Introvertendo 253 – Romantização do Autismo

É frequente ver, na comunidade, pessoas reclamando sobre uma tal romantização do autismo. Mas o que é isso? Neste episódio, nossos podcasters desenvolvem uma reflexão sobre o tema, quais os impactos disso na comunidade do autismo e nas representações do autismo, e como diálogos podem ser abertos a partir dessas polêmicas. Participam: Luca Nolasco, Michael Ulian, Paulo Alarcón e Tiago Abreu. Arte: Vin Lima. 

Links e informações úteis

Para nos enviar sugestões de temas, críticas, mensagens em geral, utilize o email ouvinte@introvertendo.com.br, nosso contato do WhatsApp, ou a seção de comentários deste post. Se você é de alguma organização e deseja ter o Introvertendo ou nossos membros como tema de alguma palestra ou na cobertura de eventos, utilize o email contato@introvertendo.com.br.

Apoie o Introvertendo no PicPay ou no Padrim: Agradecemos aos nossos patrões: Caio Sabadin, Claudia Barcellos, Francisco Paiva Junior, Gerson Souza, Luanda Queiroz, Luiz Anisio Vieira Batitucci, Marcelo Venturi, Marcelo Vitoriano, Nayara Alves, Otavio Pontes, Priscila Preard Andrade Maciel, Tito Aureliano, Vanessa Maciel Zeitouni e outras pessoas que optam por manter seus nomes privados.

Acompanhe-nos nas plataformas: O Introvertendo está nas seguintes plataformas: Spotify | Apple Podcasts | DeezerCastBox | Google Podcasts | Amazon Music | Podcast Addict e outras. Siga o nosso perfil no Spotify e acompanhe as nossas playlists com episódios de podcasts.

Notícias, artigos e materiais citados ou relacionados a este episódio:

*

Transcrição do episódio

Tiago: Um olá pra você que ouve o podcast Introvertendo, esse podcast feito por autistas e que de vez em quando trabalha temas polêmicos. Meu nome é Tiago Abreu, sou jornalista, um dos apresentadores deste programa e eu gostava muito mais da época que quando a gente falava sobre romantismo, era sobre paixão ou sobre um período da literatura.

Michael: E eu sou o Michael, o Gaivota, e eu tenho que discordar do Tiago, porque o romantismo da literatura geralmente é considerado assim meio bem exagerado, bem exacerbado, com uma conotação meio negativa se você tem uma visão anacronista de hoje. E é justamente por isso que a gente tem esse conceito de romantização que a gente tem hoje.

Paulo: Olá pessoal, meu nome é Paulo Alarcón, e na minha visão ambos estão um pouco corretos. Embora os exageros do romantismo sejam a origem do termo romantização que a gente vai usar aqui, ele tem seu valor como movimento literário.

Luca: Oi pessoal, eu sou o Luca Nolasco e já que a gente está aqui pra chatear exclusivamente nossos ouvintes estudiosos de Letras, eu gosto muito de romantismo, mas convenhamos, né? O realismo é muito melhor.

Tiago: Vale lembrar que o Introvertendo é um podcast feito por autistas com produção da Superplayer & Co.

Bloco geral de discussão

Tiago: Antes da gente partir para uma discussão mais aprofundada, eu queria perguntar pra vocês de uma forma mais livre o que vocês entendem por romantização do autismo.

Michael: Na minha visão, a romantização do autismo vem muito dessa visão idealizada do que é o autista, né? Principalmente muito com aquele ideal do savant, aquele cara genial e tal, hoje em dia é até muito mais pop, né? Porque a gente, principalmente, a gente vem do que era antes Asperger e agora “autismo leve” e acabou tendo uma visão mais popularizada desse autismo um pouco mais social, você tem uma enraização nisso na cultura pop. E muita gente interpreta: “beleza, o cara é autista, então é um Sheldon da vida, é isso”. E a gente sabe que na realidade as coisas são muito diferentes, até mesmo pra gente que tá nesse patamar mais leve a realidade é muito mais feia. Essas coisas não são tão legais.

Luca: Eu sempre lembro de algo que não tem muito a ver até meio polêmico do Alan Moore, que é um roteirista e quadrinista, revoltadíssimo falando que ele não gosta de super-heróis porque super-heróis (e isso é uma fala dele, não necessariamente concordo) adoecem a sociedade, porque a sociedade passa a depender e querer que alguém o salve e que tenha alguma entidade superior, alguma entidade alheia alienígena que faça algo por elas. E eu acho que a mídia de filmes e de séries trouxe esse ponto dele pro autismo. Caracteriza o autismo como essa coisa alienígena, de uma pessoa sem emoções mas que é super inteligente, super capaz, que faz tudo de maneira até que não se aplica a lógica.

E isso é algo que as pessoas gostam de ver, de ter alguém que é grandão, alguém que consegue tudo. Não corresponde a realidade, mas chegou num ponto onde hoje já é associado ao autismo popularmente essa questão de superpoderes quase.

Paulo: Eu vejo que existem dois caminhos de romantização do autismo, né? Esse caminho dos autistas super poderosos (risos), aquela pessoa que é extraordinária em alguma coisa, e você tem outro pólo também e isso afeta geralmente os casos mais severos a típica figura do anjo azul.

Tiago: Legal a contribuição de vocês, eu acho que reflete algumas coisas que eu tenho pensado muito sobre esse tema. Pra mim a romantização do autismo é um discurso que reflete uma definição errada ou higienizada do autismo. Mas aí quando a gente fala sobre uma definição errada sobre o autismo, vem a grande questão: O que é o autismo? Qual é a forma certa de falar sobre o autismo? Porque essa palavra autismo pode caracterizar um diagnóstico e a gente pode usar referência do DSM para descrever o autismo. Mas a palavra autismo tem muitos significados e ela tem uma aplicação na vida das pessoas. A gente está falando de um diagnóstico muito amplo, cada pessoa tem a sua vivência com autismo. Então falar de romantização pode ser muitas coisas e aqui vocês trouxeram várias. A representação do autista na mídia, a ideia do autista como um gênio. São várias questões que, de alguma forma, cada um se refere quando se fala de romantização.

E eu particularmente tenho um sério problema com essas palavras ou com essas expressões dentro da comunidade do autismo que cada um dá um significado, sabe? Porque pra mim isso é a fonte das confusões. É tipo autodiagnóstico. Quando alguém fala de autodiagnóstico é uma coisa, aí quando outra pessoa vai falar é outra coisa, então acaba virando um caos. E aí eu trouxe dois vídeos e que tão na descrição que eu acho que são muito educativos pra gente ver o quanto que essa discussão sobre romantização é ampla.

Um vídeo é do Lucelmo Lacerda e o Lucelmo Lacerda é uma pessoa que divide opiniões na comunidade do autismo, quem gosta do Lucelmo gosta muito, quem não gosta odeia, mas eu acho que o vídeo do Lucelmo tenta sistematizar o que as pessoas entendem por romantização. Então, ele também vai trazendo essas várias características. Não concordo com tudo que ele diz no vídeo, mas eu acho que é um vídeo interessante porque ele pelo menos tenta mostrar a complexidade e a profundidade desse tema.

E o outro vídeo que eu sugiro que vocês que estão ouvindo assistam é o vídeo do Rodrigo Diesel. Ele apareceu aqui no Introvertendo ano passado no episódio Autistas da região sul e o vídeo dele é um desabafo sobre um hate que ele teria sofrido de uma seguidora ou de seguidores, de pessoas acusando de que ele estava romanizando o autismo. E aí ele fala no vídeo que, na verdade, ele não estava romantizando. Ele estava só falando da vivência dele e que as pessoas estavam fazendo essa inferência.

E eu acho que esse vídeo dele escancara um problema quando a gente fala de romantização. Muitas pessoas na comunidade do autismo falam em romantização nos contextos errados. É meio que no contexto de “carteirada”, entendeu? É tipo: “eu sei o que é o autismo de verdade. Você não sabe. A perspectiva certa sobre o autismo é a minha”. Eu torço o nariz sobre essa questão da romantização do autismo. Eu sou meio um hater desse negócio. Porque eu acho que pode ser um tiro no pé, entendeu? Uma pessoa na comunidade do autismo que tem um filho por exemplo, que tem muita dependência, que tem uma dificuldade, que tem uma série de questões, por exemplo, de comunicação, pode ver o próprio Introvertendo, pode ver a gente falando sobre autismo e falar: “Esse bando de autista aí fazendo podcast romantizando o autismo, isso nem é autista de verdade”, entendeu? Então eu acho que quem não tem teto de vidro que atira a primeira pedra (risos). Não sei o que vocês acham.

Michael: Como a gente está numa cultura que não só é propícia para isso, mas incentiva esse tipo de comportamento por causa de como a gente tem o funcionamento de algoritmos e como eles gostam de treta, para simplificar a história. O Paulo inclusive pode falar sobre isso melhor. Cara, a melhor definição disso é uma caça às bruxas. E como você falou Tiago, é um motivo válido, as pessoas tem uma visão romantizada de muitas coisas. Isso não quer dizer que isso não seja ruim, na maior parte das vezes pra falar a verdade. Talvez o fato da gente não ter muita autoridade, por ser um movimento popular sem ter um norte, um objetivo muito fixo. É mais uma coletânea de ideias de várias pessoas sem ter essa coesão, acaba tendo esses problemas que você falou Tiago.

Paulo: Uma coisa que eu acho assim é né? Concordo que o Michael disse né? Existe sim uma tendência de algoritmos reforçar o comportamento das pessoas. Então eles vão te direcionar para aquilo que você quer ver. E se você quer ver coisas mais a ver com a sua opinião você vai contar isso. Eu acho que o problema não está em ser um movimento popular, em ser um algo descentralizado em si, mas na questão da falta de diálogo.

E a gente tem um problema que, no autismo, o espectro é gigantesco. Sendo que você tem pessoas que têm altas habilidades/superdotação até a pessoa que precisa de ajuda pras tarefas mais básicas. E uma coisa que acaba acontecendo e reforçando essas brigas é que geralmente quem vai falar são as pessoas do lado mais leve do espectro e eles vão falar do ponto de vista deles, que não é exatamente o mesmo ponto de vista de uma pessoa com um grau de autismo mais elevado.

Tiago: Eu acho que a gente tem aí duas questões muito importantes. Primeiro o tom generalista que a ideia de romantização pode ter que está refletida exatamente nessa amplitude do espectro do autismo. Dentro da comunidade do autismo, como nós temos um espaço muito plural, a gente tem uma dificuldade de perceber ou de compreender talvez a realidade alheia. Porque está muito fora daquilo que a gente está acostumado a conviver dentro das nossas próprias vivências com autismo. Isso eu falo tanto em relação aos autistas, mas também quanto às famílias, os cuidadores, etc. Está todo mundo tão envolvido ali nos desafios do seu próprio universo que às vezes tem uma dificuldade nesse sentido.

Então a gente coloca todas nossas angústias, todos os nossos incômodos com discursos que a gente gosta ou que a gente não gosta sobre um rótulo único que é a romantização. E aí beleza, não estou aqui falando que a romantização não existe e que ela não é um problema, ela existe. Só que se a gente não consegue especificar muito bem, fica nesse nível meio disperso.

Por exemplo, uma pessoa autista que está falando sobre as suas experiências na internet, por mais que você não compartilhe dessas mesmas experiências, é a vivência daquela pessoa. Agora, uma pessoa autista que chega na internet e fala “porque o autismo é X, Y, Z” e o autismo não é XYZ ou “se você dá dois pulinhos você é autista”, aí a gente tem um sério problema e isso realmente ocorre.

Num outro sentido, existem correntes teóricas sobre o autismo feitas por autistas, dentro da neurodiversidade por exemplo, o que vai sustentar a ideia de autismo como algo que deveria ser totalmente despatologizado que não deveria ser considerado um transtorno e deveria sair dos manuais médicos assim como a homossexualidade, por exemplo, saiu. O que é uma ideia extremamente polêmica, em certa medida pode ser considerada uma romantização do autismo, mas eu não vou me aprofundar muito nesse ponto porque a gente vai lançar um episódio ainda chamado As Vertentes da Neurodiversidade que eu vou explicar mais ou menos um pouco sobre essas ideias, quem são os autores que defendem isso e quais são as polêmicas.

E já que a gente falou sobre a complexidade de identificar essa romantização do autismo, como é que a gente consegue reconhecer que um discurso é uma romantização do autismo e outro não é?

Luca: Eu não acho fácil reconhecer, óbvio, tem obras, tem falas que é muito fácil, mas assim chega num ponto onde essa romantização, essa idealização do autismo se mescla com figuras reais, que de fato são autistas e são muito boas no que fazem. Aí já é parar e ver qual é o intuito dessa postura, dessa fala da pessoa. Trazendo como exemplo aqui o Anthony Hopkins, ator. Ele é maravilhoso como ator. Muito bom no que faz. E é autista. Quando alguém traz algo sobre ele, a pessoa sobre como incrível ele é como ator ou quão incrível ele é como ator porque é autista? Porque essa segunda opção dá muito claramente a margem para entender que você só consegue esse tipo de coisa extraordinária por conta de um diagnóstico. Justificar isso exclusivamente sobre autismo já é uma postura que eu diria que é bastante romantizada, né?

Paulo: Tem uma questão que é tentar mostrar as qualidades da pessoa quando ela é um exemplo de superação digamos assim, ignorar os defeitos dessa pessoa. Por exemplo, Anthony Hopkins é um baita de um ator renomado, fez papéis incríveis por todo lugar por onde passou, mas uma coisa da biografia dele e que pouco se fala é que ele tinha sérios problemas de convivência no set de filmagens e ele já arrumou briga com muita gente. Quando você ignora essas questões é que começa a aparecer a romantização na história da pessoa.

Michael: Eu acho que a gente já falou um tanto sobre essa questão de como identificar quando acontece essa questão da romantização na primeira parte. E o Paulo reforçou isso. Quando você tem essa visão idealizada, você ignora de propósito os problemas. É algo que também é muito válido para o estereótipo do anjo azul, apesar da minha distância com essa realidade, eu tenho impressão que talvez o que a gente considere estereótipo do anjo azul talvez nem seja só aplicável para casos de autistas de alto grau, mas como também com outras pessoas que têm deficiências intelectuais similares.

E isso pra comparar de novo, voltando aquele negócio de quão amplo é o espectro autista, é uma realidade extremamente diferente da nossa. É difícil pra mim, essa é minha visão. Tipo, esse é o meu próprio estereótipo das coisas. Por muito tempo, era isso que eu via, que autismo era mais uma deficiência intelectual e seria aquela pessoa que não tem capacidade de comunicação nenhuma. Ao mesmo tempo eu ficava: “talvez eu não sou meio assim também? Eu não sou muito, mas eu não bato um pouco com isso?”. Caramba, eu já me perdi no que eu estava falando.

Tiago: OK Michael você se perdeu, mas eu acho que tem um ponto no seu raciocínio que é muito relevante que é sobre essa questão do anjo azul, né? A gente já fez um episódio sobre isso, mas realmente o anjo azul tá muito nessa fronteira da romantização e também do capacitismo porque ele se liga a outras deficiências. A gente tem essa ideia infantilizada das pessoas com deficiência intelectual. Se você pensa, por exemplo, numa pessoa que tem síndrome de Down, sempre as pessoas tratam como se fosse uma criança, como se fosse um ser puro. Então acho que faz muito sentido a sua linha de raciocínio.

E aí é uma coisa que, por exemplo, no vídeo do Lucelmo ele acha que a questão do anjo azul não cabe dentro da discussão de romantização. Eu discordo, acho que cabe sim e se encaixa com três critérios que eu pensei de identificação de algo que é uma visão romantizada do autismo. A primeira coisa é quando a argumentação faz parecer simples. Então quando a gente, por exemplo, vê uma pessoa autista e aí é uma pessoa autista fazendo bobagem na internet falando: “se você der três pulinhos, você é autista”. O argumento é muito simples. E o anjo azul também. “Ah, os autistas são seres puros, não tem maldade”.

O segundo critério que eu vejo de identificação é se o discurso é unilateral. Então, assim, não existe nuance. A gente tem um diagnóstico extremamente complexo que é o autismo, a gente tem formas de viver o autismo que são extremamente complexas que interagem com a nossa sociedade, com critérios de renda, de classe, de várias coisas, então a sua vida como autista ela pode ser mais fácil ou mais difícil dependendo de todas essas questões sociais além das próprias questões do próprio diagnóstico e aí as pessoas falam de uma forma unilateral, “autismo é isso”, bem direto, como se todos os casos fossem uniformes.

E o terceiro e o mais óbvio é que não é baseado em material sólido, então se não existe uma referenciação, se aquilo é baseado em “fonte: vozes da minha cabeça”, como a galera fala, eu acho que fica mais fácil da gente ver que isso de fato é uma romantização, é uma distorção da realidade, ou em alguns casos, como no caso do anjo azul, além de ser uma romantização, é uma expressão do capacitismo.

Michael: Essa realidade do autismo é bastante vulnerável a esse tipo de coisa, porque a gente tem uma literatura pobre sobre autismo. Está melhorando. Quer dizer, eu espero que esteja melhorando. Faz anos que a gente fala que está melhorando. A literatura técnica sobre o autismo não é muito extensa. Quando você não tem uma literatura… até quando você tem literatura sólida, tem um idiota pra falar que a Terra é plana. Então é foda pessoal, é foda ser cientista.

Paulo: Hoje está mais sólida do que era há alguns anos atrás. Mas seguindo nessa questão, eu tive uma uma experiência que foi bastante emblemática para mim porque também tive uma uma visão do autismo antes de ser diagnosticado e baseado nos casos severos, que era o que se lembrava de autismo. Tive o meu processo de diagnóstico e notei que talvez o autismo não era tão ruim assim. Mas houve um momento onde eu e a Bella conhecemos um menino que a gente pretendia adotar, mas infelizmente não deu certo por várias razões. Ele era um caso de autismo muito, mas muito mais severo do que o eu. E é literalmente outro mundo você ver um caso desse próximo.

Tiago: Então aí a gente volta naquela questão que tangencialmente a gente passou que é sobre a representação do autismo na mídia. A gente tem um episódio sobre isso que é o episódio 170 – Representação do autismo na mídia, mas exatamente nessa complexidade do espectro e sobre a forma como a gente entende o autismo publicamente houve uma virada de chave e hoje a gente tem conflitos dentro da comunidade do autismo sobre qual é a cara do autismo. Então tem famílias que vão dizer que existe uma invisibilidade do “autismo severo” – e a gente tem que deixar aqui bastante claro que não é uma expressão técnica.

Eles vão falar: “ah, porque os autistas severos estão sendo invisibilizados”. Aí vai ter autistas de nível 1 na internet que eu vão falar assim: “poxa, só falam dos casos severos”. Eu acho muito engraçado que um aponta o dedo pro outro (risos). Eu que estou há alguns anos trabalhando na comunidade do autismo e até trabalhando jornalisticamente, consigo ver que nas produções culturais a gente tem um foco no autismo leve por uma questão narrativa também e por esses estereótipos do autista gênio. Mas em termos jornalísticos, eu acho que a coisa sempre foi um pouco mais equilibrada. Está mudando um pouco nos últimos anos por conta dos familiares de autistas que estão se descobrindo autistas, que dá mais nuance ainda para essa discussão.

A gente sempre pensa na comunidade do autismo como aquelas entidades separadas: os profissionais, os pais, os autistas. Só que na história do autismo no mundo e no Brasil, a gente está no momento que eu enxergo como momento de transição. Essa década aqui de 2020 é a década da transição. Essas categorias elas vão começar a se cruzar de uma forma muito mais evidente e várias pessoas na comunidade que a gente vê como especialistas em autismo, profissionais ou familiares de autistas, estão se descobrindo autistas.

Mas pra não fugir dessa discussão, vamos voltar aqui na questão da romantização do autismo. Para vocês, quais são os impactos que essa romantização do autismo pode trazer em termos negativos?

Michael: Eu acho que você acabou comentando uma sem querer. É interessante como você tem esses dois extremos. De um lado, o que eu estou chamando aqui de “autista pop”, esse autista mais leve com as altas habilidades que supostamente tem e do outro lado você tem o anjo azul, o anjinho lá tocando harpinha. Você acaba jogando a própria comunidade contra si mesma. É algo triste de se ver e é engraçado, porque eu vejo que as pessoas acabam caindo no próprio estereótipo. Todo mundo é autista, cara. A gente toma no cu também (risos). A gente toma no cu justamente porque a gente tem mais habilidades sociais. Mas não é que a gente tem habilidades sociais plenas. Esse gap que tem entre a gente e as pessoas neurotípicas, cara, é enorme ainda!

Luca: Na comunidade do autismo é o que eu acho mais importante de se analisar isso porque acho que qualquer um que já esteve num grupo de Facebook de comunidade autista e percebe uma coisa muito forte. Obviamente cada pessoa é de algum ponto do espectro, todas as vivências são muito distintas. Só que algo que permeia muitas dessas pessoas é a percepção de que “eu não sou bom o suficiente porque eu não correspondo às expectativas da sociedade”. “Eu não correspondo às expectativas da sociedade, eu deveria ser maravilhoso nisso aqui e eu não sou”. Ou “eu deveria ser muito ruim nisso aqui e sou bom”. Eu sou bom em conversar com as pessoas em situações protocolares. Mas eu não sou autista porque eu consigo conversar com as pessoas eu não correspondo aquela visão idealizada? Não. Mas eu acho que essa visão pode trazer certo nível de desconforto e de insegurança até com o próprio diagnóstico, dependendo do grau de quanto isso afeta a pessoa. Por isso eu acho muito problemático.

Paulo: Essa romantização acaba provocando todas essas essas brigas na comunidade. E o que se vê de quebra pau em grupos de autistas e principalmente também quando tem pais de autistas no meio é algo absurdo. Se alguém acha que o autista é bonzinho, nunca esteve num grupo de autistas (risos).

Tiago: Então eu vou tentar sintetizar aqui várias coisas que a gente falou. Primeiro a gente falou sobre as representações do autismo na mídia e cultura porque isso influencia ou não. Às vezes é um pouco difícil também descrever. Eu acho que as séries e filmes de autismo também influenciam as próprias pessoas que falam sobre autismo nos últimos anos que receberam o diagnóstico tardio, né? Mas enfim, isso aí são outras questões. A gente falou também que essa romantização do autismo provoca essas brigas dentro da comunidade. A gente chega até em momentos feios de familiares de autistas filmando pessoas em crise, que tem também uma outra questão.

Tem o ponto óbvio que a romantização do autismo faz as pessoas terem o entendimento errado do que é o autismo. E aqui eu preciso fazer referência a uma coisa que o Willian Chimura falou e que está lá no episódio do Proibidão, de que geralmente a gente tem péssimas estratégias para explicar o que é o autismo. Isso também pode ser a romantização do autismo, pode ser também uma consequência disso. É muito difícil explicar o autismo de forma que as pessoas entendam de forma intuitiva. Aí você começa a descrever as suas características, aquilo que você vive. Aí a pessoa pensa: “ah, mas eu também faço isso. Será que eu sou autista?”. Ou: “ah, eu também faço! Não liga pra isso não, é só um detalhe, isso não é autismo não”.

E um ponto que vocês não tocaram, que eu acho que é importantíssimo, é que a romantização do autismo influencia as políticas públicas. Então se você tem pessoas autistas, por exemplo, que vão chegar numa num evento ou numa discussão de política pública, seja na esfera municipal, estadual ou federal e vai falar assim: “ah, porque autista não precisa de terapia não. Porque autismo não é transtorno”. O que vai acontecer? A gente tem um grande risco do estado que não quer gastar recursos. E os recursos para o autismo são significativos. Então se apoiar num discurso que em tese se propõe a ser emancipador e não é e deixar um monte de autista sem sem acesso à saúde, sem acesso à políticas. Então a gente tem uma questão bastante complicada.

A gente tem que tomar muito cuidado sobre aquilo que a gente defende. Por exemplo, CIPTEA, que é a carteirinha do autismo. Quando a questão da CIPTEA saiu, teve gente que torceu o nariz. Não é a melhor política pública do mundo. A gente tem que admitir. Mas é uma política pública fácil de fazer. Você entrega o cartão. Esse cartão tem o símbolo do autismo, tem informação de que a pessoa é autista e a pessoa consegue exercer o seu direito de acessar filas. Pronto, é simples. É fácil. OK. Você não vai fazer grandes coisas com isso, mas funciona.

Existem certas políticas que a gente alcança que se a gente for realmente levar a raiz da discussão de certos segmentos, principalmente que autistas levantam sobre autismo, que a gente não teria nada. Nem fila preferencial, a gente não teria nada, direito nenhum, sabe? Porque autismo não é transtorno. “Está tudo bem gente. Está tudo bem. Inclusive, perfeito. Se você nasceu autista, você é a próxima evolução da humanidade”.

Paulo: A fila é só a ponta do iceberg. O fato de você ter a carteira ajuda por exemplo numa situação em que você vai pra um hospital e precisa ficar internado. Às vezes você nem precisa falar que você é autista pra ver o maior cuidado por parte da equipe médica e em diversos ambientes, a forma como é tratado também você acaba tendo um respaldo para sua situação por exemplo.

Tiago: Pois é, a CIPTEA foi só um um pequeno exemplo, porque legislação ou toda discussão de política pública causa treta na comunidade do autismo. E tem um segmento muito específico de autistas alicerçados em várias bases, em vários ideais, em várias ideologias, digamos assim, que vão partir para esse rumo, sabe? Então eu já vi por exemplo autistas que alicerçados no movimento de pessoas com deficiência, mas de uma forma completamente distorcida e descontextualizada, falam assim: “olha a gente não quer isso porque a gente defende o modelo social da deficiência”. A pessoa não sabe nem o que é modelo social da deficiência, não sabe descrever quais são as gerações do modelo social da deficiência e vai falar que: “está tudo bem ser autista, o problema está na sociedade”. Não é exatamente isso que as diferentes gerações do modelo social vão discutir. Isso é uma simplificação absurda. Mas enfim, aqui eu já estou me alongando demais. Eu vou falar um pouco mais profundamente sobre esse assunto no episódio As vertentes da neurodiversidade. Então fica de olho que daqui a algumas semanas vai sair.

Mas voltando à questão da romantização do autismo, eu acho que está meio óbvio que a gente considera que a chamada romantização do autismo deve ser combatida. Mas se a romantização do autismo deve ser combatida, como ela deve ser?

Luca: A melhor maneira de se combater esse tipo de coisa é falando sobre, é expondo todo mundo que você conseguir como que é o espectro do autismo, como que são os indivíduos presentes nesse espectro e como há idiossincrasias em cada um deles, qualquer pessoa tem suas características que óbvio estão dentro de um mesmo diagnóstico e correspondem a certos parâmetros, mas não da mesma maneira . Então eu acho que quando o máximo de pessoas possível tiver percepção disso, tiver noção disso, provavelmente a romantização vai ficar um pouco mais tranquila. Se eu estou certo com isso, jamais saberei (risos). Então aí eu quero ver o que vocês também acham.

Michael: Acho que o Luca apontou as coisas na direção certa. Isso é algo que é extremamente complicado você tentar combater diretamente. No caso da romantização, a pior coisa que você pode fazer numa caçada às bruxas é falar: “Ei pessoal, já pensaram em não caçar as bruxas?”. É um ótimo jeito de você pegar fogo. Uma coisa só que eu ia querer adicionar: conscientização realmente na minha opinião, é o caminho. Quando você entende sobre algo, quando conhecimento sobre algo vira comum é muito mais fácil você desvincular esse conhecimento dos estereótipos, mas não é algo fácil de se fazer. Eu acho que a gente falando aqui fica bonitinho. “Qual que é a forma de combater?”. “Conscientização”. O problema está em como. Como você conscientiza?

Por exemplo o Tiago, falando. Vocês podem reparar que eu fico meio quieto nessas partes mais técnicas porque eu não entendo sobre isso então a melhor coisa que eu gosto é ficar quieto e ouvir o Tiago falar, porque ele entende. Mas ele falando sobre as coisas técnicas, principalmente sobre esse pessoal que tem e essa tentativa de desvincular o autismo de ser uma condição médica. Conscientização nenhuma do mundo atualmente funcionaria, porque a gente não tem uma base médica sólida do que causa o autismo, por exemplo. Nesse caso o caminho para conscientização primeiro seria a gente solidificar nossa base no entendimento do que causa o autismo. Cara, isso não é fácil. É a gente primeiro entender sobre essas coisas pra poder advogar sobre ela. Não tem como a gente simplesmente dar carteirada nesses caras porque a gente não tem uma base sólida para isso.

E OK, eu estou sendo um pouquinho dramático aqui. A base que a gente tem sobre o autismo ser uma condição de origem genética é pelo menos bastante entendida, a gente só não sabe exatamente quais são os mecanismos por trás disso e exatamente quais são as bases. A gente tem uma correlação bem forte do autismo ser de causa genética. Me pareceu um absurdo, me preparando pra esse episódio, de ler dessa questão do pessoal falando que o autismo é evolução da humanidade. Cara! A gente não está grandinho demais pra falar de eugenia nessa época não? Eita porra, hein?

Paulo: É que evolução é diferente de progresso, né? Não existe um sentido na evolução, a evolução vai no sentido de ser aquilo que é mais adaptado ao ambiente atual, né?

Michael: E novamente, eu reitero meu ponto. Não tem uma solução fácil, conscientização é o caminho, antes disso a gente tem um caminho bem difícil de se trilhar, que é o caminho do descobrimento, do entendimento, da descoberta, sentar a bunda e fazer pesquisa.

Paulo: Eu acho que tem mais um um caminho que cai dentro da questão da conscientização mas é algo que não depende tanto de novos estudos. Quando houver uma abordagem do autismo em alguma mídia, em algum trabalho artístico, tentar ser realista com a vivência de um autista. E se você perguntar aqui pra todo mundo e pegar os episódios que a gente fez análise de obras que representam da mídia, não houve nenhuma que acertou todos os pontos, sempre ficou devendo alguma coisa.

Tiago: Até amor no espectro que se propõe a ser um documentário teve seus problemas também né? Em questões de representação.

Paulo: Sim, exato.

Tiago: Eu gostei muito desse ponto que o Paulo trouxe sobre as produções culturais de autismo porque se a gente parar, algumas séries dos últimos tempos que representaram o autismo receberam muita crítica por ter o personagem autista e aquilo ser visto como uma representação geral do autismo. E aí o recurso que eles utilizaram foi incluir personagens secundários autistas pra interagir com esse personagem principal. Isso ocorreu em Atypical, isso ocorreu até em Good Doctor, isso ocorreu em Advogada Extraordinária que é mais recente. Isso pelo menos já dá um pouco mais de interação, principalmente se você tem personagens autistas que não conseguem verbalizar com muita facilidade ou que não são verbais, porque aí também há uma complexidade em termos de narrativa.

Vocês tocaram muito na questão da conscientização e aqui eu quero ser o chatão assim meio ranzinza e apontar para outro caminho. Porque eu acho que existe uma parte da comunidade do autismo que faz conscientização bem feita. A gente tem gente boa hoje falando as coisas certas sobre o autismo, entendendo a complexidade disso, mas elas são poucas pessoas, elas não necessariamente tem um grande alcance e muitas vezes elas ficam perdidas nesse mar de conteúdo superficial sobre o autismo que a gente vê nas redes.

O que se fala sobre autismo no Instagram é uma coisa, se fala sobre autismo no Facebook é outra. O que se fala no TikTok é totalmente diferente porque a gente tem diferentes públicos etários. E se você ir pro território do Twitter, meu Deus! Tem coisas que você vê lá, você quer morrer. São diferentes universos e as pessoas que sabem trazer informações boas sobre autismo ou pelo menos tem os conceitos corretos tem às vezes uma dificuldade de se comunicar com esses diferentes públicos ou chegar a grandes massas. Isso é uma coisa que realmente a gente tem que admitir.

Só que sobre a questão da romantização, eu quero apontar uma outra direção. Uma outra coisa que vocês não falaram. Particularmente, como eu tenho um ranço dessa ideia de romantização do autismo e eu acho que é uma palavra que significa muita coisa e acaba sendo genérico, a gente precisa especificar melhor qual é a nossa crítica. Eu acho que a gente tem que parar de falar sobre a romantização do autismo, criticar a romantização do autismo e especificar melhor qual romantização a gente está se referindo.

Por exemplo, existe a romantização da maternidade atípica. Que é aquela pessoa que chega assim: “ah porque a mãe de um autista é abençoada por Deus, porque ela é uma heroína, porque Deus escolheu ela pra dar um grande desafio”. Sabe quem fez isso muito bem? Porque essa crítica, muitas mães atípicas já fizeram. Mas tem uma pessoa que usou isso como uma plataforma e usou de uma forma muito inteligente que foi a Andréa Werner, que agora é deputada. E ela bateu muito nessa tecla em entrevistas, posts públicos, em live, combatendo a romantização da maternidade atípica. Ela até fala especificamente essa expressão. E eu acho que isso dá mais especificidade. Que aí você sabe o que que você está criticando. Muito diferente da “romantização do autismo”.

Tem outra romantização na comunidade do autismo que pra mim é muito concreta e que geralmente não se que é a romantização da comunicação alternativa. Tem muitos autistas na internet que só faltam dizer que o problema do mundo é a falta de comunicação alternativa dos autistas. Você dá comunicação alternativa para todos os autistas, aqueles que não se comunicam, e pronto. O mundo está resolvido. Como se fosse uma coisa da noite pro dia, entendeu? Isso é um desserviço sobre a comunicação alternativa e sobre essas questões. Eu acho que é muito mais válido a gente especificar sobre qual romantização a gente está falando que aí a gente consegue lidar com uma frente muito melhor, entendeu?

É um desafio, o espectro é amplo, as pessoas estão chiando, muita gente quer a volta dos diagnósticos separados, mas eu acho que é isso que a gente vai ter que lidar, entendeu? Está achando ruim? Veja que o futuro da comunidade do autismo já está batendo na sua porta no presente. Agora são pais e mães de autistas se descobrindo autistas. Agora a porteira está aberta. Dificilmente a gente vai voltar pro cenário anterior (risos).

Michael: O principal ponto do Tiago eu acho que é muito válido, cara. Quando se fala de romantização, isso é realmente um termo muito genérico. Quando você tem essa caçada às bruxas, quando você não tem um alvo muito físico, acaba que você fica batendo em espantalho. Acaba que o que você tem é batista brigando com autista.

Tiago: É, no final das contas está lá o autista só falando da sua vivência que ele não quer morrer, que ele não quer se matar, que ele está minimamente feliz com a vida dele e aí um monte de gente aponta o dedo pra ele e fala assim: “mas você não pode falar isso porque autismo é uma tragédia!”. Então acaba sendo uma questão bastante complicada. As pessoas não têm nenhum direito mais de serem felizes, sabe?

Michael: Inclusive pra você chegar… Nossa, o Tiago vai adorar eu falar isso. Você chega a esse absurdo né? Você tem a romantização das coisas ruins que acontecem com a gente. Não, porque a vida tem que ser uma tragédia. A gente tem que viver de Nietzsche a Edgar Allan Poe, porque senão não é autismo.

Tiago: Então no final das contas, o que a gente pode considerar: é analisar as questões sociais, ver tudo isso, ver a complexidade do autismo e entender que as pessoas vão ter diferentes percepções e que não necessariamente isso tá ligado a uma definição do que o autismo é e mais do que a pessoa vive. Inclusive, o episódio da próxima semana vai se chamar O lado bom do autismo e aí vocês vão saber o que que a gente vai falar nele. Então, até semana que vem.

Site amigo do surdo - Acessível em Libras - Hand Talk
Equipe Introvertendo Escrito por: