Introvertendo 246 – Casamento Entre Autistas

Há mais de 10 anos, Gustavo Borges conheceu Any por meio da internet. Ela é autista. Mas o que ele não sabia é que ele também era. Neste episódio, Tiago Abreu e o ex-integrante Otávio Crosara recebem Gustavo para falar sobre o seu amor, suas experiências com o autismo, a vivência do casal e bastidores curiosos do início do Introvertendo quando Otávio e Tiago faziam parte do grupo terapêutico na Universidade Federal de Goiás com Any. Foto: Arquivo pessoal. Arte: Vin Lima.

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Transcrição do episódio

Tiago: Olá pra você que ouve o podcast Introvertendo, que é o podcast mais autístico e mais romântico do Brasil. Meu nome é Tiago Abreu, eu sou jornalista, um dos integrantes deste projeto que é feito por autistas e eu me considero um nerdola romântico.

Gustavo: Meu nome é Gustavo Borges e eu me cerquei de tantos autistas que um dia os autistas me disseram que eu sou um deles.

Tiago: Hoje o tema é casamento entre autistas, vocês vão entender as razões, mas antes da gente falar sobre a pauta, nós temos um convidado que não é simplesmente um convidado, eu vou deixar ele se apresentar que vocês já conhecem ele.

Otávio: Olá a todos, quem fala é Otávio Crosara, faz muito tempo, mas o filho pródigo a casa sempre se torna.

Tiago: E se você tá conhecendo o Introvertendo agora, seja muito bem-vinda, seja muito bem-vindo, o Introvertendo é um podcast que fala sobre autismo semanalmente. Vale lembrar que o Introvertendo é um podcast feito por autistas com produção da Superplayer & Co.

Bloco geral de discussão

Tiago: Relacionamentos é uma temática que a gente já explorou bastante aqui no Introvertendo. Inclusive, nós temos alguns episódios marcantes, como o episódio de autistas e apps de relacionamento, que saiu lá em 2020, e em especial o episódio 79 – Namoro Entre Autistas, que foi um episódio bastante marcante na nossa história. Hoje a gente quer falar mais uma vez de relacionamento, mas não no âmbito do namoro, não no âmbito do flerte, mas agora em um outro nível, uma outra categoria que é na dimensão do casamento.

O Gustavo acompanha o Introvertendo há muito tempo, mas não só isso, ele é marido da Any, que fazia parte do grupo terapêutico de onde surgiu o Introvertendo. A Any nunca participou oficialmente do Introvertendo, mas eles de certa forma fazem parte do Introvertendoverso. Então, vou deixar ele se apresentar de uma forma geral, contando um pouco dessa, do início dessa história.

Gustavo: Bom, eu estou com a Any já tem um pouquinho mais de 10 anos e eu posso me dar o luxo de dizer que a gente se conheceu na internet numa era pré-Tinder, o que obviamente era muito mais difícil, e eu tenho inveja da facilidade com que as pessoas tem hoje. A forma como nós nos conhecemos eu considero um pouquinho inusitada. Eu tava navegando pela internet e me deparei com um site chamado Nerd Pride, ainda existe. Não está mais tão ativo mas ainda existe. E lá tinha o hábito de colocar o perfil de Nerd da Semana. E aí eu fiz o que qualquer pessoa sensata e normal faria. Eu fui olhando todos os perfis, todas as páginas, em busca de garotas que fossem na mesma cidade que eu, Goiânia.

Naquela época, eu a adicionei no Orkut. Jovens pesquisem isso, o Facebook não esteve sempre aí. E a gente conversava algumas vezes aleatoriamente, nada muito profundo, nada muito tenso, só bate-papo de alguma nerdice. E com o tempo o Orkut foi morrendo, a gente migrou pro Facebook, eu cheguei a chamar a Any pra sair algumas vezes, ela não topou por morar longe, por não ser algo tão interessante pra ela. E vamos ser honestos, autista não é lá tão interessado em conhecer outras pessoas no geral. Eu mesmo só estava interessado em conhecê-la porque ela era uma garota nerd.

Até que um dia a gente estava falando de um filme chamado Drive, que era um filme muito bom e muito ruim ao mesmo tempo. E o assunto passou pra cinema e aí a gente falou do Batman, que estava em cartaz, e ela acabou topando ir comigo assistir o filme do Batman. No caso, o Batman – Cavaleiro das Trevas Ressurge, o terceiro Batman do Christopher Nolan. Não é o melhor filme, mas tem um carinho aí por ter sido o primeiro filme que a gente viu juntos.

Eu cometi o absurdo de chegar atrasado. A rede de transporte coletivo de Goiânia não quis colaborar com meu amor, o ônibus não passou, eu cheguei atrasado, o filme tinha acabado de começar. Mas ela ainda estava dentro da sala de cinema e acenou quando eu cheguei, porque naquela época não tinha smartphones pra você ficar falando a todo momento onde você estava e o que estava acontecendo. Tempos difíceis… Mas a gente assistiu o filme, a gente sentou e conversou sobre uma banda de música nerd chamada I Fight Dragons e o resto é história. Estamos aqui até hoje.

Otávio: Há quantos anos vocês estão juntos?

Gustavo: Any e eu estamos juntos há 10 anos, quase 11. Nós namoramos por 3 anos, nós fomos morar juntos e um ano depois a gente casou no civil. Any e eu vamos completar 11 anos juntos daqui a pouco na data 7 de agosto que foi o dia que nós nos conhecemos, obviamente, data muito importante pra mim até hoje. Nós namoramos por três anos, fomos morar juntos, um ano depois mais ou menos que a gente estava morando junto, a gente fez um casamento no civil. E a data realmente legal e importante é que, quando a gente comemorou 10 anos juntos, aí a gente fez um casamento de verdade. Que foi bonito, foi bacana, a gente se divertiu muito. A gente chamou umas pessoas, inclusive o Otávio fez uma pequena participação lá.

Otávio: Pequena porque eu era o padrinho dele. Foi uma festa grande, uma festa assim que você não esperava que um autista estereotipado faria. Teve vários elementos tradicionais, mas você e o apreço deles, dos dois, em cada canto. É uma honra ter sido padrinho do seu casamento, é uma honra até hoje testemunhar o amor desses dois.

Gustavo: Isso tudo, na verdade, é inveja do Otávio porque eu joguei o buquê para os homens e ele não conseguiu pegar.

Otávio: Porque minha namorada mandou você não jogar na minha direção. Vocês dois vão negar isso até o final da vida… Tiago, você tira essa parte.

Gustavo: Por que? Eu ia contar justamente que fui eu que apresentei vocês dois e graças a isso você vai ficar em débito comigo pelo resto da sua vida.

Otávio: Sim, Gustavo no aniversário dele me apresentou a Jordanna, que eu mencionei sobre várias vezes.

Gustavo: Ela já apareceu no episódio próprio aqui.

Tiago: Episódio 55.

Otávio: É verdade. Nossa, faz tanto tempo que eu me esqueci disso. Dois meses depois a gente começou a namorar e estamos juntos há cinco anos. Muito obrigado e tire esse sorriso da sua cara.

Tiago: Cinco anos, ou seja, o tempo que o Introvertendo existe.

Otávio: Basicamente. Coincidência? Eu acho que não.

Tiago: Mas sobre essa questão do seu relacionamento, Gustavo, acho que o primeiro elemento interessante é a forma diferente que ele surgiu. Primeiro pela internet, por um blog, depois se encontrar pessoalmente, o que talvez não era muito comum à época. E é claro, depois teve outras atipicidades que são diretamente relacionadas ao autismo. Teve algum momento que você sentiu que a Any era uma pessoa diferente ou isso não existiu pelo fato de você ser autista mesmo não sabendo que era autista?

Gustavo: Eu acho que nem deu tempo. Primeiro tem essa questão de o que que eu considero não estranho numa pessoa. Todo mundo é pelo menos um pouco estranho do meu ponto de vista. E também tem o fato que a Any foi bem aberta comigo sobre isso. Já no segundo encontro ela sentou comigo e me contou que ela era autista. E eu simplesmente falei: “está bom”. Perguntei um pouco mais porque eu não sabia bem o que era isso, tinha uma noção muito superficial e deturpada de ver filmes como Rain Man e outras coisas nesse sentido.

Depois do encontro eu dei uma olhada na internet pra ver um pouco mais, aprender um pouco mais sobre isso e não me pareceu nada demais. E já que não era nada demais, não era um problema para poder manter a relação e dar continuidade na relação. Até porque eu também sempre me considerei bem estranho.

A gente saiu por umas três semanas e um dia, no ponto de ônibus, eu virei pra ela e simplesmente falei: “agora a gente tá namorando”. Piadas à parte, ela reclama até hoje de não ter sido pedida em namoro formalmente bonitinho.

Tiago: Olha, eu acho que esse tipo de coisa de não ter um momento de pedir em namoro é muito comum entre outras pessoas, mas ao mesmo tempo eu acho isso extremamente autístico. E eu particularmente acho muito estranho (risos). Eu particularmente gosto de ter a marca ali.

Otávio: Essa questão de pedir em namoro, eu lembro que dois meses depois eu queria mostrar a minha faculdade pra Jordanna, mostrar ela pros meus colegas de faculdade. Aí eu levei num simpósio sobre oncologia.

Gustavo: Que romântico Otávio, que romântico.

Otávio: Exatamente. Eu estava apresentando ela como ainda não minha namorada. A brincadeira que eu fiz, eu não gostei. Falei: “Jordanna, espera um pouco, vem aqui por favor. Não tô gostando disso. Quer namorar comigo?”. Ela disse sim, desde então nós temos namorado de forma consentida, ao contrário de certas pessoas.

Tiago: Então, o diagnóstico da Any já vem de bastante tempo, o que é até algo incomum quando a gente fala sobre mulheres autistas e a sua descoberta sobre o autismo vem posteriormente. A partir de que momento da sua vida você começou a pensar: “será que eu sou autista?”

Gustavo: Então, a Any foi diagnosticada já na idade adulta. Ela queria saber o que se passava, o que estava acontecendo, por que ela era como ela era e foi buscar ajuda e acabou sendo diagnosticada como autista. Mas isso foi antes de eu a conhecer. Agora já sobre eu me considerar autista, teve um fatídico dia do qual eu rio muito que eu chamei um pessoal pra poder ir numa pizzaria e na época foi a Any, a gente já estava morando junto, um veterano meu de faculdade e o Otávio. E cada um era de um contexto muito diferente. O Otávio, por exemplo, eu conheci uma única vez anos antes de conhecer a Any numa festa de aprovados do vestibular. A gente se deu super bem na ocasião. Só que aí ele foi fazer faculdade em outra cidade e a gente nunca mais falou por vários anos.

No caso eu peguei o celular da Any e aí eu mandei uma mensagem para as pessoas do Saudavelmente que eram um grupo de apoio na UFG para pessoas dentro do espectro autista o qual ela tinha começado a fazer parte e quem respondeu a mensagem falando que topava aí foi apenas o Otávio. E aí enquanto a gente estava lá na pizzaria, o meu veterano de faculdade perguntou pra Any e pro Otávio da onde é que eles se conheceram, eles explicaram a questão do Saudavelmente e aí ele só falou: “poxa, na minha época não tinha isso”.

E aí, nesse momento, o meu amigo de alguns anos se assumiu como autista pra gente. Eu não fazia ideia. E aí os três começaram a falar que eu era um ímã de autistas, que eu também era autista, mas ficou por isso mesmo. Eu não dei procedimento na hora, não fui tentar descobrir se eu era naquela mesma hora. Na época eu até pensei um pouco nisso, será que eu sou? Será que eu não sou? Acabei deixando isso um pouco de lado.

E aí um tempo depois, o acompanhamento psicológico depois, resolvendo algumas questões mais urgentes depois, eu passei a me questionar se eu realmente era. E olha só, eu era. Pra eu me aceitar como autista, foram uns três anos depois disso. Pra eu conseguir o laudo de fato, já devia estar junto com a Any há uns oito anos, quase nove. Tive umas conversas, separei um dinheiro e aí eu fui diagnosticado por uma neuropsicóloga.

Eu tenho um pequeno problema que eu não sou o autista mais típico ou o autista mais padrão e isso dificulta um pouco o diagnóstico e até algumas pessoas acreditarem no meu diagnóstico. Ao ponto que o meu psicólogo não acredita que eu sou autista. Já tive algumas conversas com ele, já cheguei a mostrar o meu laudo. Não deu. Mas como ele já me ajudou em várias questões, eu continuo indo lá. Continua funcionando para mim.

Tiago: E Gustavo, então, no caso, considerando a linha do tempo, o seu diagnóstico formal ele foi durante a pandemia já.

Gustavo: Sim, foi durante a pandemia já, foi em 2021. Foi agorinha, agorinha mesmo. Situações se alinharam, porque deu pra fazer o teste e a Any teve que fazer mais alguns testes e nele se comprovou que além de autista, a Any tem transtorno de déficit de atenção. Aí como a situação tava um pouco mais propícia e a Any gostou da profissional que fez a avaliação dela, eu acabei sendo avaliado por essa profissional também. E nisso, no final, ela concluiu que eu também sou autista.

Tiago: Vocês vem de um relacionamento muito sólido de uma década. Então imagino que muitas coisas já são intuitivas dentro do relacionamento. E também é intuitivo ver os defeitos um do outro. Quais são os principais percalços e desafios do relacionamento de vocês?

Gustavo: Nossos percalços eu diria que são bem variados. Tem coisas do autismo de cada um, tem coisas que qualquer casal tem. Eu sou uma pessoa que não se preocupa muito com limpeza de casa, pra mim o básico já tá excelente. A Any acaba preferindo a casa um pouco mais limpa. Isso gera alguns atritos de vez em quando. Nós dois somos pessoas apegadas a rotina e quando um dos dois quer sair da rotina, isso acaba sendo um problema.

Por exemplo, eu deveria levar a Any pra poder sair mais, pra poder passear mais. Uma coisa é que se dependesse de mim eu ficava só de casa e estava feliz com isso. Mas a Any é uma pessoa diferente em mim e ela precisa sair mais do que eu, interagir mais do que eu. Períodos de ajustes, das vezes que a gente teve que mudar de casa, até a gente vim parar no apartamento que a gente tá atualmente e os estresses que isso gerou.

Eu não jogo a toalha em cima da cama pelo menos, eu levanto a tampa da privada, eu lavo a louça, mas eu tenho ciência que eu tenho que fazer bem mais do que isso pra poder ficar uma divisão apropriada e igualitária.

Otávio: Na nossa perspectiva de terceira pessoa, eles tem uma sincronia muito boa. Tem alguns comentários sarcásticos aqui e ali, tem alguns comentários secos aqui e acolá, mas não é nada cortante demais. Eles são basicamente a mesma pessoa.

Gustavo: A gente se entende. De forma ampla e geral, a gente se entende. No sentido de que chega uma hora que a gente senta, conversa e resolve alguns dos problemas. Eu costumo falar que se eu fizer alguma coisa de errado, se alguma coisa der errado, eu vou ficar sabendo em até uma semana. Porque a Any acumula, acumula, guarda dentro dela e depois explode, que é quando eu finalmente fico sabendo o que que deu errado alguns dias atrás. É preciso ressaltar que isso tem melhorado, ela tem falado um pouco mais, explodido um pouco menos, falado antes. A gente tinha esse delay, essa questão na comunicação.

A Any no geral é uma pessoa de poucas palavras, a gente até brinca especialmente depois do último diagnóstico dela que ela tem, mas acabou. Ela tem um vasto vocabulário, mas faz pouco uso dele e aí acaba que a gente demora pra poder ir se acertando nesses pontos. Mas como já se passaram 10 anos, já deu tempo de acertar algumas coisas, sabe? Então, o básico e o nem tão básico assim tá bem encaminhado. A gente acaba discutindo, brigando mais por problemas de fora do que de nós dois mesmo.

Tiago: Então, você acha que nesse sentido o autismo ajuda?

Gustavo: Sim, acho que sim. Até porque se a gente pegar, o brasileiro enquanto pessoa, enquanto o povo, é um pessoal que enrola muito, que dá muitas voltas pra poder chegar no que quer dizer, tem uma forma muito indireta de falar tudo. Ele fica inventando formas de deixar levemente subentendido aquilo que ele quer dizer e espera que você talvez o entenda. Any e eu somos bem mais diretos. A gente fala: “não gostei de você ter feito isso, não faça isso, isso que você fez não foi legal”.

Otávio: Uma coisa muito importante que nós observamos é que o Gustavo e a Any desde o começo praticaram isso, então não é uma coisa que eles fazem porque eles escolhem fazer, é umas coisa que eles treinaram pra fazer.

Gustavo: A gente tem problemas grandes de aceitação por parte de outros e a minha família em boa parte ignora o fato que eu sou autista, mesmo eu tendo falado e explicado para alguns. Mesmo depois de eu ter conseguido o laudo eles falam: “ah, se você é autista, é só um pouquinho”. E essa minha mesma família problemática não recebeu a Any bem no começo da nossa relação.

Hoje muita coisa mudou em relação a esse sentido, mas a rejeição inicial a Any a qual eles não sabem que é autista, mas eles percebem algum comportamento ou outro que não é bem padrão nela, tudo isso aí gerou problemas, indisposições que duram até hoje. Então visitar parentes meus ou receber parentes meus como visita torna-se problema e com razão. Então isso é algo que eu acho que eu não posso simplesmente não mencionar, pular fora, porque é um dos problemas que a gente ainda tem enquanto casal. Mesmo estando melhor já teve no passado.

Tiago: Exatamente, queria perguntar sobre isso. E foi bom você tocar, ter uma rede de apoio, ter amigos, por exemplo, como o Otávio e a Jordanna, acaba sendo um complemento importante na dinâmica de relacionamento de vocês, né?

Gustavo: Sim, ao mesmo tempo que nós somos autossuficientes, que nós gostamos de nos fechar no nosso mundinho só nosso, mas a verdade é que nós somos dois nerds bem nerds. E eu gosto de um monte de coisas, ela gosta de um monte de coisas e tem uma área bem grande de intersecção ali de coisas que os dois gostam. A gente tem três estantes em casa: uma para livros, outra para quadrinhos e uma terceira para mangás. A gente gosta de ver filmes, séries.

Eu aprendi bastante de super-heróis com a Any, ela aprendeu bastante de mangás e cultura japonesa comigo. É uma linda troca, já que meio que todo mundo era cinéfilo, mas a gente passou a ver os filmes do outro. Mas é assim, maravilhoso, respondendo de volta na sua pergunta, ter mais gente com quem interagir, mais gente com quem trocar, que entende a gente. Até porque é complicado para autistas fazer amigos. Eu tive muito esforço pra poder fazer os amigos que eu tenho e os amigos que a Any tem basicamente são meus amigos, são pessoas que eu fui apresentando. Já que o Otávio falou que eu sou o centro do grupo lá atrás, eu sou o centro do grupo porque eu atraí pessoas de vários lugares. Foi um professor que nem era do meu curso na faculdade. Foi um veterano do meu curso. Foi a Any que eu conheci já com intenções românticas. Foi o Otávio. Foi a Jordanna, com quem eu trabalhei junto. Foi uma amizade que eu fiz jogando um um TCG, um jogo de cartas. E eu vou juntando esse mesmo pessoal em um lugar e dá liga.

Otávio: Gustavo é o autista mais sociável que eu já vi na minha vida. Ele não tem uma habilidade, ele tem um talento social. Ele tem uma inteligência social muito grande. Nesse ponto, ele é antítese de um estereótipo.

Gustavo: Mas é tudo forçado. No geral, eu não gosto de interagir com pessoas. Eu interajo numa boa com as pessoas que eu escolhi interagir. No geral, eu até evito interações. Eu posso pegar como exemplo o meu emprego atual onde, por um ano mais ou menos, eu dividi a sala com um colega de trabalho e essa pessoa falava da vida dela, conversava, de como ela gostava de sair em passeios ciclísticos e essa pessoa não sabe nada da minha vida. Ela não sabe nada sobre mim, o que eu sei dela não é bem porque eu gostaria de saber. Então se não é uma relação que eu acho que vai ser frutífera pra mim, eu não dou corda, não dou procedimento, não fico incentivando a pessoa a falar mais. Até porque eu tenho muita preguiça de falar sobre temas que não me interessam, que é o que geralmente as pessoas querem conversar.

Otávio: A gente ouviu bastante sobre como foi, como é, nos diga Gustavo, como vocês esperam que seja o futuro de vocês. As coisas grandes, as coisas pequenas, as dúvidas, os medos, as certezas.

Gustavo: Uma vantagem de estar com a Any é que a gente sempre deixou tudo muito às claras. Tanto de objetivos, quanto de intenções. E isso colaborou muito com a nossa compatibilidade, da gente perceber que somos bem compatíveis. E aí a gente tem vários pontos de convergências, por exemplo, os dois não querem ter filhos, os dois adoram animais de estimação, nós temos uma cachorrinha maravilhosa. A Any é doida pra poder mais bichos, ela é basicamente a Felícia que quer ter e apertar todos. Aí infelizmente vem os custos envolvidos e a gente precisa estar melhor estruturado para poder ter mais bichos.

Tem a questão que os dois tem intenção de ter uma vida profissional de fato, de trabalhar e se esforçar por isso. Então a gente sabe que os dois dando duro a gente vai conseguir viver uma vidinha agradável, uma vidinha legal. E coisas tipo que a gente senta e conversa: não precisamos ter dois carros, então como que a gente faz pra poder se deslocar com um carro só, de um levar o outro, de fazerem as coisas funcionarem. E aí é nesses consensos e nesses acordos que a gente vive.

Tiago: É, eu particularmente vejo que essa perspectiva de futuro acaba sendo um ponto muito importante da relação. Claro, cada relação as pessoas têm os seus critérios do que consideram mais ou menos relevante. Mas a gente fala principalmente sobre longevidade, isso acaba sendo um critério muito importante. Tem casais, por exemplo, que realmente se desfazem porque um quer ter filhos e o outro não quer. Então acabam sendo questões muito centrais. Mas, diante do relacionamento de vocês, eu acho que tem um ponto ainda que a gente ainda não tocou e não detalhado ainda, que é sobre exatamente essa cerimônia de casamento que vocês tiveram aí. Como é que foi o processo de uma forma geral?

Gustavo: Bom, se deu que eu não sou uma pessoa muito ligada a rituais no geral. Eu não fui a minha formatura do ensino médio, então eu não ligo muito para os ritos de passagem. Mas aí esses mesmos ritos de passagem são muito importantes para a Any. A gente não teve um pedido de namoro bonitinho, como eu falei mais cedo. A gente foi morar junto meio que sem cerimônia. Simplesmente ocorreram algumas coisas e: “vamos morar junto? Vamos morar junto!”.

E aí quando a gente foi fazer a cerimônia no civil, vamos deixar isso aqui mais certo, mais bonitinho. A gente começou a se programar para fazer uma pequena festinha, uma pequena celebração. As coisas deram errado e deram errado em boa parte por minha conta, que não dava tanto valor pra essa questão da cerimônia, que não dava essa atenção toda aos detalhes. E aí razões externas. Eu fiquei desempregado, a gente estava bem ruim de grana na época e aí acabou que a gente não fez nada além do casamento da cerimônia no civil. E aí cadê o que a Any merece? Cadê a celebração? Cadê o rito?

Passou-se o tempo, a gente foi falando disso uma vez ou outra e tá, vamos comemorar 10 anos juntos então. Estamos os dois empregados, a gente está trabalhando, a gente consegue juntar um dinheirinho. Você quer fazer uma viagem, quer fazer um treco diferente assim ou você quer fazer uma cerimônia de casamento? E aí a decisão partiu um pouco mais de mim de: vamos fazer a cerimônia, então. Vamos fazer acontecer. É uma coisa que a gente não fez antes, é uma coisa que você gosta, uma coisa que você merece. Vamos mostrar pros meus parentes, pros seus parentes, o quanto a gente se ama, que a gente é um ótimo casal.

E uma forma de celebrar também com pessoas que a gente gosta, com amigos, alguns parentes que no final foi uma cerimônia bem pequena, o Otávio está aí falando que foi gigantesca, mas foi bem simplesinha. Foram 40 convidados, incluindo noiva, então um pequeno porte. Pra padrão casamento é considerado pouca gente, mas foi como a gente quis fazer. Então pra Any e pra mim foi uma cerimônia maravilhosa.

Otávio: OK.

Tiago: Mas eu tenho uma curiosidade sobre essa questão do casamento porque eu fui celebrante de um casamento o ano passado, inclusive em Goiânia, de amigos meus que tinham um relacionamento há 10 anos também e fizeram uma celebração no ano passado. Muito semelhante a história de vocês até. E naquela ocasião eles não eram pessoas religiosas. Então eles chamaram uma pessoa que fosse do círculo social deles para conduzir ali, que no caso fui eu, e foi muito doido também porque eu tive que alugar terno, não tinha nada, nunca tinha vestido terno na vida. Queria saber: essa cerimônia de vocês foi mais religiosa? Ou como é que vocês lidaram com essas questões dos valores? É só uma curiosidade.

Gustavo: Eu também tive que usar terno, ué. Eu não tenho terno, eu tive que alugar um terno. Não, voltando no começo e no estarmos alinhados em termos perspectivas convergentes, eu sou ateu desde os 13 anos de idade, a Any é agnóstica. Em alguns pontos ela até gostaria de ser judia, mas não tem como simplesmente entrar na comunidade. E aí quando a gente foi fazer essa festa, a gente fez num local de festas mesmo.

A gente não quis fazer em igreja nem nada por não acreditar e aí já que a gente acredita na ciência a gente chamou um professor universitário com doutorado. É o mais próximo de um cientista mesmo que a gente tinha ali, que é o Ruben. É uma amizade antiga minha, ele é professor da Universidade Federal de Goiás, não foi do meu curso de publicidade, mas foi uma amizade que eu fiz ali pelos corredores da UFG. Ele acabou sendo co-orientador do meu TCC e ele foi orientador do TCC da Any e agora inclusive vai ser coorientador do mestrado que ela está fazendo. E isso tudo porque ele é doutor em quadrinhos. É realmente a especialização dele.

Quem levou as alianças foi a nossa cachorra. Muito importante dizer isso, porque a Banguela é central na nossa relação.

Tiago: (Risos) Boa.

Otávio: A Banguela é a cereja do bolo.

Tiago: E Gustavo, diante de um relacionamento de sucesso, qual dica você daria pras pessoas sobre a longevidade do seu relacionamento, ou enfim, sobre as relações de uma forma geral?

Gustavo: Conversem, conversem bastante, escute sua esposa, é bem possível que ela esteja correta, e tente sempre trabalhar pras coisas ficarem certas entre os dois. Homens, héteros cis, a gente tem mania de achar que sempre tem razão e às vezes não é bem por aí. E eu falo isso querendo muito a igualdade, a equidade dentro do casamento. Não queira que sua esposa seja submissa a você nem queira você dominar ou ser submisso. Tratem sempre como iguais, escute-a, chegue a um consenso, não ache que você está sempre correto de cara desde o início. É o melhor pra poder ter uma relação longa e satisfatória. Então, no nosso casamento, teve leitura de votos e a Any colocou nos votos dela que não seria submissa a mim, mas que sempre me trataria com igualdade e com respeito.

Tiago: Gustavo, muito obrigado por participar aqui do Introvertendo. E pro público que não sabe disso, nós gravamos esse episódio em 2019. Infelizmente o episódio foi perdido porque meu gravador na época foi furtado então o Gustavo topou e isso quatro anos depois de muito atraso gravar o episódio de novo, compartilhar a história que de certa forma se cruza tangencialmente com a história do Introvertendo e fique à vontade então pra poder falar alguma coisa.

Gustavo: Ah Tiago, que isso uai, a gente grava e regrava quantas vezes for necessário. Eu sou um ouvinte bem antigo do Introvertendo, é um dos pouquíssimos podcasts que eu tenho já com download automático no meu aplicativo. Então é muito legal finalmente estar participando de um episódio de podcast de tantas centenas de milhares que eu já ouvi. E por fim, eu vos digo acreditem no amor. Dá trabalho, precisa de empenho e renovação diários e é algo incrível, sensacional. Amem.

(Fim do episódio)

Tiago: Otávio, você quer comentar alguma coisa?

Otávio: No meu caso, a Jordanna não é autista, então…

Gustavo: Otávio, é comentar sobre a minha história.

Otávio: Ah, sobre a sua história?

Tiago: É, ué (risos).

Gustavo: O episódio não é sobre você e a Jordanna, vocês já tiveram seus episódios.

Otávio: Perdão.

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Equipe Introvertendo Escrito por: