Introvertendo 193 – Hiperfocos Estranhos e Bizarros

Se você já assistiu lutas de insetos por 5 horas, lê vorazmente as obras de Dougal Dixon ou se considera um busólogo, este episódio é feito para você. Carol Cardoso, Luca Nolasco e Michael Ulian, com participação especial de Mariana Sousa, contam os interesses mais obscuros de suas vidas, situações constrangedoras e também fazem uma reflexão do porquê certos interesses são considerados esquisitos ou bizarros na sociedade. Arte: Vin Lima.

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Transcrição do episódio

Luca: Sejam bem-vindos ao podcast Introvertendo. Hoje nós vamos falar sobre hiperfocos estranhos e bizarros e temos aqui eu, Luca Nolasco. Eu diria que eu não tenho muitos hiperfocos, mas eu sei que tenho.

Carol: Eu sou a Carol, sou autista e não só de astronomia vive o hiperfoco autista.

Michael: Olá, aqui é o Michael e uma gaivota senciente que fica falando besteira na internet o dia inteiro é um dos meus hiperfocos bizarríssimos favoritos.

Luca: (Risos) E temos também Mariana de Souza.

Mariana: Olá, eu sou a Mariana, eu sou autista e estou tentando sentir um pouco de conforto nesse episódio pra ver se talvez os meus hiperfocos não sejam tão esquisitos.

Luca: Também é bom lembrar que o introvertendo é uma produção da Superplayer & Co feito por autistas.

Bloco geral de discussão

Luca: Nós já falamos aqui no podcast antes o que é o hiperfoco, falamos em grande extensão sobre isso no episódio 170, caso alguém queira ver. Mas se a pessoa não tiver lembrando, tiver com preguiça de escutar, pra vocês o que é considerado hiperfoco?

Michael: A minha definição de hiperfoco mais do que qualquer coisa é um ponto de interesse muito grande, geralmente voltado a uma temática específica ou um assunto muito específico. Por exemplo, eu brinquei no começo aqui do episódio que um dos meus hiperfocos bizarros é eu ser o Gaivota. Mas ironicamente eu não considero todo esse estigma do Gaivota ser como hiperfoco porque é mais um traço de personalidade meu, quase uma personalidade completamente parada do que necessariamente um hiperfoco. 

Não fico o tempo todo pensando como que eu vou melhorar o Gaivota, como que eu vou ser mais gaivota, como que eu posso ser uma gaivota melhor, como que eu posso imitar uma gaivota. Isso daí naturalmente… eu sou o Gaivota.

Carol: Pra mim hiperfoco é tipo uma coisa que fica na minha cabeça por muito tempo e não dá trégua. Eu fico pensando nisso o dia inteiro. E eu não consigo dormir ou quando eu durmo eu sonho com isso ou sei lá… É alguma fixação que eu tenho e às vezes ela é prolongada ou às vezes ela é repentina e pode ficar tipo um tempão na minha cabeça mas logo passa. Parece que eu esgoto o assunto e pode ser uma coisa muito aleatória assim. E também é uma coisa que eu não escolho. Quando eu vejo eu já tô hiperfocada nisso e aí eu fico falando sobre isso com todo mundo que eu tenho oportunidade.

Mariana: O hiperfoco pra mim é quando eu me vejo obcecada por alguma coisa. E é uma coisa que acontece com muita frequência, tento ao máximo esconder os meus hiperfocos porque eu ainda acho isso um pouco esquisito, mas eu tô tentando desconstruir esse tipo de pensamento na minha cabeça, mas é geralmente uma coisa que começa a tomar parte da minha vida muito mais do que eu gostaria.

Luca: O tema de hoje é hiperfocos estranhos e bizarros, mas acho que antes vale a gente ter uma pequena discussão sobre. As coisas que a gente acaba tendo hiperfoco são de fato estranhas ou são coisas relativamente normais mas que por não ser muito bem algo que pessoas tendem a ter um foco tão grande, quando um de nós acaba tendo é visto com maus olhos? Vocês acham que é isso é só paranoia minha, como seria? (risos)

Carol: Olha, sinceramente eu acho que algumas coisas são estranhas, mas as pessoas acham tudo estranho. Então eu acho que em alguns casos, pensando em outros autistas que eu conheço e que tem um hiperfoco e que só gostam de falar sobre isso, as pessoas acham estranho mesmo que isso não seja estranho. Então se o negócio é realmente estranho, as pessoas vão num outro nível de achar estranho, por isso que a gente trouxe esse episódio. Porque além de ter a estranheza natural que as pessoas têm mesmo quando não é estranho e as pessoas acham estranho, existem coisas que a gente até reconhece que é meio esquisito.

Mas, sei lá, quando a gente tá com hiperfoco não adianta, porque não vai passar, sabe? Não passa, não dá pra gente dizer: “não quero mais ter esse hiperfoco”. Não tem essa opção, a nossa cabeça vai ficar reproduzindo esse assunto pra sempre, até em algum momento parar, né? E se parar. Então, eu acho que as estranheza talvez venha mais do processo do hiperfoco, de como que acontece, mas também tem uma camada de ser tão incomum que as pessoas criam esse estranhamento.

Mariana: Eu considero pelo menos os meus hiperfocos um pouco estranhos quando eu não consigo encontrar outras pessoas que tenham os mesmos interesses, sabe? Eu nunca consigo encontrar outras pessoas que tenham os mesmos interesses. É aí que eu começo a considerar, sabe?

Michael: Tenho uma visão um pouquinho diferente, porque pra mim eu sempre tive o estigma do estranho, do bizarro como algo positivo. Se algo é muito diferente do que eu tô acostumado a ver, “pera, deixa eu olhar isso, por que isso é diferente?”. Sempre foi um ponto assim de curiosidade. Mas é algo interessante que quando a gente põe nesse ponto de vista do hiperfoco, algo que eu vejo muito dentro da minha área acadêmica da Biologia e da Geologia é que tem coisas que mesmo a gente que tá acostumado já com essas coisas mais de nicho, a gente olha, para, pensa e: “Puta que pariu! Eu pensei que já tinha visto de tudo no mundo, mas isso é extremamente estranho, não estava preparado pra ver isso”. Inclusive quando é algo meio difícil de explicar, de contextualizar e é algo que vai ficar mais claro quando eu for falar um pouquinho mais das nossas experiências pessoais, porque daí eu vou poder dar alguns exemplos. E vocês vão poder ver que mesmo pra quem tá acostumado a mexer com bichos que já estão extintos há muito tempo e já viu toda bizarrice na natureza no nosso planeta, o que a mente humana é capaz de criar, é capaz de inventar, é capaz de descobrir, é incrível. A única coisa que eu vou dizer é que é incrível.

Luca: Tem quem considera aquele hiperfoco muito famoso, ridicularizado às vezes de busólogos. Pra quem não sabe é o hiperfoco em ônibus. Tem quem considere esse hiperfoco algo bizarro e fica ridicularizando e tudo mais. Mas também é bom lembrar que uma parcela significativa dessas pessoas aficionadas por ônibus coincide de serem autistas também. Nesse caso, vocês considerariam algo estranho, inofensivo, algo relativamente normal, mas que acaba sendo ridicularizado? Como vocês veem esse caso?

Michael: Eu quero falar num contexto um pouquinho maior, porque a impressão que eu tenho é que essa questão dos busólogos não tá exclusivamente neles. Eu vejo muitos grupos de pessoas principalmente nessa área de engenharia mecânica, algumas outras áreas do conhecimento mais técnico tem bastante também, mas isso é muito evidente em engenharia mecânica, que são autistas e tem um hiperfoco específico em algum tipo de equipamento. Lá fora tem uma comunidade enorme que é aficionada por trens, às vezes eu topo no YouTube com vídeos de horas e horas de pessoas falando. Eu ouvi um que eu acho que, se não me engano, tinha mais de cinco horas de duração falando sobre história do trem.

Luca: Pois eu também já vi isso (risos)

Michael: E assim, um modelo específico e assim cinco horas de vídeo falando sobre a história desse modelo, onde foi usado, como e porquê. Praticamente essas áreas da engenharia mecânica você vai achar um grupo de pessoas, muitas vezes elas são mesmo autistas, e que são aficcionadas por isso. Eu mesmo já comentei aqui eu tenho um desses hiperfocos que eu tenho com equipamento militar e justamente entra nessa parte da parte mecânica, a fascinação vem de literalmente saber tanto a história quanto as características mecânicas, como aquilo funciona, porque, como foi desenvolvido, qual o objetivo. Por mais que o exemplo dos busólogos seja ridicularizado, é engraçado que quando você passa esse interesse pra algo que é mais mundano, e é exatamente a mesma coisa, de repente isso fica normal. Às vezes você até parece que as pessoas que tão interessadas mesmo não são autistas, são só gente normal que tá interessada nisso. E o exemplo seria carros, carros e motos. Tipo tem gente que tem esse mesmo questionamento, esse mesmo “hiperfoco”. Elas são só focadas, conseguem tirar detalhes por detalhes do veículo que elas tem, às vezes elas vão até mais a fundo do que as pessoas aficionadas em outros tipos de equipamentos mecânicos que são menos comuns ou arquitetônicos ou etc, porém normalmente isso não é visto como algo anormal socialmente. É tipo: “o cara gosta de carro, é o que ele gosta de falar, é o que ele gosta, ah o cara gosta de moto, é o que ele gosta”.

E é interessante quando você passa para esse estigma de que isso é normal, de repente parece ter a impressão de que isso desconecta um pouco do… não seria um preconceito, mas a ideia de que “ah, o cara é muito focado nisso, ele é especialista nisso, ele consegue falar com detalhes isso, deve ser autista”.

Luca: Eu tendo a concordar com que o Michael disse principalmente na fala em que os focos muitas vezes são extremamente semelhantes, mas porque um deles é em algo um pouco menos comum, um pouco mais específico que ambos de qualquer maneira são automóveis, ambos têm semelhanças gigantescas. E muitas vezes a pessoa quer ir até o lugar, quer ver, quer sentir o barulho e experienciar a coisa em primeira pessoa, só que uma é um pouco mais específica e por isso é muito ridicularizada. E eu vejo até maldade nisso de ridicularizar porque um é “normal” e o outro é visto como algo desviante, algo estranho, sendo que é inofensivo da mesma maneira, eu acho. Pra mim é algo realmente bizarro e estranho quando passar a afetar negativamente a vida da pessoa ou de quem vive em volta, mas e pra você Carol? Essa questão principalmente dos busólogos, mas de outras que são ridicularizadas também.

Carol: Eu acho que uma das coisas talvez motive esse tipo de ridicularização é que a gente tem a impressão de que tudo tem que ser útil. Então se uma coisa não entra na cabeça das pessoas como sendo algo útil, naturalmente é estranho e não serve pra nada. Então de que que serve a vida da pessoa ela se interessar por ônibus? Eu não sei, mas é porque eu não me interesso por ônibus e a pessoa que se interessa por ônibus naturalmente sabe o que que tem de interessante em ônibus.

Então às vezes as pessoas não pensam assim: “se a pessoa está interessada nisso, é interessante”. Porque se não fosse interessante, não tava interessada. E o fato de eu não estar interessada no assunto não quer dizer que esse assunto seja desinteressante. E eu acho que mais uma vez a gente tem que ensinar pras pessoas como como funciona uma coisinha chamada empatia, que é a gente entender que pra uma pessoa algo pode ser muito interessante isso e deixar a pessoa curtir isso que ela curte, sabe? Às vezes a gente fica tentando falar uma coisa que é meio óbvia. Parem de ficar achando estranho a vida das pessoas, sabe? É isso, eu tô nessa vibe hoje.

Luca: E pra você, Mariana?

Mariana: Eu acho muito errado, mas isso é bem mais comum do que se pode imaginar. Acho que também é por isso que eu tenho esse hábito de esconder. Às vezes eu escondo algo que nem é realmente um hiperfoco, às vezes é só uma coisa que eu gosto mesmo. Mas eu tenho muito esse hábito de esconder as coisas que eu gosto, que eu tenho apreço justamente pra evitar esse tipo de julgamento, sabe? Parece quase um hábito da nossa sociedade julgar o que as outras pessoas gostam, o que as outras pessoas fazem ou deixam de fazer, sabe? E tipo, é literalmente um hobbie, pode ser o que você quiser, mas ainda assim, as pessoas vão ficar em cima de você e julgando como se aquilo fosse impactar negativamente na sua vida quando não impacta de forma nenhuma.

Carol: Isso que a Mariana falou me lembra muito o que acontece com a cultura nerd. Então, tipo, algum tempo atrás, tudo que tinha a ver com o que hoje a gente chama de cultura nerd, tipo RPG e fantasia e essas coisas, super-herói, já foi considerado muito estranho e motivo de bullying. E hoje em dia é um negócio que rende muito dinheiro. Então parece que a coisa só é naturalizada quando rende dinheiro. As pessoas não acham estranho uma coisa pela coisa em si, mas como elas posicionam essa coisa diante do contexto social, sabe?

Luca: E com isso que a Mariana trouxe, já vamos pra parte final onde a gente vai falar um pouco sobre os nossos hiperfocos que a gente para e olha e fala: “meu Deus, isso é muito estranho” (risos).

Mariana: Nossa, eu já tive foco em coisas muito estranhas. Pode ser que as pessoas não considerem estranhas, mas eu considero porque eu não conseguia encontrar outras pessoas que tinham os mesmos hobbies, sabe? Mas eu tive uma época que eu tinha um hiperfoco tão grande em um inseto específico, que era o Louva-a-deus. Era grande a ponto de eu ficar horas no YouTube vendo vídeos de pessoas criando louva-a-deus fazendo tudo assim. Eu lembro que tinha um canal no YouTube que era só pessoas comentando sobre briga de inseto, sabe? As brigas eram na natureza e eles juntavam vários especialistas para deduzir qual dos insetos ia ganhar, sabe? E tipo assim, eram vídeos de duas horas, três horas e eu passava a noite inteira assistindo. Eu me peguei várias vezes chorando porque eu não tinha um louva-a-deus, sabe?

Carol: Meu Deus! (risos).

Mariana: E eu precisava daquilo pra viver. E assim como veio, passou também. Mas até hoje se eu ver algum vídeo de inseto, de grilo, de louva-a-deus que tem as mesmas características assim, eu sempre fico muito focada, tipo e parece que tudo aquilo volta de novo, sabe?

Luca: Os nossos ouvintes biólogos agora estão com muita raiva de ela ter dito que são as mesmas características. Vai, continua.

Carol: (Risos)

Mariana: Eu também já tive em filmes, eu tive num filme que eu assisti ele muitas vezes, eu assisti ele umas cinco vezes e eu escutava as músicas do filme no no Spotify, eu comprei o livro que tinha história do filme e assim, aquilo não saia da minha cabeça nem um minuto, sabe? Inclusive o nome do filme é Burning e eu ficava o tempo todo pensando naquilo. Eu tava literalmente tirando leite de pedra, não tinha mais nada pra se pensar sobre aquilo e a minha mente não parava. Em músicas. O meu mais recente foi reforma de boneca no YouTube. Eu via vídeos de horas de pessoas apagando todos os traços faciais de uma boneca e refazendo todos eles com um lápis mais fino que existe e aquilo ali era como um oxigênio pra mim, sabe?

Luca: E um detalhe dos bastidores que talvez interesse aos ouvintes: a Mariana pegou as bonecas que minha irmã doou e tentou reformar todas que tinham lá em casa, pintou e tudo mais é algo que realmente extravasou só o YouTube.

Carol: Eu também tive essa coisa de filme que foi um filme muito específico que se chama Ela é o Cara. E esse filme não tem absolutamente nada de especial, sabe? É um filme comédia romântica idiota, besta, mas esse filme ficou tão marcado na minha cabeça, eu fiquei tão obchecada por esse time que eu assisti ele mais de 324 vezes, porque eu parei de contar. Não sei falar em decimal 324, mas enfim 324 vezes depois eu parei de contar.

Luca: Meu Deus!

Carol: E isso parece meio esquisito (risos).

Michael: (Risos)

Carol: Eu sei que parece muito bizarro. Como a pessoa arruma tempo pra ver 324 vezes um filme? Foi na época que existia locadora e aí eu aluguei esse filme três vezes e dessas três vezes que eu aluguei, cada vez que eu alugava em fim de semana, eu assistia a ele umas três vezes. Eu não sei porque que isso aconteceu, por isso que eu digo que hiperfoco é uma coisa que vem do nada e vai embora do nada e que não adianta porque quando vem já era. E não dá pra gente dizer: “ah, eu quero muito ter hiperfoco em engenharia”. Não dá porque não é assim que funciona. E aí, como eu não queria ter que alugar de novo o filme, eu peguei o meu celular e filmei a tela da televisão e guardei o filme no meu celular. Então quando eu ficava estressada ou nervosa ou não querendo conversar com ninguém, eu ia lá e assistia o filme de novo. Eu já eu sabia as falas inteiras do filme inteiro. E quando eu não tava assistindo o filme, eu reproduzia as falas na minha cabeça e às vezes eu falava em voz alta mesmo as falas do filme. Então é uma mistura aí de hiperfoco com ecolalia, alguma coisa do tipo, porque foi realmente muito intenso, isso durou algum tempo. E aí um dia, minha prima me deu de presente o DVD desse filme. Ah, eu esqueci de falar que toda vez que eu ia numa loja de departamento, eu entrava numa loja e já ia pro lugar onde vendia DVD e ficava procurando todos os DVDs pra ver se eu achava o DVD desse filme. Então foi bem intenso.

Luca: (Risos) Eu nunca tinha escutado uma história semelhante, eu achei fascinante isso. E contigo Michael?

Michael: No meu caso, eu tenho três hiperfocos diferentes que eles basicamente existem desde que eu existo quase tipo assim. Basicamente no momento que eu aprendi sobre a existência desses temas eles viraram hiperfoco e tá aí até hoje. O primeiro e mais óbvio é meu hiperfoco nas ciências naturais, especificamente na paleontologia. O segundo é meu hiperfoco em equipamentos militares. Só que assim, normalmente eles sozinhos não são muito estranhos para mim. Mas eles são um bem estranhos pra população geral, especialmente quando você comenta que você tem 23 anos e ainda gosta de dinossauros. É algo bem interessante de se fazer. Mas no momento que eles começam a ficar bizarros até pros meus padrões e dos padrões das comunidades que eu participo é quando eles interagem com meu terceiro hiperfoco, que é o hiperfoco em worldbuilding.

Pra quem não sabe o que é worldbuilding, literalmente traduzindo, é construir mundos. Cara, é difícil definir o que ele é porque é como se fosse uma ferramenta literária em que é usada para construir as bases do mundo geralmente servindo pra uma história, apesar de que tem bastante gente, no meu caso eu incluso, que faz somente essa parte de worldbuilding. Eles não têm tanto interesse em criar uma narrativa, só tem interesse de ver a criação deles mesmo. É algo que tem um nível de complexidade que vai às vezes de algo bem simples… se cê pensar, praticamente toda mídia tem pelo menos algum nível de worldbuilding, principalmente se ela é fantasia, ou seja, tem alguma explicação por trás do porquê essas coisas são diferentes da realidade que a gente vê.

Então assim, isso vai de algo bem simplesinho, coisas que nem você vê worldbuilding de alguns filmes assim mais pipocas sem muita lógica, sem muita coisa séria, muito pensada, porém isso vai em alguns níveis vai muito avançado, ao ponto que dentro das ciências naturais você tem muitos cenários de worldbuilding que acabam virando exercícios acadêmicos. E dentro dessa área o que de longe uma das partes mais bizarras disso e mais engraçadas mas que ao mesmo tempo é algo que é muito útil dentro da academia, principalmente pra gente que trabalha com a paleontologia e evolução, é uma subárea de worldbuilding chamada evolução especulativa. E como o nome diz é bem literal, é literalmente a gente, cientista já, quer dizer, eu tô fora da academia no momento, mas tem um monte de gente que é.

Inclusive o pai desse subgênero, o Dougal Dixon, é um geólogo com muita experiência e basicamente é um bando de marmanjo já no mestrado, doutorado, às vezes já até passou disso, brincando de faz de conta. Literalmente o cara senta e pensa: o que vai acontecer no mundo daqui 50 milhões de anos? O que aconteceria se o meteoro que extinguiu os dinossauros não tivesse caído? O que aconteceria se a extinção do periano-triássico não tivesse acontecido? O que aconteceria se essa criatura específica tivesse sobrevivido a essa extinção X? O que aconteceria se a gente incluísse essa criatura Y nesse cenário Z? É muito útil academicamente porque você permite criar cenários, criar simulações.

O quão mais sério você aplicar isso, você realmente consegue tirar uma boa análise porque geralmente você tá trabalhando com suposições limitadas e tentando extrapolar acima disso e geralmente quando a gente tá trabalhando, principalmente na paleontologia, é exatamente o que a gente faz, a gente tem que extrapolar em cima de muita pouca informação. Então um cenário em que a gente pode treinar esse aspecto é muito interessante.

Inclusive eu conheço gente, eu tenho um colega meu pessoal que fez se não me engano o TCC dele, por exemplo, tentando simular a ecologia das ilhas do Jurassic Park. Ele pegou as pouquíssimas informações que dava para tirar dos filmes e dos livros e com isso ele conseguiu criar um modelo ecológico completo daquelas ilhas. Isso é algo que se você tá dentro dessa área específica, é fascinante. Porém também tem o aspecto que é extremamente bizarro, até mesmo pra gente, que é quando isso entra num aspecto mais conceitual e filosófico da pergunta de quem vai mexer com evolução especulativa de seres humanos.

E algum tempo atrás na internet começou rolar um meme de uma criaturinha que parecia uma tartaruga no espaço, algo bem bizarro que era assim inclusive falando: “ah esse é o homem daqui cinquenta bilhões de anos” e uma tonelada de memes em cima disso. Virou algo até popular. Na época, a South America Memes floodava meme com essa imagem específica. E essa imagem é de um livro do Dougal Dixon, do pai da evolução especulativa. E esse livro específico é bizarro, é praticamente um alívio cômico dentro da academia.

Mas é engraçado porque tem estudos mais sérios assim, ainda um pouquinho mais na parte de literatura menos a parte acadêmica, mas também tratando bem o sistema de evolução humana que são ainda mais bizarros. Tipo coisas que o Dixon fez no Man After Man, que é o livro que surgiu essa criaturinha do espaço. Lá inclusive a tradição livre é Homem Depois do Homem e elas parecem normais perto de outros livros nesse mesmo subgênero que nem All Tomorrows, e eu nem recomendo ninguém ir atrás porque é algo tão bizarro que se você já não ter um interesse muito específico nisso, você não vai conseguir entender porque isso existe. Tipo, vai olhar principalmente pras ilustrações que tem daquilo e pensar: “Puta que pariu, que que eu tô olhando? Acho que nem a porcaria do Lovecraft conseguiria imaginar uma merda tão grande como essas!”

Luca: (Risos) Agora é tempo de eu lavar roupa suja com ninguém específico. Meu hiperfoco por muito tempo muita gente considerou estranho e até me zoou com isso, e no final das contas serviu pra alguma coisa, é que eu tinha uma coisa com vídeos de química. São canais relativamente famosos e muita gente assiste, geralmente as pessoas assistem e fica por isso, sabe? Não, eu não conseguia parar de pensar.

Eu passei a estudar química para entender melhor os vídeos e antes eu era uma negação em química. Eu almoçava assistindo, madrugadas assistindo, e no fim das contas isso me ajudou muito porque química era uma das matérias decisórias do meu ENEM e foi por conta dessa matéria e de mais algumas que eu consegui passar num curso de Biomedicina, então hoje eu tô numa faculdade em alguma parte por conta de um hiperfoco besta meu (risos). Então às vezes serve para diversas coisas na nossa vida, né?

Carol: Vou contar uma história que ainda é mais ou menos parecida com o filme Ela é o Cara, que foi porque eu fiquei com hiperfoco na Amanda Bynes também, que é a atriz que faz esse filme. Então eu baixei mais de quatrocentas fotos dela, eu baixei todas as fotos dela que eu encontrei na internet, e era aquela internet antiga ainda que o Google era todo feio e a gente tinha que passar pro lado toda vez que fosse ver uma foto. E eu baixava essas fotos e ficava olhando. E eu sei que isso é meio bizarro porque teve uma polêmica algum tempo atrás sobre hiperfoco em pessoas. Não sei o que pensar sobre isso, mas ao mesmo tempo eu sei que eu fiquei muito hiperfocada na figura dessa pessoa e que tudo que eu sabia sobre, tipo toda informação que eu encontrava na internet sobre ela eu fiquei sabendo. Então eu sabia o nome dos animais de estimação dela e eu sabia onde ela tinha nascido. E eu sei que isso é bem bizarro, eu acho que define o episódio como sendo bizarro, porque é estranho a gente pensar que a gente pode querer saber tanto sobre a vida de uma pessoa aleatória. E sei lá onde que isso se enquadra em manuais diagnósticos, mas eu tô só lançando aqui a minha parte esquisita.

Tem outra história que eu queria contar que é como que o hiperfoco pode ser perigoso. Teve uma vez que eu li um livro que se chama A Mágica da Arrumação, de uma autora que eu gosto de chamar de Marie Kondo e ela basicamente ensina a gente a arrumar as coisas e não bagunçar mais. Só que não é só isso, ela dá uma profundidade pra coisa. E quando uma pessoa tem uma mente extremamente literal e tem a tendência ao hiperfoco, isso pode dar muito errado e no meu caso deu. Então ela dizia que tudo que a gente não sentia alegria, a gente tinha que jogar fora. Ou não, ela dizia descartar, mas eu não sabia que descartar era dar um destino, eu achava que era descartar era jogar fora mesmo. E no fim do dia ela dizia que tinha que fazer tudo num dia só, porque senão a gente ia ficar com preguiça e ia desistir. Então eu fui fazer tudo no dia só.

E num dia só eu desarrumei todas as minhas coisas, absolutamente tudo que eu tinha, e comecei a jogar fora tudo. E foi um surto, porque eu percebi depois de um tempo que eu tinha jogado coisas que eu precisava e que eu não achei mais e que de vez em quando eu fico tipo: “Ai, onde foi tal coisa? Ah, a Marie Kondo levou, porque ela levou as minhas coisas todas praticamente. Eu joguei fora, documento, eu joguei fora uma carteira de identidade porque eu já tinha outra, eu joguei fora provas da faculdade, eu joguei fora todos os meus desenhos e eu não sei porque que eu fiz isso, mas é que eu só conseguia pensar nesse livro durante algum tempo. Então acabou que deu muito errado e depois disso eu fui parar pra pensar como que a nossa mente pode fixar em alguma coisa que não faz bem pra gente. Mas não adianta, porque armadilhas do autismo.

Luca: Quero agradecer a todo mundo que escutou até agora. E se você tem suas histórias de hiperfoco curiosos ou até bizarros na sua visão, basta mandar pras nossas redes ou email que a gente com certeza vai fazer questão de ler e responder. É isso, muitíssimo obrigado e até a próxima.

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