Introvertendo 229 – O Autismo, a Morte e o Luto

Muitos autistas lidam de forma diferente com a morte e o luto. Desta forma, compreender o fim da existência como os outros pode acabar sendo até uma cobrança ou regra social. Neste episódio, nossos podcasters relembram histórias da infância, como encaram o encerramento da vida, as consequências das mortes por Covid e um segredo (até então) inédito sobre a cantora e compositora Marília Mendonça. Participam: Carol Cardoso, Luca Nolasco e Tiago Abreu. Arte: Vin Lima.

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Transcrição do episódio

Tiago: Olá pra você que ouve o podcast Introvertendo que é o principal programa sobre autismo do Brasil. Meu nome é Tiago Abreu, sou jornalista, um dos integrantes aqui deste projeto que discute autismo na vida adulta e todas as questões que envolvem a sociedade humana.

Luca: Olá, eu sou Luca Nolasco, estudante de biomedicina, tenho 22 anos e fui diagnosticado com autismo em 2017.

Carol: Eu sou a Carol Cardoso, tenho 25 anos, pela primeira vez posso falar que no podcast que eu sou mestranda em Arquitetura pela UFMG e fui diagnosticada com autismo em 2018.

Tiago: Hoje a gente vai falar sobre uma temática que se faz muito presente todo ano, principalmente no início de novembro que é sobre a temática do luto, da morte, e relacionar isso com o autismo. De que forma as características do autismo, a própria existência do autismo se dá com a discussão sobre morte. Vale lembrar que o Introvertendo ao feito por autistas, com produção da Superplayer & Co.

Bloco geral de discussão

Tiago: Compreender a morte é algo que envolve vários fatores, tanto uma questão de você compreender a existência ou a inexistência, e também entender que é um processo irreversível. Então uma vez que você morre, tudo acaba. E como isso impacta as pessoas a sua volta e a forma como você se simpatiza ou se empatiza com as outras pessoas. Na discussão científica do autismo já foi discutido muito sobre a questão da teoria da mente, coerência central, alguns conceitos que a gente até já falou em outros episódios e também sobre a dificuldade muitas vezes que autistas podem ter nessa questão da empatia, seja uma hiper empatia ou uma dificuldade na tomada de perspectiva.

E aí na hora que eu estava começando a montar esse episódio, eu lembrei de um artigo que eu li muitos anos atrás que se chama O Conceito de Morte e a Síndrome de Asperger, que vai tentar discutir alguns conceitos de Piaget relacionados a morte e a questão do autismo com alguns grupos. E é um trabalho bem interessante, então recomendo. Mas o que a gente quer principalmente abordar aqui é a experiência em primeira pessoa com a questão do luto e com a questão da morte, como aqui nos três casos que somos pessoas no espectro do autismo nos relacionamos historicamente ao longo da vida com essas questões. Então deixo o espaço aqui principalmente pra Carol e pro Luca falarem um pouco como é que eles encararam desde a infância essa questão da morte e do luto.

Carol: Bom, eu tenho memórias da minha primeira infância que são muito vívidas. E a primeira vez que eu tive contato com a morte foi a morte de um primo meu que foi muito trágica. Ele tinha 21 anos e morreu afogado. E eu lembro que a primeira vez que eu me deparei com essa ideia foi quando eu vi o meu tio no pátio da minha casa chorando muito. Por mais que eu tenha entendido que era uma coisa muito grave, eu acho que eu não conseguia entender o que significava essa morte. Isso não não se não é tão diferente das outras pessoas neurotípicas. Só que ao longo da minha vida, essa minha reação não mudou tanto.

Então nas próximas mortes que eu vivenciei, por exemplo, com 10 anos eu perdi uma tia, eu tive praticamente a mesma reação que eu tive quando eu tinha cinco anos e isso eu já tinha uns 10 anos, que me deram a notícia por telefone porque minha tia morava no Pará. E eu só tive a ideia de: “quando os meus pais chegarem, eu vou ter que falar pra eles essa informação”.

Então o que ficou na minha cabeça não foi a ideia da morte em si mas foi o fato de que eu tinha uma tarefa que era comunicar a minha família de que tinha tido esse evento. E aí com isso eu sinto que as pessoas começaram a estranhar a minha forma de reagir a isso de um jeito que a partir daquele momento a ideia de morte se tornou um tabu quando se trata de mim. Quando o meu avô morreu em Belém, eu não fui comunicada. E eu fiquei sabendo meses depois em uma conversa corriqueira quando eu fui em Belém e alguém comentou sobre a morte do fulano. E isso me magoou muito, porque eu percebi quão diferente é pra mim a questão da morte a ponto das pessoas reagirem comigo de uma forma diferente quando se trata desse assunto e nem considerarem como que isso é pra mim. Não tem um diálogo.

Luca: Eu presenciei casos de parentes que faleceram e na maioria das vezes não eram pessoas que eu tinha uma proximidade afetiva ou até física, não tinha muito contato. Então quando eu soube do falecimento deles, eu fiquei triste pelas pessoas que ficaram tristes, mas eu não senti nada visceral. Um caso específico disso foi quando um tio avô meu, uma pessoa que eu tenho bastante admiração, mas que eu não tive contato durante toda a minha vida, aos meus 19 anos ele foi diagnosticado com um tipo de câncer e ele tinha uma ‘data de validade’, segundo ele mesmo, ele iria falecer logo.

Eu passei acho que três ou quatro dias indo na casa da minha tia todo santo dia pra conversar com ele. É uma das pessoas mais brilhantes que eu já conheci. Conhece tudo de política, de cultura, de tudo. E as melhores conversas que eu tive no ano inteiro foram com ele. Pouquíssimos dias depois ele faleceu. Já era algo que a gente esperava, já era algo que a gente sabia que iria ocorrer. Eu não fiquei triste porque… eu não sei. Eu não sei porque que eu não fiquei triste. Eu fiquei pensativo sobre isso.

Já em outros casos e eu não sei qual é a diferença entre eles, eu fico semanas remoendo, semanas muito mal. Eu tive colegas que morreram de câncer muito novos, eu tive colegas que morreram atropelados, pessoas que morreram de overdose. Em cada um deles eu passei mais de uma semana sem conseguir fechar o olho e não pensar neles e sem conseguir ir às aulas, sem conseguir fazer nada porque eu só conseguia pensar nisso.

Não eram necessariamente pessoas mais importantes do que os meus parentes. Eram só situações que me deixaram muito mais pensativo e triste. Então comigo é muito extremo. Ou eu entendo o conceito da morte e aceito, ou eu simplesmente me nego a aceitar e eu fico pensando nele todo momento que eu estou acordado.

Tiago: Tem coisas muito interessantes nos relatos de vocês, mas eu destacaria duas. Primeiro, o que a Carol disse sobre a família não compartilhar a questão da morte. E eu vejo que muito além do autismo, o quanto muitas vezes adultos por não saberem como lidar ou como comunicar ou como informar crianças, eles omitem informações. Então acho que isso também vai um pouco além do autismo, mas olha pra você ver o impacto da reação das pessoas em relação a uma deficiência da interação social, da comunicação, como o autismo. E ao mesmo tempo revela o quanto as famílias e muitas vezes as pessoas estão despreparadas para saber como lidar em situações extremas como essa.

E o Luca falou muito sobre essa questão da reação sobre a morte das pessoas, algumas ser uma coisa esperada e outra coisa ser realmente algo que continua, perdura. Acho que isso tem muito a ver também com a previsibilidade. No contexto do autismo, a gente sabe que a gente tem uma dificuldade para lidar com questões imprevisíveis e a morte geralmente não é algo esperado, exceto nesses casos em que há uma doença em que há um prognóstico já definido. Então acho que a gente pode fazer de certa forma essa inferência. E eu acho que a morte pela qual se há uma surpresa, realmente é uma coisa que choca todo mundo. Principalmente se ocorre em uma idade que as pessoas esperam que a pessoa viva por muito tempo.

No meu caso, particularmente, eu nunca passei por muitas histórias de morte dentro do âmbito familiar. Eu tive duas mortes marcantes de parentes mais próximos, eu tive a morte do meu avô em 2001 que era razoavelmente próximo de mim, inclusive a última filmagem dele vivo ele tá rindo de mim brincando, mas eu era muito pequeno quando ele morreu. Eu lembro do contexto da época, eu lembro de cenas do velório, eu lembro de que eu ia junto com a minha mãe pro hospital e eu lembro de acompanhar o velório, acompanhado de todos os processos. Mas na época a minha concepção, na época, era que meu avô estava dormindo.

Mas eu consegui perceber, ao longo de todos esses anos, o impacto da morte do meu avô na vida da minha avó. Eles viveram juntos desde a década de 1950, desde a adolescência. E a minha avó todos os dias hoje – meu avô morreu em 2001 -, então vinte e um anos depois minha avó fala no meu avô todos os dias. Dependendo do contexto da conversa, ela chora lembrando do meu avô. O impacto da ausência dele na vida da minha avó é algo que me deixa muito triste de uma forma geral. E ao mesmo tempo me motivou muito a não esquecer a memória dele. Então em 2019 eu escrevi um livro que eu já falei aqui algumas vezes, o Histórias de Paratinga. E esse livro de certa forma foi dedicado à memória do meu avô que morreu em 2001.

Carol: Teve uma coisa que o Luca falou que é sobre a gente ver a reação das pessoas e a partir da reação das pessoas entender que aquilo é uma coisa triste. Então até mais ou menos a metade da minha adolescência eu também tinha esse mecanismo de não entender que uma coisa era triste até que eu visse alguém chorando. E aí eu entendia que a minha sensação naquele momento deveria ser também tristeza.

E a coisa sobre a morte ser previsível ou imprevisível, eu acho que isso é um fator que é muito importante também na forma como a gente vai reagir. Porque existiram na minha vida mortes que foram muito imprevisíveis e mortes que foram de uma imprevisibilidade previsível. E isso é um assunto muito delicado de falar, mas eu acho que vale a pena falar. Porque no meio do autismo a gente está muito cercado e eu vou fazer um aviso de gatilho, da ideia do suicídio. A reação do luto ao suicídio é uma certa ambiguidade. Porque ao mesmo tempo que é uma morte imprevisível se a pessoa já dava sinais, se a pessoa já tinha uma depressão, alguma coisa que as pessoas sabiam que existia, é como se fosse uma reação previsível mas que ninguém sabe quando que vai acontecer.

E principalmente quando se trata de pessoas mais jovens, quando isso acontece, a gente fica pensando em em quais momentos a gente deixou passar as coisas. Então eu acho que é um tipo de luto muito particular e eu acho que no âmbito do autismo por exemplo quando a gente já tem certa fragilidade emocional, fragilidade de se auto regular e o pensamento rígido, quando isso aconteceu, isso aconteceu mais de uma vez de eu ter uma pessoa que morreu por suicídio, eu sempre ficava revendo a minha convivência com a pessoa e procurando os sinais o dia inteiro.

Então eu ia dormir pensando nisso, acordava pensando nisso, e não conseguia tirar aquilo da minha cabeça. E como que a presença da pessoa era como se ela ainda estivesse ali, só que ela não estava. Então é até uma questão espiritual, de crença, que eu acho que é um âmbito do luto que não deve ser negligenciado, como que a cultura, como que a espiritualidade da pessoa se relaciona com a morte. Mas pra mim esse tipo de morte é uma morte que é como se a vida continuasse, mas que acabou.

Tiago: Nessa sequência do que a gente está falando sobre mortes esperadas e mortes inesperadas, a gente veio de alguns anos e principalmente de 2020 para cá com a pandemia de Covid-19. Mas também a gente teve mortes não relacionadas exatamente à pandemia e muitas mortes que foram grandes surpresas. Eu queria trazer dois exemplos de mortes do cenário artístico que no meu entender são impactantes, mas elas tem um certo contraste entre elas sobre quem morreu e o contexto em que essas pessoas morreram.

O primeiro caso que eu queria falar é sobre a Elza Soares, a cantora e compositora que viveu mais de 90 anos, que passou por coisas muito pesadas, teve a sua carreira quase encerrada muitas e muitas vezes, mas que conseguiu dar a volta por cima em 2015 quando ela lançou o álbum A Mulher do Fim do Mundo. A gente até falou sobre ela no episódio 84 – Retrospectiva Década de 2010. E a Elza Soares entrou numa jornada muito intensa de muitos shows e muitas coisas. E a gente sabia que, em algum momento, a Elza Soares ia morrer pela idade avançada, mas ela estava ali intensa pela vida vivendo e a gente celebrando cada coisa que ela pode fazer.

E eu acho que a gente relaciona aí muito a questão da morte com anos bem vividos. Eu acho que esse é um tipo de morte que a gente olha e até a gente se orgulha. Que legal, que possibilidade, apesar de todo o sofrimento que ela passou, ela conseguiu ainda ter anos muito bons e ela disse várias vezes que ela estava vivendo os melhores anos da vida dela nesses últimos agora, principalmente da década de 2000 pra cá.

Mas a gente tem um outro tipo de morte e essa morte com certeza é uma das mais impactantes do cenário artístico das últimas décadas, que é o caso da cantora e compositora Marília Mendonça. Marília Mendonça tem um caso muito especial com o Introvertendo especificamente porque a Marília é de Goiás. O Introvertendo surgiu em Goiás. Em Goiânia, o sertanejo é uma coisa muito presente na cidade e a Marília Mendonça estourou mais ou menos na mesma época em que a gente se conheceu e a gente começou o podcast. Então a Marília Mendonça fez parte da nossa vida, mesmo grande parte de nós não curtir sertanejo e etc. Então Marília não era uma pessoa tão distante.

Mas a Marília Mendonça também estava presente na nossa geração, da nossa cultura. Foi uma artista que não pertence ao eixo Rio São Paulo que foi presente a nível nacional, que tinha muito mais público do que certos festivais. E uma morte aos 26, num acidente de avião, é um negócio que pegou as pessoas de muita surpresa. Eu lembro do dia que a Marília morreu. Eu estava acompanhando que houve o acidente e aí a assessoria lançou nota falando que ela estava bem. Aí todo mundo ficou aliviado, está tudo tranquilo.

E eu estava perto do Willian Chimura, que faz parte aqui do podcast. E eu lembro que eu entrei na sala, o Willian estava em uma outra sala e o Willian olhou pra mim e falou assim: “você ficou sabendo que a Marília Mendonça morreu?”. E aí eu falei: “não, ela não morreu não, a assessoria lançou nota falando que ela foi resgatada e está super bem”. Aí o Willian virou pra mim e falou assim: “poxa, caí numa fake news hard aqui”. E aí eu voltei pra minha sala, dei F5 no Twitter e de imediato as pessoas falando: “não gente, ela morreu”. Aquele momento assim foi muito assustador, sabe? Porque não era uma coisa que realmente a gente estava esperando, foi um negócio muito, muito estranho.

Luca: Primeiro sobre a Elza, eu descobri a música dela num período que eu estava muito isolado socialmente, a música dela sempre foi algo que eu gostei desde quando eu a conheci. E depois que eu descobri que eu nasci no aniversário de 70 anos dela, eu não sei porque mas isso foi algo que ressoou em mim, eu achei legal e comecei a admirar muito a Elza. Então quando ela veio a óbito, eu fiquei bastante sentido.

Mas outra coisa que eu de certa forma me arrependo agora sobre a Marília é que quando eu era mais novo eu sempre enchia o peito pra falar: “ah eu não gosto de sertanejo, eu acho isso ruim”. E eu fico sentido de não ter aproveitado muito do que a Marília produziu na época. Morando em Goiás, o estado parou. Parou por alguns dias quando a Marília morreu. Ninguém conseguia fazer nada sem falar, sem pensar, sem externalizar a tristeza que foi. Então foi algo muito comovente, e por uma pessoa que justamente eu não conhecia. E eu me arrependo muito de não ter conhecido ela quando ela era ativa.

Carol: A minha história com a Marília vem de um momento que é interessante esse fechamento de ciclo. Porque quando eu vim pra BH pela primeira vez para participar de um evento acadêmico, na esquina de onde eu estava ficando, estava tendo o show dela gravando a música “Graveto”. E eu nunca fui fã de sertanejo, sempre foi uma coisa assim meio distante de mim. Mas por algum motivo, eu sentia muito essa presença da Marília muito forte em todo lugar que eu ia. E alguns amigos meus e amigas eram muito fãs dela.

Então sempre quando eu fiquei sabendo da morte, foi um impacto tão grande porque é muito estranho essa ideia de uma pessoa tão cheia de vida, tão presente na vida de várias pessoas e enxergar essa pessoa como morta agora.

Tiago: Eu acho que a morte da Marília impactou as pessoas de uma forma diferente e cada um um motivo. Mas um ponto que as pessoas ressaltaram muito foi a perspectiva da Marília sobre a mulher e sobre a mulher no centro da discussão do sertanejo. Mas no meu caso particular, como homem e como jornalista, a morte da Marília me revelou uma tristeza muito grande sobre o que a gente faz com o jornalismo cultural no Brasil. Sobre a valorização de certos gêneros em detrimento de outros, sobre a forma como a gente não leva a sério certas perspectivas.

Eu sempre achei muito estranho, isso desde 2019 quando a Marília lançou o primeiro volume de Todos os Cantos e eu não vi análises da crítica, crítica musical sobre aquele álbum, sobre o projeto, sobre o conceito. Acho que a Marília era uma artista muito mais interessante e muito mais inteligente do que alguns certos setores mais intelectuais da crítica e da música brasileira poderiam prever ou que eles pensam sobre gêneros populares.

E eu fiquei muito triste sobre o que o jornalismo brasileiro fez no contexto da morte dela. Porque não era uma questão só da reação à morte dela, era uma questão sobre a criação de todo um contexto, de todo um conhecimento sobre a obra dela pra poder falar sobre o impacto dela naquele momento, entendem? Que eu vejo que as pessoas só repetiam o mesmo, que é o impacto dela sobre a mulher, a perspectiva sobre a mulher, sobre a fama, sobre o sucesso, mas ao mesmo tempo não tinham encaminhado todo o sentido que a discografia dela teve ao dos anos e para o próprio amadurecimento artístico dela.

Se eu pego por exemplo o EP Nosso Amor Envelheceu de 2021, você vê uma Marília Mendonça que já começou a compor depois de adulta (porque os primeiros sucessos dela eram músicas mais antigas) e ela já começa a discutir questões como prostituição, como alcoolismo. Ela começa a trazer uma abordagem e sair um pouco mais de simplesmente do relacionamento, do estar sofrendo ou não. E eu vejo que o jornalismo brasileiro não conseguiu acompanhar essa jornada do amadurecimento dela, porque a gente não percebe, não leva a sério a música popular como uma manifestação legítima, cultural.

Mas tem uma outra dimensão que a gente tá falando aqui, sobre a pessoa pública, Marília. E eu queria contar uma história que era um segredo e é a primeira vez que eu estou contando isso pessoalmente com autorização da pessoa, tá?

O Introvertendo tem as capas dos episódios feitas pelo Vinicios Lima, que faz aqui desde 2020 todo o design do Introvertendo. E ele conheceu a Marília Mendonça antes da fama. Eles estudaram por dois anos juntos. Mas não era só uma conhecida distante, eles andaram juntos por uma época, lancharam juntos, enfim. E ele tem uma memória muito grande sobre a Marília naquele período.

Ele lembra, por exemplo, que no primeiro dia de aula a Marília foi muito gentil com ele, que ele se arrumou bastante, ele passou assim um produto no cabelo pro cabelo ficar bem bonito. E aí quando ele chegou na escola, a Marília se aproximou dele e elogiou a aparência dele. Falou assim: “nossa, seu cabelo é tão bom e eu tenho que fazer um esforço muito grande pra ele ficar minimamente arrumado agora de manhã”. E o Vinicios riu por dentro e pensou assim: “ela nem imagina o quanto que eu gastei tempo pra arrumar e tal”. E ele já disse pra mim algumas vezes que aquela Marília simpática em termos de público, ela já era daquele jeito, aquilo ali não é uma personagem.

Mas eles tinham outras coisas em comum. Eles odiavam a escola que eles estudavam por uma série de motivos. Ela era zoada por causa do corpo, porque a Marília na época que eles se conheceram, segundo ele, ela era muito magra, então ela não tinha muito corpo e aí as outras meninas que tinham mais corpo acabavam excluindo, discriminando ela, porque ela não pertencia aquele padrão de mulher mais encorpada. E ela tinha o sonho da música e isso não era também muito bem visto por alguns professores. Ele, por outro lado, tinha o sonho de ter um upgrade acadêmico pra sair daquela questão.

Marília nessa época já compunha, já fazia show em barzinho, ela vivia convidando ele pra show, mas sertanejo nunca foi muito a vibe dele, então ele não ia. Mas eles se davam bem. A última vez que eles se viram, eles foram no Buriti Shopping. Para quem não mora em Goiás, é um shopping que fica na divisa entre Goiânia e Aparecida de Goiânia porque a Marília era do Parque Amazônia, que é um bairro ali próximo. E nesse dia eles tiveram uma conversa no shopping, ele se lembra disso. Ele falou que aquilo que eles viviam não era vida, sabe? Naquele contexto dificilmente eles iam conseguir chegar a algum lugar vivendo sempre naquela situação e o ensino também não era lá grandes coisas.

Ele tinha o sonho de passar no Instituto Federal para fazer o ensino médio numa instituição melhor e a Marília tinha o sonho da música. Aí nesse dia a Marília pediu ele para levá-la pra casa porque ela morava numa área perigosa do Parque Amazônia, ele deixou ela, lá se despediram e aí nunca mais eles se viram. O Vinicios passou no Instituto Federal, a Marília saiu da escola, ele apagou todas as redes sociais e criou tudo do zero, porque aquela época que ele conheceu a Marília foi um momento tão ruim da vida dele que ele queria esquecer, mas depois ele se arrependeu e resolveu ir atrás dela. Mas olha a ironia, ele não se lembrava qual era o sobrenome dela.

E aí em 2018, depois que a música da Marília Mendonça tocava pra todo lugar, foi que ele ligou os pontos e ele se tocou com aquela mulher que até fisicamente já era bem diferente, era a Marília Mendonça que ele conheceu. No meu livro, eu falo muito de uma cantora e compositora cega em Paratinga que é muito fã da Marília e que começou a compor por influência dela. E nessa época o Vinicios já tinha entendido o valor que a Marília tinha para as mulheres. E aí eu sempre brincava com o Vinicios falando assim: “um dia eu vou entrevistar a Marília e eu vou falar pra ela sobre você”. Ele até pensou em falar com ela de novo, mas ele sempre evitou porque ele poderia soar interesseiro, sabe? Reaparecer depois de tantos anos. Então ele evitou, apesar dele sempre se sentir muito orgulhoso com o lugar que ela chegou dado todo o contexto que eles viveram.

A Marília acabou morrendo, eles nunca mais se viram. Ele ficou muito mal com a morte da Marília, para ele quem morreu não foi a cantora, a artista que todo mundo conhece. Pra ele quem morreu era aquela menina gentil que ele conviveu na adolescência, sabe? E ver as cenas do funeral que aconteceu em Goiânia pelo computador e o caixão passando por uma avenida onde eles já estiveram ali perto da BR-153, num pôr do sol, foi muito dolorido e triste pra ele. Principalmente porque um primo dele da mesma faixa de idade morreu naquele período.

E sabendo de todo esse contexto, ele ficou muito triste quando viu na televisão colegas que discriminavam ela nessa época que eles estudavam dando entrevistas falando o quanto eram amigas, sendo que ele sabia naquele contexto que isso não era muito bem uma verdade, sabe? E a história do Vinicios mexeu muito comigo nessa época. É uma longa história. Se fosse contar detalhes seria muito tempo, mas a história dele com a Marília me fez muito pensar sobre os momentos que a gente compartilha com alguém e as dinâmicas da vida. Ele pelo menos ficou orgulhoso do lugar onde ela conseguiu chegar, dado todo o contexto de vida que compartilharam juntos. Então eles chegaram em pontos diferentes, em contextos diferentes, mas cada um perseguiu o seu sonho.

Carol: E uma coisa interessante é que o Tiago já tinha me contado essa história sobre o Vinicios ter conhecido a Marília antes da Marília morrer. Então assim que eu fiquei sabendo dessa notícia, uma das primeiras coisas que eu fiz foi mandar mensagem pro Tiago, pra vocês não acharem que é mentira.

Tiago: Eu era a única pessoa que sabia disso. Era um segredo que o Vinicios tinha. O Vinicios não gostava de compartilhar isso com as pessoas porque ele conheceu a Marília nesse momento ruim da vida dele que ele sempre quis excluir. A Marília foi um dos poucos pontos bons. Mas quando ela morreu foi inevitável, sabe? E aí ele autorizou. Agradeço ele por contar essa história. Foi uma coisa bem bem triste, pesada pra ele e pra mim também, sabe? Fiquei muito pensativo sobre várias coisas.

A morte da Marília foi um ponto muito importante. Mas nos últimos dois anos a gente conviveu com uma pandemia. E uma pandemia suscita não só doenças, mortes, mas também quanto uma questão de imprevisibilidade desse fenômeno. E foi exatamente o que a gente já conversou. E aí eu queria perguntar pra vocês, olhando agora dois anos depois, no momento em que a gente pode considerar quase que um “fim” da pandemia no Brasil, apesar de ainda terem casos de Covid. Como é que vocês encaram esse período e como foi a sensação de morte?

Eu sei que a gente já fez vários episódios na época da própria pandemia, mas eu acho que nesse momento agora de 2 anos depois, a gente consegue traçar um comentário mais sólido sobre o que a gente viveu.

Luca: Durante a pandemia perdi pessoas muito próximas, amigos. Eu acho que pra mim a sensação além da tristeza de ter perdido essas pessoas, foi o medo. Eu tinha costumes que eu tive que deixar de lado, como por exemplo, todas as férias escolares eu visitava a minha família em Tocantins, visitava a minha avó que é uma pessoa que eu tenho muito carinho e tive que abandonar coisas assim. Eu tive que ficar muito preocupado com as pessoas mais velhas da minha família porque eu não poderia fazer nada pra impedir, eu só poderia ficar preocupado. Ter esse constante medo de: “poxa, será que eles tão se cuidando, será que eles caíram em desinformação? Será que eles tão fazendo tudo que deveriam fazer?”.

Então pra mim além da tristeza de ver tudo que tá acontecendo com outras pessoas e com outras famílias, toda tristeza, tinha o medo constante de cair em um espiral de desinformação que poderia terminar muito mal pra qualquer pessoa em volta de mim. Não só cuidar de mim com o uso de proteção que eu fazia constantemente, como tentar cuidar dos outros com a informação.

Carol: Uma coisa também que ficou muito presente pra mim na pandemia foi a sensação de responsabilidade pela vida e pela morte das pessoas. Então era uma coisa que eu ficava pensando o tempo todo, durante todo esse período de pandemia, que se eu saísse de casa isso poderia significar a morte de alguém. E ficar em casa poderia significar a vida de alguém. E eu lembro que quando eu peguei covid, isso já foi em 2021, mas eu ainda não tinha sido vacinada, nem ninguém da minha família, todo mundo pegou covid junto. E eu lembro que dois dias antes de eu fazer o teste e ser diagnosticada oficialmente, eu espirrei na janela. E depois que eu tive o teste positivo, eu entrei em pânico porque eu pensei: “meu Deus, eu espirrei na janela do prédio e eu posso ter matado alguém”. E isso me atormentou durante muitos meses, senti que eu estava carregando no meu corpo potencialmente a morte de outra pessoa.

E quando a gente vê num contexto geral é que durante esse período existiu muita falta de empatia, falta de cuidado, principalmente desse presidente genocida, mas no sentido geral, a maior parte das pessoas eu acho que a pandemia foi um momento de mostrar as caras de quem realmente se importa com os outros e de quem não se importa. E isso é muito sensível de perceber. Eu sinto que foi uma crise que mostrou muito sobre o nosso próprio rumo como sociedade, como comunidade e as coisas que são importantes.

Então essa ideia da morte o tempo inteiro, a morte era uma coisa que não se deixava de pensar todos os dias e até hoje é assim. O jornal não deixa de mostrar o número de pessoas que morreram e o número de casos. E quando a gente perde alguém, a gente olha aquele número e ele parece que não significa nada porque aquele número começa a ter um nome. E a gente vê que a pessoa que a gente conheceu e que morreu está lá naquela massa e o impacto daquilo é muito forte.

E eu sinto que a gente não conseguiu assimilar tudo que aconteceu. Nessa nossa pressa de votar para normalidade as vezes a gente não dá espaço pra sentir essas dores porque o próprio mundo não é feito para que a gente tenha esse tempo. Então o luto também é o luto coletivo. É um luto que a gente está vivendo ainda e não sabe como lidar. E eu acho que isso vai perdurar por pelo menos ainda uns 2 ou 3 anos até que a gente consiga entender os impactos do que aconteceu no sentido da ciência, sentido das relações e de como a gente se organiza e no sentido emocional também.

Tiago: Eu me identifico com vocês na maioria das coisas que vocês falaram, principalmente com relação a essa questão do medo da morte e do sentido de responsabilidade. Não só essa questão da própria responsabilidade quanto uma necessidade de me preservar ou de evitar por mais tempo possível a Covid. Porque se eu precisasse de hospital pra um acidente automobilístico, por exemplo, dependendo do momento eu não teria médico. Então era uma questão assim muito complexa porque a gente teve as mortes relacionadas a Covid, mas também tivemos as mortes não relacionadas. As pessoas que passaram mal por outros problemas de saúde que não puderam fazer seus tratamentos ou seus exames preventivos de doenças como câncer e acabaram morrendo por causa disso ou vão morrer posteriormente porque não identificaram uma doença precocemente.

Mas a gente precisa dar o nome aos bois e saber que tudo isso foi orquestrado e que isso tem uma responsabilidade por um sistema, por um governo específico, que é esse governo que governou entre 2019 a 2022 e que teve informações muito claras do que a pandemia e do que a Covid poderia produzir no Brasil. E insistiu num discurso de “vamos deixar geral se contaminar”, uma coisa meio salve-se quem puder. Os mais fortes sobrevivem, os mais fracos vão morrer e dane-se. E discursos assustadores como “não sou coveiro”, como o “país de maricas” e coisas do tipo.

A memória, por exemplo, de Manaus, pra mim, é uma coisa muito forte. Aquelas valas comuns, as pessoas morrendo sem oxigênio. E o que eu acho que é muito importante é que foram mais de 700 mil pessoas que morreram nessa pandemia e a gente passou esse momento pior, mas essas vidas não voltam, isso não vai voltar. E o mínimo, o mínimo que a gente deve fazer é ter memória por essas pessoas.

Eu espero se tudo der certo, viver uns 80, 90 anos, se eu tiver saúde suficiente, fico muito feliz se eu puder ter uma morte velhinho igual a Elza. E eu quero prometer a mim mesmo que eu nunca quero esquecer toda essa negligência, toda essa coisa que ocorreu, eu não vou esquecer jamais, sabe? Pode mudar a presidência da república, pode mudar governo, eu acho que isso tem que estar presente na nossa mente pra gente entender ou pra gente pelo menos tentar entender aquilo que que ocorreu e passou sabe?

Luca: Eu comecei a faculdade no início da pandemia na área de saúde. Até por conta da faculdade, eu era obrigado a consumir tudo que fosse possível sobre a pandemia, desde a sintomatologia a como que se espalha, quais as consequências e como que forças públicas estão atuando para impedir isso ou não. E por ser obrigado moralmente e academicamente a consumir tudo isso, eu tive que ver muitas coisas ruins. Tive que ver muita coisa triste. Nenhum desastre que acaba com 700 mil pessoas mortas ocorre por uma só pessoa, nenhum. São diversas pessoas atuando juntas para que isso aconteça. Mas o maior órgão público do país também tem a maior força para contribuir para que isso aconteça ou conquiste seja evitado.

E no caso do Brasil contribuiu pra que isso acontecesse, pra 700 mil mortes. Dentre elas, muitas são de amigos meus, de pessoas que eu gostava muito. Eu honestamente espero que nós nunca mais passemos por outra pandemia nessa escala. Nunca mais passamos por algum governante que seja tão negligente, tão insensível, bronco, todos os adjetivos negativos que você consiga imaginar. Espero que nós nunca mais passemos por isso, porque era revoltante eu estar estudando um negócio e vendo como aquilo lá é assustador, em seguida ligar a TV pra assistir uma pessoa que diz: “não, isso não é nada não, isso daí é é pouca coisa, é só continuar a vida e prossegue”.

Tiago: E sabe o que mais me assusta, Luca? O que mais me assusta não, porque até que não tenho grandes surpresas… mas é a incapacidade de fingir que lamenta sobre isso. Então durante esse governo, a presidência da república usou uma quantidade muito pequena de lutos oficiais. Os lutos oficiais que o governo decretou foram simplesmente ridículos sobre a quantidade de pessoas públicas que morreram durante esse período.

E a gente pode citar várias entre políticos, músicos tipo Irmão Lázaro que é músico evangélico e era até da base do governo, Marco Maciel que foi ex-vice-presidente, o Paulo Gustavo que teve a morte horrível, a atriz Nicette Bruno, o cantor Genival Lacerda, o cantor Agnaldo Timóteo, o compositor Aldir Blanc, Nelson Sargento, Paulinho do Roupa Nova, também a cantora religiosa Fabiana Anastácio, o prefeito Maguito Vilela que morreu antes de conseguir assumir a Prefeitura de Goiânia, o ator Tarcísio Meira, foram tantas pessoas e o no geral se manteve ausente para simplesmente decretar luto ou lamentar.

O próprio caso da Marília Mendonça, que não foi ligado a pandemia, rendeu somente um vídeo ridículo falando assim: “todo mundo vai morrer um dia”. Pelo amor de Deus, sabe? Se tivesse pelo menos a cara de pau de fingir que se importa, nem isso.

Luca: E acho que só pra encerrar, nós no episódio inteiro falamos sobre como é idiossincrática a relação de cada um de nós com a morte, como reagimos da nossa maneira, como que uma morte consegue ser impactante, como que uma morte às vezes tem consequências profundas na vida de cada um de nós todos nós. Todos nós, e você que está escutando, com certeza fomos obrigados a lidar com 700 mil mortes de uma vez no espaço de 1 ano e meio. Então é de se esperar que muitas pessoas acabem ficando…

Tiago: Anestesiadas?

Luca: Dormentes quanto a isso, anestesiados quanto a isso, normal. É deprimente você ouvir hoje 2 mil pessoas morreram e você não sentir nada do que você sente quando um amigo seu morre. Isso é compreensível. Mas de novo eu espero que nós nunca mais passemos por algo assim. Porque a morte é algo que passa por nossa vida e como disse o presidente ocorre, mas não deveria ocorrer com tanta insensibilidade.

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Equipe Introvertendo Escrito por: