudo mais, aquele sentido de algo ser tão prazeroso e de ser tão detalhado na sua mente ao ponto de você não conseguir, mesmo conscientemente sabendo que não é o horário adequado de você expor aquilo, e isso me fez lembrar uma situação que eu não sei se já contei aqui no podcast, mas alguns anos atrás eu estava fazendo um tipo de trabalho com algumas pessoas, e a gente tinha que falar sobre uma marca, uma marca do mercado mundial que fosse ou um exemplo de sucesso ou um exemplo de fracasso, e aí grande parte do meu grupo quis falar sobre a coca-cola, e eu queria falar da Nokia, por que a Nokia para mim era um sucesso decadente, e aí tanto é que isso virou uma parte do episódio 12 que é o telefone esperto, que inclusive teve a participação do Luca, mas enfim, eu queria falar sobre a Nokia, eu propus uma série de argumentos para justificar o que eu queria usar, e o tema da Nokia me deixando empolgado, é o tipo de conhecimento teoricamente inútil que eu achava interessante, chegou o momento que não,  não queremos conversar sobre isso pelo amor de Deus chega, então isso que você me falou me fez lembrar muito dessas duas situações, porque além do conhecimento inútil ser uma questão que pode ser prazerosa, ele também pode ser um fator de angústia, porque a pessoa tá com aquilo, ela tá com vontade de passar para frente eu encontrar pessoas que vão falar sobre aquele específico, mas as pessoas não vão garantir essa receptividade.

Luca: E eu vejo que algumas pessoas quando já tem idade mais avançada se aproxima de 50 e 40 anos, são pessoas muito cansadas e que simplesmente desistem sabe, que eu posso usar disso é o meu pai, ele desiste de comentar coisas que ele sabe que muitas pessoas não vão aceitar, por mais que ele queira muito comentar sobre música, ele vê que muitas pessoas não vão querer, então ele é uma pessoa muito fechada pelo simples fato de ter tentado várias vezes e nada ter dado certo, então ele não tenta de novo.

Tiago: Um amigo meu uma vez ele disse uma coisa que tá um pouco fora de contexto desse tema que nós estamos discutindo, mas se encaixa de uma forma adjacente, que é o seguinte, ele disse para mim que na construção de relações com as pessoas, é muito mais prático a gente só concordar ou falar sim, do que interpelar e construir ideias, porque é muito mais fácil teoricamente fazer contato só concordando com elas, porque as pessoas não vão se interessar pelo que a gente gosta, e isso é muito ruim, e a forma que encontrei para poder descarregar isso, não só lendo como escrevendo, então na época da minha adolescência, eu tive um período bastante solitário nesse sentido,  eu tinha muito tempo livre, poucos lugares para ir, os contatos que eu fazia era, ficar no computador mexendo na internet, então durante os meus 15, 16 anos, eu acho que é um hábito bastante estranho, de ficar lendo dissertações e teses de doutorado, aí eu ficava com uma quantidade de PDF com assuntos muito específicos, muito estritos, que eu não tinha onde jogar, aí às vezes eu pegava tudo aquilo que eu aprendi, tudo que eu ouvia com relação a música, e começava a escrever, e aí depois de uns tempos isso virou atividade profissional, hoje eu mexo com essa questão de jornalismo cultural, acabei fazendo graduação em jornalismo, formei e eu trabalho com isso, mas foi um percalço tão grande de conhecimento que eu fui adquirindo, muita coisa que ficou também um pouco tangenciado, mas por alguma forma, por tentativa e erro eu consegui, mas eu conheço muita gente que não consegue relacionar esse conhecimento agregado, e às vezes perde o interesse também, porque o conhecimento inútil, você vai acumulando às vezes até o limite, e aí o que você faz com ele? Você perde muito interesse com relação a certos temas com frequência ou não?

Luca: A minha maior tendência é perder interesse nos temas que eu desperto algo muito repentino, geralmente me interesso por algo, consumo tudo que é possível disso, não vejo nenhuma possibilidade de transmitir aquele conhecimento, de dialogar, desisto e parto pra outra coisa. Mas algo que me tira muito da angústia que eu tinha antes, é o fato de a internet ser algo que ajuda muitas pessoas que tem interesses em coisas minúsculas assim, porque tudo que você procurar na internet vão ter pessoas falando sobre isso, outras pessoas discutindo sobre isso, por exemplo, grupos de ouvintes de Podcast que eu geralmente gosto muito, porque os temas tratados nos podcasts são muito discutidos nos grupos, e eram temas de interesse da minha adolescência, então fico muito contente de ter encontrado uma maneira de extravasar a vontade de conversar.

Tiago: De forma que se você souber tudo sobre parafusos ,com certeza tem um grupo sobre parafusos no Facebook,  ou se não tiver algum, tem algum blog, alguma coisa, tanto é que eu acho que um dos maiores temas de conhecimento inútil que a gente tem na atualidade, são os busólogos ,que se você não sabe, são pessoas que são apaixonadas por ônibus, sabem tudo sobre os modelos, ano de fabricação, gostam de visitar terminais de ônibus, rodoviárias para se atualizar sobre os modelos, conversam com motoristas, então é uma comunidade de fãs de ônibus, e não somente fãs deles, são realmente especialistas em ônibus, eu acho isso sensacional.

Luca: Isso aplicado a tudo, relógios, desenhos animados, livros, tudo que você imaginar, sensacional. O maior problema que vejo nisso, é só que muitas vezes os meios não são muito receptivos para pessoas que estão iniciando, então eles acabam sendo um ambiente hostil, uma pessoa mais nova de idade, ou de conhecimentos, querendo saber mais, aí a pessoa tem que ser tratada mal por não saber tanto quanto eles, acho que isso é uma coisa muito hostil nesses grupos que infelizmente é muito presente em todos.

Tiago: Aliás, durante os últimos anos eu tenho tomado muito cuidado com isso, porque quando era mais novo eu tinha esse costume de agregar um conhecimento sobre o tema e se alguém fosse entrar naquele negócio eu já ficava observando aquela pessoa cometer o mínimo erro sabe, que é um negócio muito comum na comunidade nerd né, e tem um pouco de preconceito também, principalmente quando entra no território mulheres, que é o cara, ele sabe uma parte absurda, e ele só vai aceitar aquela pessoa se aquela pessoa souber sobre o específico objeto que foi utilizado naquele tema em 1948 sabe, então assim, a pessoa adquire um universo tão grande sobre o negócio, que às vezes a paixão delas está sob arrogância também, e isso é um risco muito grande. Eu acho que a pessoa que tem um mínimo de ego corre risco, e autistas são muito egocêntricos muitas das vezes também, é preciso admitir isso, e é uma batalha constante que eu acho que as pessoas também precisam travar, pelo menos se tornarem mais agradáveis, não só para os outros mas também no sentido da sua própria identidade.

Luca: E porque se você for uma pessoa hostil, é muito difícil você conseguir fazer contato com pessoa e se sentir aliviado na questão social por simplesmente ser uma pessoa, desculpe pela palavra, mas insuportável em diversas vezes. Como eu já tive contato com muitos, já fui muitas vezes uma pessoa assim, então o autoconhecimento nesse tema, acho que é muito importante, não de ah, eu sei tantas coisas sobre cartões-postais, não é, é de algum autoconhecimento de, eu sou arrogante suficiente para expulsar uma pessoa desse meio ela se interessar porque se aproximar de sim, melhor rever né, melhor tentar ser uma pessoa mais receptiva, porque assim você vai conseguir transmitir a sua paixão, permitir que diversas pessoas que tenham a mesmo paixão, saibam um tanto quanto você ou até mais.

Tiago: Eu acho que a partir disso, a gente pode falar nossa própria experiência né, quando você age de uma forma arrogante ou você afasta pessoas nesse sentido, você perde oportunidade de passar por situações e de conhecer pessoas e talvez seria algo significativo na sua vida, eu conheci o Luca no grupo de podcast, a gente morava na mesma cidade, então era um negócio bastante interessante, a gente se conheceu e eu lembro que às vezes a gente ficou horas conversando sobre temas específicos, negócio que para mim pelo menos não é muito comum tudo isso, por causa dessa segmentação de temas e tudo mais, até desembocar no podcast, eu acho que nós somos na verdade as únicas pessoas que tem uma prática de ouvir podcast antes de ter surgido introvertendo, então provavelmente se não fosse por causa desse conhecimento inútil dessa relação que criou a partir desse interesse não existiria. 

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Equipe Introvertendo Escrito por: