Introvertendo 248 – Autistas Trans

Cecília Santos e Noah Muccillo são autistas e trans, e suas experiências com o autismo e a transgeneridade envolvem questões pessoais e sociais. Neste episódio, Luca Nolasco e Tiago Abreu recebem Cecília e Noah não só para falar sobre essas vivências, mas também trabalho, interesses e como a comunidade trans e a comunidade autista recebem pessoas trans. Arte: Vin Lima.

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Transcrição do episódio

Luca: Sejam bem-vindos ao podcast Introvertendo, um podcast sobre autismo. E hoje sou eu, Luca Nolasco, que vou apresentar de novo.

Tiago: Meu nome é Tiago Abreu, sou jornalista, um dos integrantes aqui do Introvertendo, e autista bom é autista que apoia a comunidade trans.

Luca: E o episódio de hoje é sobre autistas trans e temos dois convidados maravilhosos.

Cecília: Olá, eu sou a Cecília, conhecida como Cecihoney, e eu sou uma moça trans, albina e autista, trabalho com desenvolvimento de jogos, parte de arte.

Noah: Eu sou o Noah, eu sou um homem trans, autista de nível de suporte 1. Eu estou estudando psicologia e eu tenho uma página de desenho no Instagram que eu basicamente não posto, mas se alguém quiser seguir, eu sempre aceito.

Luca: Lembrando sempre que Introvertendo é um projeto feito por autistas e produzido pela Superplayer & Co.

Bloco geral de discussão

Luca: Como foi que vocês se descobriram autistas? Como foi esse processo? Pra você Noah, como é que foi?

Noah: Eu passei a minha infância toda como uma lindíssima criança cis. Eu comecei a entrar numa crise existencial que eu não sabia absolutamente porquê que estava acontecendo e foi piorando, piorando, piorando. E no final do ensino médio eu resolvi depois de 50 cortes de cabelo diferentes que eu queria cortar o meu cabelo curto. Aí eu cortei o cabelo, eu me olhei no espelho, aí eu percebi que eu era trans. Inicialmente eu achei que eu era não binário, mas acabou que realmente eu percebi que é isso, eu sou homem e foi um rolê, foi um grande rolê até eu chegar a essa conclusão.

Luca: E o diagnóstico de autismo concomitante a essa época, foi muito depois, muito antes?

Noah: Ele veio correlacionado a isso, porque no meio dessas crises existenciais, eu ficava tipo: “cara, será que eu não me ajusto porque eu tenho alguma coisa? Ou, sei lá, porque eu, porque eu sou assim”. A resposta é: os dois. Entrei na faculdade de psicologia. Foi a primeira vez que eu realmente vi sendo falado sobre autismo sem uma coisa de estigma tão forte assim, tipo, bater cabeça na parede, sabe? Eu acabei fazendo avaliação neuropsicológica aos 19 anos, eu fui diagnosticado como autista depois de muito tempo lutando pra conseguir uma avaliação que eu conseguisse pagar. O fato de eu ser um homem trans me ajudou a pelo menos tirar uma parte da incompreensão que eu tinha sobre como eu sou, porque uma parte é eu sou trans, a outra parte eu sou autista e tem a geleca no meio.

Luca: E pra você Cecilie, esse processo veio assim como meio misturado, foi separado, como que foi?

Cecília: Tanto a minha transição quanto o meu diagnóstico foram bem tardios. Fui a criança nerd, esquisita com poucos amigos ou muitas vezes nenhum, sofria bullying era usada excluída na escola, só que por ser albina tanto eu quanto principalmente minha família, tanto meu pai e nós conversamos outro dia que ele falou que ele nunca suspeitou de eu ser trans nem autista porque ele achou que todas as minhas diferenças era por ser albina e ser discriminada pelo albinismo.

Só que assim, eu tinha algumas questões muito peculiares. Então além da própria questão de ser muito nerd e ter uns hiperfocos muito fortes de desenhar, sempre gostar muito de anime, tokusatsus, aquele seriado japonês desde criança e ser muito zoada por isso. E na adolescência isso obviamente ficou pior, eu chamo minha adolescência de meu primeiro inferno e aí eu passei a fazer um masking, não um masking com relação ao autismo, masking de gênero a partir do meus 20 anos assim, de tentar parecer masculina. E isso meio que funcionou um pouco. Só que aí foi foi batendo várias coisas, fui começando a sentir que aquela situação… ah, talvez se eu fizer um cosplay num evento de anime seja legal.

Em 2011 eu comecei a minha transição, eu entendi que o era trans, eu descobri que eu era trans. Comecei minha transição e em 2016 eu comecei a fazer terapia por questão de relacionamento. Porque entre toda essa zoeira da minha vida, principalmente a parte que eu falei de “ah você é muito zoada”, ser a piada da turma e tudo mais só me trouxe um bocado que mesmo eu começando a ter relacionamentos na minha vida, eu sempre era muito insegura, muito instável, daquela coisa de você tomar o fora e a pessoa, “ai, mas você não é operada e você não vai operar? Ah, então eu não posso lidar com isso, desculpa”. Ou então com os cara, nossa, tipo, o cara ouvir minha voz e sumir assim, dar ghosting.

E aí nessa de procurar terapia, o meu terapeuta percebeu que assim, diante das minhas inseguranças, diante de tudo, de padronizar muito nos meus relacionamentos, eu tinha muito medo. A pessoa mudou o jeito, a pessoa me chamou de um jeito que não é o que ela me chama todos os dias. Nossa, ferrou, a pessoa vai me largar, ela vai me trair, ela vai me esfaquear, enfim. E aí ele falou: “e se eu tivesse que você é autista?”. “Oi?”. “É”. E aí eu falei: “tá talvez seja” e isso foram dois terapeutas atrás. Foi muito bom. Eu gostei muito do diagnóstico. Ele me orientou bastante coisa, mas eu fui seguindo. Parei com a terapia com ele, entrei com o terapeuta e agora ficou mais uma terapeuta (risos).

Então foi basicamente isso, aí foi um diagnóstico já com meus 38 anos porque com todos os outros problemas, a última coisa assim tipo ah tá autismo, legal, legal, então (risos). Mas as outras coisas meio que mascararam a questão do autismo.

Tiago: Achei muito interessante os relatos de vocês e até fazendo o link com o episódio que saiu na semana, passada mesmo pertencendo a letras diferentes dentro da sigla LGBTQIA+, muitas histórias são parecidas. O quanto nós fomos punidos ao longo da vida, seja nosso jeito de se portar, seja pelos interesses, aí isso também se cruza com a questão do autismo enquanto deficiência. Então acho que isso faz um link muito forte com o que a gente discutiu semana passada sobre as relações do capacitismo que a LGBTQfobia.

Só que quando a gente geralmente discute autismo, muita gente, principalmente quem não é autista, pensa no autista como “o autista”. Tipo, a vida da pessoa é ser autista. E a gente tem profissão, a gente tem interesses, a gente tem uma série de questões e o autismo acaba se entrelaçando com esses aspectos, sobre a forma de nós nos relacionarmos como a Ceci falou, sobre a questão do trabalho, então eu queria saber o seguinte: sobre a identidade de gênero de vocês, isso dialoga de alguma forma com o trabalho ou com a área de estudo que vocês exercem?

Cecília: Eu acho que sim, de uma certa forma. Eu costumo teorizar… Até outro dia eu vi um meme que fala que tem as meninas trans que são nerd gamer tudo mais, tem as meninas trans que não são. É muito comum quando você não cai no padrão. A gente está dentro daquela coisa: você tem que viver como um menino, mas ao mesmo tempo você não quer sair jogar futebol, não quer competir, não quer sair num confronto físico porque você não tem identificação com os aspectos “masculinos”. E aí isso obviamente assim me elevou assim como leva muito as meninas trans por caminhos profissionais dentro da área de arte ou tecnologia. Ou no meu caso, as duas coisas. Porque eu trabalho com a parte de arte para games, mas ainda é dentro do game dev, então ainda é a arte dentro de um ambiente tecnológico.

Eu comecei a fazer pixelart com 10 anos de idade, primeira vez que meu pai trouxe um computador pra casa, eu já desenhava. Aí disse, espera aí, dá pra desenhar nesse negócio aí? Deixa eu ver. Aí eu peguei, usei o Paint do DOS e fiz um caminhão. Aí todo mundo ficou: “nossa, um caminhão, legal” e tal. E aí eu comecei a mexer quando tinha oportunidade em algum lugar que tinha computador porque meus pais se separaram, nem sempre tinha acesso. Comecei a mexer, aí comecei a gostar de games, aí eu falei: “eu quero trabalhar com games um dia”. Não fazia a menor ideia. Nesse meio tempo passei por TI, dei aula de mangá em casa, fiz quadrinhos, vendi quadrinho em evento, tudo essa coisa nerd ligada a arte assim eu estava lá. E aí eventualmente comecei a frequentar fóruns de RPG maker. Já estou há mais de 14 anos trabalhando na área de games como freelancer. Trabalhei um pouco com CLT no ano passado na Pipa Estúdios, agora voltei pros freela. Estamos aí. Caçadora de recompensa aqui do Star Wars é nóis (risos).

Noah: Eu não entendia as pessoas, então eu sempre quis entender, compreender porque elas eram assim, porque as reações vinham do nada e eu não conseguia dizer o que elas estavam sentindo direito, porque que isso aconteceu, qual era sentido. Eu sempre meio que fui terapeuta das pessoas, sempre fui muito analítico com relação a comportamento e acabou que quando eu tive idade o suficiente pra escolher, eu até tentei, fiz curso técnico de comunicação social e tudo e tudo mais, mas o que eu realmente gosto é psicologia.

E eu comecei a graduação de Psi, inclusive o meu TCC é justamente o tema do episódio de hoje, sobre a interseção entre ser autista e ser trans em uma sociedade em que tudo é muito encaixotadinho. Como bate nas pessoas? O que significa isso? O que significa ser parte de uma interseção? Eu acho que eu me construí enquanto psicólogo ao mesmo tempo em que eu me construo como autista e como trans e eu entro em acordo com isso. E eu espero continuar progredindo, progredindo não no sentido de cura, mas me ajudar a ficar bem.

Luca: O Noah trouxe agora a questão de o mundo ser muito padronizado. E ser autista e ser trans são coisas que acabam fugindo de certa forma dos padrões impostos, como que vocês viram na comunidade que já é autista a receptividade a pessoas trans? Mais ainda do que isso. E pessoas que não são autistas, são os parentes de autistas, pessoas que são muito ávidas na comunidade de pessoas com deficiência. Mas elas também dão ouvidos às pessoas trans? Pra você, Cecília, como é toda a sua experiência? As pessoas autistas são receptivas, não são receptivas, como foi?

Cecília: A gente vive num mundo onde foi ensinado, foi colocado como dogma pra gente, que você é do jeito que você foi ao nascer. Diagnosticado no sentido de gênero que você foi determinado. Então foi determinado homem ao nascer ou mesmo determinada mulher ao nascer, é mulher e acabou. O que isso significa? Isso significa que para fins práticos social tem muita gente que já aprendeu que as coisas não são assim. A gente aprendeu que as coisas não são assim, decidiu transicionar. Mas é muito difícil, tanto no nosso subconsciente, e eu teorizo e aí talvez até o Noah, possa falar melhor porque ele é da área, é que muito do que a gente sofre de disforia… não tudo, mas uma boa parte das disforias que a gente tem, vem justamente dessas coisas que estão no nosso subconsciente de que pra ser homem tem que ser X, Y, Z coisas, para ser mulher você tem que X, Y, Z coisas.

Eu hoje minha única euforia com a minha voz, eu não estou fazendo a minha melhor voz porque eu ia falar bastante. A minha melhor voz eu não consigo falar muito com ela, que seria tipo essa voz pra mim, eu só falaria com essa voz, essa voz pra mim não é perfeita, mas é aceitável, mas se eu fizer essa voz aqui eu fico disfórica. Na hora que ouvir o podcast vou ficar, mas não deveria ser assim. E é assim por quê? Porque a gente é bombardeado culturalmente com uma referência.

Eu uso muito vestido rosa, eu uso muito lacinho, em parte porque eu não pude ter sido a menina que gostaria de ser na infância, então eu vivo muito isso hoje na fase adulta e bom é o que eu posso fazer. Só que aí você olha as personagens por exemplo na ficção, filme, anime e etc, que tem esse tipo de visual, tem uma voz muito mais fina, muito mais aguda e muito mais suave que a minha. E isso me dá disforia. Então da mesma forma, voltando aqui pra sociedade, é natural que mesmo quando as pessoas aceitam a gente, se você entra num banheiro feminino é comum que as meninas tenham uma reação. E não é uma reação porque ela é transfóbica, ela não gosta de estar… Não! Ela simplesmente talvez nunca esteja ou esteve poucas vezes com garotas trans no banheiro, na sociedade foi ensinado pra ela que uma menina trans é um homem. É tipo: “entrou um homem no banheiro”, esse é o comando que o subconsciente manda pra pessoa.

Então o que eu quero dizer é, tanto no meio autista quanto no meio externo, eu sinto muito isso. Existe hospitalidade, existe o acolhimento. Uma ou outra pessoa que é deliberadamente preconceituosa seja por uma questão religiosa ou por alguma limitação de crença qualquer e existe também a pessoa que é preconceituosa por ignorância. Essa geralmente dá pra você conversar, você explica a coisa a pessoa “ah agora eu entendi que é assim, desculpa” e tal. Mas previste o preconceito institucionalizado que é: a pessoa é legal, ela entende, ela sabe que é o que é uma pessoa trans, só que ela vai dar algumas gafes, ela vai dar algumas mancadas. E às vezes é algo que a própria pessoa se corrige ou algo que normalmente passa despercebido pra gente, pra quem já está acostumada, serve para: Eu sei que a pessoa está sendo legal comigo, mas que ela não me vê como mulher de verdade. A pessoa está me respeitando, mas no subconsciente dela ela não me vê como mulher de verdade.

E isso eu vejo em todos os meios, em todos os lugares e é aquela coisa que não dá pra você desver. Tá lá, não é culpa das pessoas pontualmente, é culpa da gente viver numa sociedade e eu sempre falo, talvez eu não esteja viva pra ver uma sociedade onde esse subconsciente das pessoas vai estar totalmente limpo. Eu não acho que o meu subconsciente vai estar limpo o suficiente até o fim da minha vida pra eu acordar um dia e falar 100% assim que eu sinto que eu sou uma mulher como todas as outras. Já vivi o suficiente dentro dessa lavagem cerebral normativa, sabe? Imagina as pessoas que são cis que não tem que viver tudo isso. É uma coisa que me deixa muito triste mas que eu tento lidar todos os dias e tento ajudar quem eu posso no meio do caminho também que está passando pela mesma coisa.

Luca: E pra você Noah? Você chegou a ver pessoas com deficiência, especialmente autistas, não sendo receptivas a pessoas trans? Comunidades autistas específicas ou algo assim que explicitamente tratavam mal? ou sua experiência foi mais neutra?

Noah: A minha experiência com a comunidade trans foi muito boa porque eu tive a sorte de encontrar um Discord em que existiam pessoas trans já, existia algum tipo de processamento sobre: “olha gente, não existe só cisgênero no mundo”. Mas eu não diria que isso acontece para todo mundo , isso foi uma exceção e inclusive fora dessa comunidade autista, com os meus pais, com as pessoas ao meu redor era sempre uma coisa de: “mas você é autista então você não pode ser trans. Você é trans, você não pode ser autista”.

Eu percebi que a comunidade trans com relação a neurodivergência é muito mais como é que eu posso dizer? “Eu te aceito, mas eu não te conheço, eu não quero te conhecer”. Tudo bem você falar, “ah não, eu aceito pessoas neurodivergentes na comunidade LGBT”, mas você realmente entender o que isso significa, incorporar isso e saber que uma pessoa autista tem dificuldade de comunicação e facilitar os espaços pra ela não é uma coisa que acontece. É difícil.

Inclusive muitas pessoas LGBT que foram capacitistas comigo e é um saco porque não deveria ter essa essa diferenciação tão grande. Porque ou por um lado você é uma pessoa que não se encaixa por ter diversos aspectos de uma deficiência, um transtorno de neurodesenvolvimento, e pelo outro lado você não se encaixa porque você não consegue se adequar a uma norma socialmente implícita, que é a coisa do papel social e tudo mais. E pra mim essas duas coisas casam muito. Eu acho que em qualquer lugar tem transfobia, tem capacitismo.

Uma coisa que a Ceci falou e eu concordo muito é, a gente é visto, mas não é enxergado, sabe? A gente é enxergado só até o ponto onde é conveniente pras pessoas. Uma pessoa que eu já entrevistei me falou uma coisa que eu achei muito contundente em relação a isso, que é você ter um amigo em cadeira de rodas. Você agita um rolê, chama todo mundo, só que você mora num lugar onde não tem elevador. Você vai chegar pra pessoa e falar: “ah, então, você não pode ir no rolê, porque você tá de cadeira de rodas” e ninguém se dispõe a ajudar. Ninguém se dispõe a mudar o local do encontro.

É basicamente assim que a comunidade trans e a comunidade autista recebem pessoas que estão nesse meio assim, principalmente aquelas que estão se entendendo. Porque eu tive a sorte de chegar e falar: “olha eu sou homem trans, eu quero ser chamado assim dessa forma” e ser acolhido. Mas se eu ainda tivesse no meu momento de questionamento? Eu acho que sofreria muito mais do que eu já tinha sofrido como me assumindo como uma pessoa trans e principalmente como uma pessoa autista no meio em que eu vivia.

Tiago: Eu acho que tanto dentro quanto fora da comunidade do autismo nós temos esse desafio porque a comunidade LGBTQIA+ tem seus próprios códigos, as suas regras e ser uma pessoa com deficiência, com impactos na interação social, acaba sendo bastante desafiador. A gente falou isso no episódio da semana passada. E a comunidade autista também é muito plural. Existe uma parte da comunidade do autismo que é mais por exemplo do Instagram, tem outra que é mais do Discord. Inclusive Lili do Lógica Autista, muito obrigado pela ajuda aqui nesse episódio. Um abraço especial pra você.

E a gente sabe que alguns espaços são mais inclusivos do que outros. Os espaços que tem mais familiares de autistas ainda impera muito aquela ideia do anjo azul, da infantilização do autismo. Então só pensar que uma pessoa autista pode não ser hétero, já é um negócio assim que explode a cabeça deles, imagina quando você vai discutir identidade de gênero, né? E isso acaba de certa forma talvez influenciando muitos autistas que vão talvez se prender mais nessas caixinhas.

Aqui no Introvertendo nós temos uma audiência plural, familiares de autistas, profissionais, pessoas autistas de todas as formas, pessoas não binárias, pessoas cis e a grande questão que eu pergunto pra vocês é: caso uma pessoa autista que esteja ouvindo esse episódio agora e esteja lidando com a possibilidade de ser trans, o que vocês diriam essa pessoa fazer ou de alguma forma encarar isso daqui pra frente?

Noah: Eu diria principalmente sobre a coisa da disforia que a Ceci falou, bateu exatamente numa tecla do Bruno Pfeil, que é um dos criadores de uma revista transmasculina que é muito voltada pra área da arte, da psicologia, mas vale a pena ler porque é muito bom e ele foi a primeira pessoa que mencionou essa questão pra mim. Porque antes pra mim disforia era apenas um fato, entendeu? Você tinha que ter disforia pra ser trans, mas não necessariamente você precisa. Porque a disforia, pelo menos na minha opinião, acaba sendo um processo de sofrimento que acontece por conta dessa normalização de papéis. Esse sofrimento pode vir em uma pessoa cis ou uma pessoa trans, mas a pessoa trans sente muito mais. Porque é uma pessoa que, para além de qualquer aspecto mental, também tem o seu espaço no mundo como um espaço “anormal” pra todo mundo.

Por exemplo, eu vou no banheiro toda vez, toda vez que eu vou no banheiro em qualquer lugar, um homem vai lá, me olha, sai do banheiro, olha a placa do banheiro para checar se é o masculino de verdade, olha pra mim e fala: “eu acho que cê tá no banheiro errado”. É esse tipo de coisa, é realmente uma anomalia no universo. Porque as pessoas não conseguem lidar, isso gera esse sofrimento.

E talvez para outras pessoas que estejam ouvindo, principalmente pessoas autistas, às vezes o que conta mais é como você se sente bem com quem você é. Eu só me descobri trans por me olhar no espelho depois de cortar o cabelo e falar: “cara, eu acho que eu nunca me senti tão bonito, tão feliz”. E principalmente agora com essa voz de taquara rachada que eu estou do início da transição… é a minha voz de taquara rachada, entendeu? E eu fico profundamente feliz, eu fico alegre de uma forma que eu nunca tinha ficado antes, porque eu sempre tive problemas com depressão e ansiedade.

Acho que o meu conselho é buscar, identificar sim os sofrimentos, o que causa essa dificuldade de se identificar. O que que te traz dor, mas principalmente o que te traz felicidade. Porque o gênero é uma coisa completamente abstrata. Você pode ser binário ou não binário, mas o importante é você saber que independentemente de qualquer coisa você precisa ser feliz. Se você gosta de usar maquiagem, se você gosta de usar laço, de usar brinco. Se gosta de usar barba e misturar tudo que nem eu. Está tudo bem. Porque faz parte. A gente não precisa ser aquele homem de barba que fala “e aí mano” e fica querendo brigar com os outros. E nem precisa ser aquela menininha com voz de anime, que anda de salto, que está sempre de maquiagem. A gente pode ser a gente, sabe? Eu espero que quem esteja ouvindo consiga entender o que eu estou querendo dizer e se alguém tivesse me falado isso talvez eu estivesse tido um pouco menos de crises identitárias quando eu estava no meu processo de descobrimento.

Cecília: Eu queria pegar justamente dessa parte também sobre ser a gente mesmo independente da normatividade. É lógico, como eu falei na minha fala anterior, não é fácil. Tem muita coisa que está na nossa cabeça, não tem muita coisa que eu vou querer fazer de tal jeito ou tem coisa que você já quer e desde criança você já achou que tinha que ser daquele jeito. E aí entra toda essa questão sobre a disforia ser algo doloroso. E nem sempre é. Tem coisa que você consegue [lidar], como foi a questão genital por exemplo.

Eu sou uma pessoa que no primeiro momento pensei: “quero operar”. Mas eu percebi que era só por uma questão de conveniência social, do tipo: mais fácil de ser aceita, né? Porque já aconteceu de pensar, “ah não quero namorar com você porque você não operou e nem pretende operar genital”. Mas tudo bem, não vou insistir nem nada, mas lógico, você fica triste, né? É muito sobre ser a gente mesmo, tem ainda um pouco que o Noah falou essa questão da roupa, né? O meu namorado ele fala que roupa é só tecido. Eu acho isso muito legal porque ele é estilista, então isso é muito legal.

Pra mim pelo menos na parte de roupa, curiosamente eu já sou mais tipo: gosto de andar bem menininha, com lacinho e com vestido. Mas eu ando com um nunchaku na bolsa. Eu tava mostrando meu namorado a foto da minha bolsa e minha bolsa é uma bolsa rosa de unicórnio e dentro dela tem um soco inglês e um nunchaku (risos). São coisas que a gente for pensar… Uma vez num debate sobre feminismo, alguém perguntou: “como é que você lida com o machismo, com a transfobia?” e tal. Foi um debate na loja Monster da Meninas Nerds, aqui em São Paulo, que eu estava. Aí eu peguei e abri minha bolsa tranquilamente tirei o nunchaku e mostrei pras pessoas e eu falei: “é com isso aqui”. Todo mundo meio que dá uma afastada na hora foi muito legal o momento todo mundo “caramba”. E ninguém esperava justamente por conta de ser simpática, ter um jeito mais fofo e tudo e aí quando eu mostrei as pessoas ficaram chocadas.

A mesma coisa vale pra um dos meus maiores hiperfocos, que é robô gigante. Eu tenho uma coleção de robôs gigantes, model kits, que monto desde muito antes da transição, eu gosto de games, adoro Super Robot Front Mission, toda a série Mega Man X, essa parte de máquina na ficcção, gosto de um Final Fantasy, gosto de magia, sou bruxa, mas eu gosto muito dessa coisa de tecnologia de ficção, Star Wars, tudo mais. E normalmente são coisas que as pessoas não costumam ver de mãos dadas. As pessoas costumam imaginar isso em polos separados. Minha mãe veio perguntou pra mim e falou: “ah, mas como é que você quer ser uma menina se você gosta de Transformers, se você gosta desses carro, coleciona miniatura de carro também”. Falei: ué mas uma coisa não exclui a outra. Então é muito sobre isso.

Às vezes a gente transiciona e a gente quer largar coisas importantes pra gente, até os nossos hiperfocos. Meus primeiros seis meses de transição meio que dei uma surtada de virar as costas pra todos os hiperfocos que eu considerava “masculinos” e eu queria ser tipo a menina loirinha patricinha. Em parte eu sou (risos). Tenho o lado fofo, rosa, menininha, mas tem o lado extremamente combativo o lado de adorar a história com guerra. Então não, você não tem necessariamente que escolher A ou B e isso não necessariamente também quer dizer seja uma pessoa não binárie.

Eu por exemplo eu me considero uma garota trans binária mas eu tenho esses traços que eu acho que pra muita gente deve confundir. Por exemplo, eu malho, eu já fiz kung fu. Então quem me vê toda de lacinho e vestido, mas aí a pessoa olha o meu braço… E eu não malhava antes da transição, eu era extremamente magra, eu era muito magra. Foi o que eu decidi fazer depois da transição justamente porque eu estava me sentindo tão tranquila em relação a ser vista como mulher, não da forma que eu gostaria mas pelo menos de eu olhar no espelho e falar “tu é uma menina bonita”, eu falei não tem problema eu ser uma menina bonita forte. Eu gosto disso tanto por achar legal visualmente quanto por essa questão combativa mesmo de se acontecer alguma coisa defendo eu, defendo meu namorado, defendo minhas amigas e bora! Quero ver quem vai quem vai tankar, sabe?

Requer também uma certa aceitação de que nem tudo vai poder ser como você gostaria. Tem coisa que você vai querer que não é questão da minha voz, ou da minha altura, tenho 1 metro e 75. Comecei o kung fu e agora o meu namoro também me ajudaram a aceitar um pouquinho melhor a minha altura, mas eu era muito complexada com isso. Então nem tudo vai ser como a gente quer, mas se você puder mudar algumas as coisas que você pode mudar e puder olhar pra isso e falar: “pô, que daora, muito bom, sabe?” É meio que isso, é entender que nem tudo vai ser ideal, mas você pode ter o seu mundinho, o seu pedacinho.

Pra gente que é autista às vezes isso é até bom porque dependendo de como você lida com os filtros sociais eu pelo menos consigo hoje andar na rua e não ficar prestando atenção em todo mundo que está olhando pra mim. Eu consigo dar uma palestra na frente de um monte de gente, um workshop e também olhar pra multidão, mas não ficar olhando pra cara de cada pessoa. “Ah, essa pessoa está me reprovando”, sabe? Então é uma coisa que o antigo terapeuta falava que às vezes a gente aprende a usar o autismo para mitigar dificuldades que o próprio autismo ou outras questões da gente trazem. Então é isso, às vezes é pensar um pouco estrategicamente como é que tu consegue usar as vezes até algo que é uma dificuldade para mitigar outra dificuldade depende da situação. E é isso e boa sorte e carinho aí pra todo mundo.

Noah: Me identifico muito pelo meu lado porque eu também no meu início eu queria fazer operação para tirar as mamas, só que cara eu comecei me olhar no espelho e falar: “cara gosto de ser um homem com o que eu chamo de saquinho de Nescau”, sabe? (risos) Porque faz parte do que é ser homem pra mim. Eu sou esse tipo de homem. E se fosse um homem obeso com peito de gordura também. É isso, faz parte. Eu acho que é muito isso, sabe? Você pode ser muito masculino ou muito feminina, o que você quiser. Desde que isso não te cause sofrimento. Tem muita coisa que eu gostaria que fosse diferente em mim, mas é a coisa de focar no que faz bem mesmo, assim. Você tem que visualizar, se enxergar de verdade. Tipo aquela coisa do Avatar, sabe, de “eu te vejo”. Se veja.

É bom todo mundo fazer terapia e ter uma rede de apoio que te ajude. Mas na falta disso, uma coisa que serviu muito pra mim é você ser o seu próprio porto seguro. Porque as pessoas vão ser violentas, vão ser incompreensivas, mas se você também dar corda pra isso dentro de você (não falando que é fácil não dar corda porque às vezes é até tentador porque você acha que merece isso, mas ninguém merece) você não se tem como aliado e isso é pior do que qualquer coisa, é pior do que qualquer violência que você possa sofrer na rua ou na sua casa ou na sua família. Porque é uma violência que você se inflige. É uma autoflagelação emocional.

Eu sempre gostei de coisas que são associadas ao feminino, principalmente pássaro, flor, eu gosto muito de design de roupa, eu gosto muito de coisas que são associadas ao feminino. E eu só comecei a assumir isso de verdade quando eu me entendi como um homem trans binário. E é engraçado, às vezes essa dissonância ela é mais agradável do que se você fosse por exemplo uma mulher cis que gosta de passarinho. Eu não sei, talvez seja a minha experiência como pessoa trans, mas eu gosto dessa dissonância. Inclusive um dos meus objetivos de transição é ter a barba fechada, ficar fortão e usar um vestido tipo aquele de lolly em uma uma feira de anime, qualquer coisa assim e a pessoa vai olhar pra mim e falar tipo: “nossa, que menina linda” e eu vou chegar com a voz grossana e falar, “e aí?” É isso. Felicidade.

Cecília: Maravilha.

Luca: Eu já quero agradecer muitíssimo pela participação de vocês dois. Pelo menos eu achei que o episódio foi maravilhoso, a conversa fluiu muito bem. E quero agradecer a quem escutou até agora. Muitíssimo obrigado, viu.

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