Introvertendo 188 – Empatia e Teoria da Mente

Um dos conceitos mais popularizados sobre o autismo, ao longo da história, diz respeito aos déficits que autistas apresentam na Teoria da Mente. No entanto, isso também ressoou no estereótipo de que “autistas não tem empatia”. Thaís Mösken e Tiago Abreu receberam o psicólogo, professor e autista João Paulo Martins para uma explicação conceitual de empatia e Teoria da Mente, as dificuldades de autistas em torno do tópico, além de hipóteses e discussões recentes, como o chamado problema da dupla-empatia. Arte: Vin Lima.

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Transcrição do episódio

Thaís: Um olá pra você que é ouvinte do podcast Introvertendo, esse podcast feito por autistas pra toda a comunidade. Meu nome é Thaís Mösken, eu sou autista, tenho 30 anos e fui diagnosticada em 2018. Hoje eu vou ser host desse episódio que a gente vai falar sobre empatia e teoria da mente.

Tiago: Meu nome é Tiago Abreu, sou jornalista, um dos integrantes aqui do Introvertendo e eu acho que uma das principais tarefas dos autistas é exatamente reforçar que autistas têm empatia sim.

Thaís: E hoje a gente trouxe também o João Paulo Martins que é muito mais especialista do que a gente pra falar a respeito desse tema. Então, João Paulo, por favor, se apresente.

João: Pessoal, meu nome é João Paulo Martins, todo mundo me conhece como JP, atualmente eu tenho trabalhado com relação a psicologia clínica e docência universitária, tenho 32 anos, sou autista e trabalho também nessa área da pesquisa justamente dessa perspectiva da mente. Sou graduado em psicologia e no final da minha graduação eu tive mais dúvidas do que certezas com relação ao que é a mente, causação mental, enfim, aí eu procurei um um mestrado que me desse suporte com relação a isso e acabei caindo num mestrado de Filosofia da Mente e aí na busca de respostas do mestrado, eu saí com mais perguntas ainda. Então, tamo aqui pra trocar uma ideia sobre isso.

Thaís: O Introvertendo é um podcast feito por autistas com a produção da Superplayer & Co.

Bloco geral de discussão

Thaís: E se você conhece já o nosso podcast há algum tempo ou se chegou a ler a nossa lista de episódios, você deve ter percebido que a gente já tem um episódio falando sobre empatia, o episódio 10, mas ele já tem algum tempo e a gente acha que é melhor evoluir essa discussão, inclusive, trazendo um embasamento melhor, embasamento científico, alguém que realmente tenha estudado esse tema, então a gente vai complementar aquela discussão conversando hoje com o JP. Então JP vamos lá, vamos começar com a nossa primeira pergunta: o que é empatia e teoria da mente?

João: Primeiramente eu quero agradecer o convite. Pra mim é uma honra tá participando aqui do podcast juntamente com vocês e falar também que eu sou um “escutador” assíduo do podcast. Muito obrigado pelo convite de estar aqui com vocês hoje.

Tiago: Ah, a gente fica vermelho (risos).

João: (Risos) Então quando a gente fala de Teoria da Mente, a primeira vez que eu ouvi sobre isso, eu fiquei pensando literalmente o que era uma teoria da mente. Tanto que no mestrado, quando ainda eu tava fazendo, a gente tem várias teorias para falar sobre a causação do mental, o que é mente, se a mente tem a ver com o cérebro ou se, na verdade, isso daí é só um vocabulário que um dia vai acabar como eles usam bastante a questão duma metáfora que, por exemplo, a alquimia deu lugar a química e a alquimia acabou, então daqui um tempo essa questão do mental ele vai ser só uma fala sem nenhum tipo de validade, sem nenhum lastro, que daqui a pouco vai acabar. Então as primeiras vezes que eu ouvia sobre essa questão da teoria da mente eu ficava pensando sobre isso. E se você for pensar nessa questão do autismo e teoria da mente, o que ela quer dizer na verdade é uma habilidade. Ela não é uma teoria literal, é uma habilidade de você reconhecer ou não estados mentais, estados emocionais ou aquilo que leva uma pessoa a fazer determinada coisa por uma situação emocional. O que ela quer significar, então, teoria da mente, seria isso.

A questão da empatia eu acho muito interessante que a gente pode separar a palavra empatia em dois termos. Os dois termos são gregos, o primeiro é o termo im, que significa dentro, e o termo patia que vem da palavra pathos. Essa palavra pathos é uma palavra do grego antigo que a gente tem algumas consequências dela atualmente. Uma dessas consequências dá origem a palavra paixão e outra decorrência da origem da palavra patologia, ou seja, doença. Então empatia significa a paixão ou o sentimento de dentro. Então, acontece que nessa questão de empatia é quando você consegue reconhecer aquilo que o outro sente ou aquilo que é o estado interno da outra pessoa. Então a gente tem essa relação entre então a questão da teoria da mente e da empatia, ou seja, o entendimento próprio daquilo que o outro tá sentindo e pensando em uma questão assim de você ter uma habilidade. E a hora que você também descreve as questões da teoria da mente você tem dois subgrupos que é a teoria da mente implícita e a teoria da mente explícita. A teoria da mente implícita é o ato intuitivo, digamos assim, de você perceber e a teoria da mente explícita também é o ato de perceber mas de uma forma racionalizada.

Eu tinha bastante dificuldade com essa questão de um reconhecimento facial de uma emoção na outra pessoa e, no caso, por exemplo daquilo que eu mais tenho facilidade hoje é a teoria da mente explícita, digamos assim. Porque eu tive que buscar um curso de reconhecimento facial. Então hoje nitidamente eu consigo reconhecer o estado que uma pessoa tá por um conjunto de expressões faciais que eu somo musculaturas faciais. Então, nessa soma, é muito aquela questão de alguns estudos de um autor que se chama Paul Ekman. Então, ele vai colocando sobre isso. Então, é essa relação da empatia e da teoria da mente.

Tiago: É muito legal você fazer esse contexto, porque muitas pessoas não conseguem compreender a diferença entre as duas coisas porque são dois conceitos diferentes, em certa medida, da forma como isso tá relacionado a autismo. E essa dificuldade de reconhecer os estados mentais, de reconhecer expressões faciais e várias várias outras dificuldades que estão relacionadas a uma percepção do autismo baseado em déficits tem historicamente também levado aquela ideia de que autistas não tem empatia, que é um discurso que foi muito reproduzido e que ainda é comum infelizmente. De onde que surgiu isso?

João: É uma questão muito pontual isso, né Tiago. Até na minha carreira profissional, através de orientações de trabalho e tudo mais, eu vejo até a questão de alguns trabalhos de alunos serem embasados com essa afirmativa. É uma coisa que eu vejo que tá bastante arraigada no nosso contexto e que de uma determinada forma acaba meio que estigmatizando. Eu fico pensando muito na questão, por exemplo, desse déficit de reconhecimento de fato tem proporcionado que uma pessoa com autismo seja dita que não tenha essa empatia. E eu vejo por exemplo particularmente quando eu tinha muito déficit, quando eu tinha essa essa questão por exemplo de não entender o que a pessoa tava sentindo nem por esse reconhecimento facial, acabava me gerando problemas, porque eu perguntava. Então por exemplo assim, às vezes por exemplo eu via algum determinado estado mental e eu perguntava o que que tá acontecendo? E muitas vezes o que era engraçado a pessoa achava que era ironia, que eu tava perguntando. E não era ironia. Era uma questão extremamente séria.

E aí, respondendo de fato a pergunta, eu acho que de fato, a hora que a gente pensa na história do autismo, por exemplo, ali em 1911, quando surge o uso da primeira vez da palavra autismo, ela vem como recorrência a uma questão de uma outra patologia. Não que o autismo seja patologia, mas ainda tem nos manuais diagnósticos, então um transtorno de fato. E a hora que a gente pensa no autismo, ele tem a ver com a esquizofrenia.

Então dentro dos manuais diagnósticos, que é um trabalho que eu tenho tido atualmente de pesquisar desde o DSM-1 até o DSM-5 a correlação que a gente tem dos quadros de autismo, você vê que por exemplo dentro do DSM-1 e o DSM-2 ainda são quadros integrantes daquilo que é sintoma esquizofrênico, e eu acho que é de um desenvolvimento histórico que a população acredita de fato que autistas não tenham empatia. Quando a gente pega por exemplo o DSM-3, você já tem uma influência muito grande de uma teoria psicanalítica fundamentando das questões que o autismo é uma decorrência emocional. E na hora que você pensa na decorrência emocional eles vão colocar a questão por exemplo de “mães geladeira”, são as mães que não dão efetivamente o próprio carinho aos filhos e aí eles se tornam frios juntamente com essa perspectiva materna. E uma das questões que entram como essa o processo de cura propriamente dito é que os filhos são levados a uma espécie de escola no qual eles são isolados de toda a família, porque a família não dá o apoio necessário.

Então eu vejo que nesse contexto histórico há uma uma correlação, até os dias de hoje, sobre essa procedência. É alguma coisa que eu até costumo dar como exemplo que questões ideológicas com relação a qualquer tipo de patologia estão muito nos nossos discursos e eles vem nos até os nossos tempos metaforicamente falando de como se fosse um WiFi: ele tá aí, mas a gente não vê. Eu acho que tem essa correlação por uma questão histórica de uma perspectiva de um modelo talvez biomédico que foi um modelo muito pontual no passado.

Thaís: Bom, e vários de nós já passamos por muitas situações parecidas com o descrito de ter sofrido esses estereótipos. Então JP, você poderia contar um pouco de alguns exemplos, alguns casos que você conhece, em que esse tipo de estereótipo em relação a empatia impacta na comunidade do autismo?

João: Tenho sim. Eu acho que até mesmo em questões laborais um episódio que aconteceu foi muito caricato, pelo menos pra mim, que a partir do momento que eu tô em determinada situação, eu tenho que ter critérios para saber como me comportar nessa situação. Então, por exemplo, teve um determinado episódio logo depois de eu ter tido assim o meu diagnóstico, a minha descoberta com relação ao autismo, eu fui revendo todos os meus critérios do que era ser professor, do que era ser amigo, do que era ser, enfim, vários tipos dessa dessa coisa assim. E eu comecei a perceber que alguns critérios que tinha como, por exemplo, ser professor, tava meio que misturando com ser amigo ou ser colega, ou ser algumas coisas desse tipo. E aí alterei o critério. E aí o que me aconteceu foram alguns problemas, de fato. E os problemas foi que eu comecei a ser um tanto quanto mais rígido nesse sentido como professor e agora não mais como amigo. E isso gerou algumas reclamações por parte dos alunos, obviamente.

Até que então fui conversar com meus superiores e o que foi muito interessante é que a gente começou a conversar e aí caiu no assunto por exemplo de ter tato. E é alguma coisa que eu não tenho, por exemplo: se eu não sei o que a pessoa está sentindo, eu não sei como agir. E agora para pra pensar: as aulas, como elas estão ocorrendo nesse momento histórico que a gente tá vivendo, são aulas remotas. Então quando eu costumo falar e dar aulas remotas, geralmente o que fica na minha tela são bolinhas. Eu não vejo mais as pessoas. As pessoas muitas vezes quando você pergunta também não falam o que tá acontecendo. Então eu nunca poderia saber que o critério da rigidez estaria sendo alto. Então acontecia muito, por exemplo, nesse sentido. Então o que foi colocado nessa questão era muito tipo assim: “tenha tato pra fazer alguma coisa porque estão desesperadas”. E eu nunca percebi que as pessoas estavam desesperadas porque ninguém me falou.

A partir do momento que eu comecei a saber pela hierarquia, pela minha superior, que os alunos estavam desesperados, aí eu comecei a entender quais critérios eu deveria usar naquela situação. Então uma coisa é entender o motivo pelo qual a pessoa tá vivendo, o que é o desespero ou o que é alguma coisa e no caso, por exemplo, eu utilizo muito isso daí por base de critérios. Então, agora eu sei que a pessoa está desesperada por isso e agora eu sei como agir nessa situação. Mas coisas que não ficam claras nesse sentido, eu me perco.

Thaís: Eu acho que eu me identifico bastante com vários desses aspectos que você comentou de eu ter que saber racionalmente sobre uma situação, sobre o que uma pessoa está sentindo. Eu uso muito perguntas mesmo e eu sei que nem sempre as pessoas respondem com o que elas estão sentindo, mas eu entendo que estou fazendo minha parte normalmente nesse aspecto, inclusive no meu trabalho. E eu tento deixar claro também pras pessoas a dificuldade que eu tenho de entender as coisas se elas não me falarem com palavras de forma clara. Mas imagino que realmente quando você lida com alunos e algo similar seja bem mais difícil do que no meu trabalho que é mais fácil. Quer dizer… não sei se o meu trabalho é mais fácil mesmo, mas enfim (risos).

Tiago: Sim, sim. Inclusive você falou que você não sabe se o ambiente de trabalho é mais fácil ou não e eu também fico pensando em relação aos contextos que eu estou inserido de trabalho, profissionais. Cada contexto é um contexto, então seria muito difícil medir isso. Mas voltando à questão do tema do nosso episódio, eu queria muito perguntar pro JP então qual é a questão da empatia nos autistas de fato? Qual é a discussão que a gente tem sobre isso, fora desses estereótipos de que autistas não têm empatia e etc?

João: Eu posso falar, por exemplo, por mim. E aqui também não querendo entrar naquela discussão de níveis de apoio, no meu caso, eu sou nível de apoio 1 e falando por mim e pelas pesquisas atualmente que eu tenho feito autistas de fato tem empatia. A questão é o reconhecimento e a forma de demonstração. Então o que eu vejo é uma questão muito racional e pensado do que propriamente uma intuição. E aí entra propriamente na própria questão do que é esperado que uma pessoa responda, o que a gente chama do que é adequado, e essa é a própria questão da adequação do que é pra responder em uma determinada situação é uma coisa que eu acho que dá muito assunto. É uma das linhas que eu atuo ultimamente na parte da filosofia que a palavra que a gente usa pra isso é hermenêutica. E a hermenêutica, na verdade, a gente faz uma leitura de contexto, uma leitura de mundo. Então, por exemplo, algumas coisas a gente pode falar que estão sendo usuais nesse tempo, mas que em tempos passados isso não entraria, não se adequaria e aí entram várias coisas. Por exemplo, a própria questão também (não vou me prolongar que é um tema bastante complexo), a questão do termo homossexualidade. Então, assim, é um termo que tem um determinado cunho histórico e antes dessa data histórica, eu não poderia colocar uma pessoa como sendo homossexual de fato, não que ela não tivesse práticas homoeróticas ou afetos homoafetivos, mas o termo começa de um determinado momento e a partir daí começa-se ater. Então, por exemplo, a hora que a gente pensa na história do mundo, a hora que a gente pensa, por exemplo, que o homem é um ser racional, essa própria questão já é histórica.

Através disso, dessa construção histórica, tem determinados tipos de comportamento e determinados tipos de resposta e determinados tipos de adequação que de uma certa forma a pessoa espera. Então por exemplo, me parece que soa estranho para um determinado tipo de pessoa quando um autista tem uma resposta um tanto quanto mais racional para um determinado assunto, por exemplo, um assunto que tá bastante à tona na questão da mortalidade por conta do Covid, lida assim muitas vezes de uma forma mais racional que a vida tem um fim, ela tem um ciclo e tudo mais do que propriamente de uma forma emotiva. Então, muitas vezes, a resposta que uma pessoa autista dá pode ser diferente, mas isso não significa que ela não está sentindo. E aí entra numa outra questão também que muitos autistas podem ter que é a questão da alexitimia, se eu não me engano. Que é a própria questão de eu saber falar sobre o meu sentimento. Essa é uma questão que eu não sei em relação a vocês pessoal, mas eu tenho bastante dificuldade de dar nome pra alguma coisa que tá aqui dentro, aquilo que eu sinto. E é muito peculiar isso. Por exemplo, o que eu sempre faço pra saber o que eu tô sentindo é pegar um violão e tocar. E muitas vezes eu gravo isso pra ouvir e a hora que eu ouço eu consigo dar nome aquilo que eu sinto. A questão do autismo pode parecer que ele não tem esse contexto de empatia e tudo mais porque a forma de responder é diferente. E isso é muito peculiar, eu falo assim de uma maneira muito particular, a própria questão de relacionamentos afetivos. E aconteceu comigo um caso bastante caricato. Era alguma coisa assim que eu sofria horrores porque no caso eu tinha uma pessoa e eu não sabia se eu tava com essa pessoa, se eu tava namorando, se eu tava ficando, se eu tava ficando sério, se eu tava só saindo e confesso que a outra dificuldade minha nessas questões de terminologias eu me perco. Então não sei se eu tô saindo, ficando, ficando sério, namorando, enfim. Eu não sei qual é o critério. E aí muitas vezes quando eu perguntava pra essa pessoa eu falava assim: “mas enfim, a gente tá o quê?” E a pessoa me respondia assim: “o que você sente no seu coração?”. Gente do céu…

Tiago: (Risos)

João: Isso era um martírio… porque primeiro (risos): meu coração bombeia sangue. A segunda coisa, eu ia pra própria questão do que eu estava sentindo e eu não sabia responder porque não ficava claro pra mim. Então eu sempre falava “me dê um tempo” ou muitas vezes eu entrava em crise. Geralmente, quando as crises que eu tenho elas são de implosão. Então eu ficava tempos no meu quarto tentando saber o que estava acontecendo justamente por isso. Então eu vejo que a resposta é diferente por uma série de coisas que muitas vezes aquilo que é uma nomeação não fica claro e também a própria questão do que eu tô sentindo eu não sei. Então eu vejo que essa é uma relação muito tênue entre esse estigma do que o mundo espera, do que a gente faça e provavelmente o mundo não é composto para que seja fácil um neurodivergente (e eu aprendi essa aqui no podcast, porque eu falava neurodiverso). Então, por exemplo, que uma pessoa neurodivergente possa tá vivendo. E essa é a maior dificuldade que eu vejo, é um contexto histórico e hermenêutico da vida.

Tiago: É engraçado você falar sobre essa questão de não saber o status do relacionamento porque é uma coisa que eu e a Thais já conversamos várias vezes na nossas vidas pessoais (risos), assim de estar em status que não dá pra saber se é só saindo, se é o ficar, se é o namoro as vezes as etapas não são muito claras.

João: (Risos) Nossa, e é difícil né gente?

Thaís: É esse meu último relacionamento eu que falava pro Tiago: “olha eu não sei o que que é isso, eu tô eu vou chamar ele de meu cara porque eu não sei se ele é meu namorado, se ele é meu ficante, se a gente não é nada”, então eu falava que era meu cara até a gente definir que tava namorando. Aí ficou mais fácil depois, mas é muito complicado (risos).

Tiago: Inclusive esse exemplo que a Thaís deu e as próprias coisas que o JP estavam falando me fazem pensar que a questão da empatia tá muito ligada também àquilo que a gente discute como regras sociais. Pra quem não lembra, a gente lançou um episódio no início de 2019 o episódio 41 sobre regras sociais e eu percebo que muitas dessas coisas  que são caracterizadas como situações que envolvem empatia tem muito a ver com o desentendimentos no dia a dia na comunicação social. Então acho que a gente pode falar que tem uma relação entre empatia e regras sociais dentro da sociedade, afinal nós somos seres sociais.

João: Tiago, eu acredito que de fato eu tendo a seguir uma linha que uma linha de pesquisa fenomenológica. Na fenomenologia a gente entende justamente isso, eles vão colocar por exemplo um fim na questão da natureza humana e vão pensar que tudo que a gente pode ser classificado como ser social, ser racional, ser biológico e tudo mais na verdade se refere ao tempo em que a gente tá vivendo. Então a hora que a gente para pra pensar uma questão aristotélica de praxe, ele colocava como o ser como um ser social. A hora que a gente tem o advento da modernidade, a gente tem ali por exemplo na revolução científica juntamente com Descartes é a questão própria que o ser é um ser racional. Então, a gente para pra pensar hoje, nos níveis que a gente tem da sociedade, cada vez mais por uma regra social daquilo que eu posso, se a gente foi fazer até uma análise crítica eu posso que é o que já é, é só você querer que você consegue, é só você ter força de vontade que você consegue e eu vejo isso uma problematização muito grande com os próprios autistas de nível 1 de apoio porque quantas coisas eu me coloco na situação eu quero e eu não posso? Isso não é uma questão de força de vontade, é uma questão de uma limitação, de uma sensibilidade ou de uma hipersensibilidade talvez física que eu tenha, uma hipersensibilidade auditiva muito forte, uma hipersensibilidade visual forte e tátil também. Sempre quando eu saio, não importa o calor que tá, mas sempre saio de blusa porque pra mim é muito aversivo a própria questão, por exemplo, de um toque sutil.

Então, eu fico pensando que até mesmo a questão assim, o que é curtir pra uma sociedade atual? A hora que você fala curtir alguma coisa, eles não pensam mais qualitativamente numa questão de curtir. É uma questão quantitativa. Então, por exemplo, quando você vai a algum lugar a pergunta é: “e aí? Fez muito isso? Fez muito aquilo?” Por exemplo, muitas vezes aqui como Bauru é uma cidade universitária, muitas vezes tem festas open bar. Então a primeira pergunta que as pessoas falam: “e aí bebeu muito? E aí dançou muito?” E são algumas coisas que permitem que você começa a ver que qualitativamente pra pessoas neurodivergentes isso não é possível. Então hoje como advento de uma questão sempre sempre positiva sentido que até a gente pode pensar numa positividade muitas vezes que ela é tóxica, ela coloca alguns dilemas pro próprio comportamento entre “normal” que a gente tenha. E aí eu vejo que a própria questão dos autistas seja uma questão bastante difícultosa. Então eu vejo sim uma relação muito pontual entre a questão da empatia, a questão da resposta a um comportamento e a questão de uma demanda social. E eu coloco nessas palavras assim o maior peso a questão daquilo que esperam. Daquela questão que a sociedade já espera que se tenha uma resposta. E aí é o que muitas vezes que eu já ouvi com bastante frequência: “nunca pare de tentar, nunca desista, um dia você vai conseguir” e tudo mais desse tipo que é uma resposta “adequada” aquilo que a situação pede.

Tiago: Exceto se você odiar coachs (risos). Porque alguns discursos desses são bem de coach (risos).

Thaís: É, eu prefiro ter uma informação mais prática que eu posso usar pra alguma coisa do que esse tipo de discurso (risos). E há algum tempo vem se levantado algumas hipóteses a respeito de empatia, inclusive algumas criadas por autistas, estudadas por autistas e aí JP, você pode contar pra gente e explicar um pouco melhor o que é o problema da dupla empatia?

João: Posso sim, Thaís. Na verdade, é uma teoria levantada pelo pelo Damian Milton. Ele vai colocar de fato não é um problema de empatia, mas o que acontece é que pessoas neurotípicas conseguem se dar melhor com pessoas neurotípicas e pessoas neurodivergentes conseguem se dar melhor com pessoas neurodivergentes. Eu não lembro de cabeça certinho aonde eu vi esse esse exemplo, mas eles contam sobre um um experimento daquilo que a gente chama de telefone sem fio aqui no Brasil, né? A fonte que eu vi não era esse nome, mas é famoso telefone sem fio.

E aí o experimento que foi feito foi feito dessa forma. Eles pegaram três grupos de pessoas, um grupo de pessoas autistas, um grupo de pessoas neurotípicas e um grupo misturado. E eles começaram a perceber que no grupo, por exemplo, de autistas, a precisão daquela informação chegava e aquela informação que saía ela tinha um um nível muito bom de acerto. E isso acontecia da mesma forma no grupo de neurotípicos né? Então a mesma informação que chegava praticamente era a mesma que saia. Então, o primeiro e último eles davam a mesma informação. Quando chegou-se a experimentar o terceiro grupo, que era mistura entre pessoas neurotípicas e neurodivergentes, eles começaram a notar que isso daí não era tão plausível e assim, muita desinformação no meio desse processo, muito ruído começou a acontecer. Então, a partir desse momento, na verdade não foi a partir desse desse momento. Esse momento foi a consequência, na verdade, dessa questão teórica. Então, entende-se que esse problema aí da dupla empatia seja isso. Seja essa questão, por exemplo, que pessoas neurodivergentes se entendam melhor por talvez pensarem da mesma forma não no mesmo conteúdo, porque pode ter muita divergência, mas o procedimento do ato de pensar é o mesmo e por exemplo não ter entrelinhas, não ter essa série de coisas que, no caso do grupo de pessoas neurotípicas, possui.

Então os grupos de pessoas neurotípicas também eles têm a mesma linha de pensamento e por isso que foi efetivo e o terceiro grupo não foi efetivo por conta dessa mistura de linhas de pensamento. E até muito interessante que muitas vezes você começa a notar algum tipo de ativismo e que por exemplo autistas colocam determinado post em redes sociais que eles querem literalmente dizer aquilo que estão dizendo. E muitas vezes pessoas neurotípicas entendem que ali tem um monte de entrelinhas. E aí começa uma discussão porque um tá entendendo o que o outro não tá falando. Então é é mais ou menos esse o problema da dupla empatia que tem crescido bastante aí ultimamente.

Tiago: Eu acho muito interessante a ideia de alguns autores, pesquisadores autistas começarem a questionar a ideia, o modelo de percepção do autismo apenas baseado em déficits e o Milton ele tem trabalhado nisso, já tem pelo menos uns 10 anos. Só que eu tenho uma coisa assim com essa ideia que me parece muito conveniente para nós autistas ao mesmo tempo. É assim, muito positiva, mas ao mesmo tempo meio errada, sabe? Porque assim, os links estão até na descrição, o nosso público pode ler e tudo mais, mas esse estudo especificamente, mais experimental, né, que tem os grupos, têm uma amostragem extremamente baixa, se não me engano ele tem um total ali de oito pessoas por grupo. E isso não foi replicado várias vezes, os próprios autores reconhecem algumas limitações dos estudos e tem um outro estudo experimental que também é baseado muito na ideia da dupla empatia que tem um uma amostragem de 100 pessoas mais ou menos e a forma de coleta de pessoas representam muitos grupos sociais parecidos. Por que que eu falo que eu tenho uma certa uma certa dúvida se a ideia desses ruídos da comunicação existem ou não? Porque eu vejo muito conflito entre os autistas na comunidade do autismo e o autismo é muito amplo, então esses estudos eles pegam apenas uma faixa específica do autismo. E se a gente esticar a corda para o espectro inteiro? E quando a gente fala da população não-autista, é um público também muito heterogêneo… Então são algumas perguntas que ficam assim comigo, eu acho a hipótese muito interessante, só que eu ainda sinto uma carência de ver estudos mais robustos e com mais financiamento obviamente, porque pra fazer uma pesquisa dessa precisa ter uma hipótese muito sólida e uma amostragem muito boa, mas ao mesmo tempo enfim, eu tenho essa essas coisas, sabe? Porque eu conheço muitos autistas pessoalmente ao longo desses anos de caminhada na comunidade do autismo e o que eu vi de ruído na comunicação entre autistas era um negócio muito grande. E aí eu fico muito impressionado assim com o artigo que chega a uma conclusão dessa, talvez sejam os meus vieses, não sei, o que vocês acham?

Thaís: Uma das coisas que eu já penso a algum não tenho a resposta pra isso e eu gostaria de ver essas hipóteses melhor estudadas, como o Tiago falou, com uma melhor amostragem até justamente se os neurotípicos realmente se entendem ou se eles mais se equilibram em confusão, entendeu? Todo mundo aceita não entender perfeitamente alguma coisa e aí se eles ficam bem com isso (risos) ou se realmente eles se entendem bem. E talvez esse tipo de hipótese melhor se melhor estudada leve a uma resposta um pouco melhor pra esse tipo de pergunta.

João: Acho que foi muito interessante as questões que são levantadas. Também tenho bastante essa dúvida. Eu tendo a pensar que talvez pelo entendimento implícito de situações, talvez fique um pouco mais tranquilo para pessoas neurotípicas entenderem qual é a demanda solicitada. E também pela própria questão de conhecer alguns autistas, é claro que não de forma definitiva, muito longe disso, eu acho que abrindo só mais aspectos para outras perguntas… Eu vejo muito, por exemplo, esses ruídos, porque como a gente de uma certa forma entende a questão literal, eu fico pensando por exemplo se o mundo me possibilita entender uma coisa conceitual dessa forma, provavelmente ele vai dar a possibilidade para que outro autista entenda essa outra questão essa mesma questão literal que eu entendi de outra forma. Então aquilo que eu literalmente falo A, outra pessoa literalmente pela vivência ela vai entender B, mesmo que seja literal. Então começa a acontecer nessa literalidade de coisas, por exemplo, principalmente conceituais, essas próprias distorções de conceito e que aí dá ruídos gigantescos nessa questão. Até propriamente quando eu comecei a estudar essa questão da teoria da mente, já que teoria era teoria mesmo? Teoria verificada, tudo mais, tal, tal? Não, é um nome. Então, eu já tinha levado pro aspecto propriamente dito dessa teorização, o que foi um erro. E aí entendi que isso era uma habilidade depois de algumas outras de alguns outros estudos aí, mas eu acho que fica mais uma pergunta do que propriamente uma resposta a uma definição de coisas aí.

Tiago: Nossa eu achei muito legal, muito legal isso aí, a gente vai sair desse episódio com a cabeça explodindo, não literalmente (risos). Espero que o público também esteja pensando em todas essas questões.

Thaís: (Risos) Mas realmente eu achei muito legal esse episódio. Tiago sabe que quando eu falo assim: “nossa, eu gostei muito”, que eu não saio falando em todos os episódios. E realmente eu achei esse muito legal, foi muito bom. Bom, pessoal, muito obrigada, então, por esse episódio, muito obrigada JP, eu realmente gostei muito dessa conversa, de verdade. E então conta aos nossos ouvintes, por favor, onde eles podem te encontrar nas redes sociais ou os seus trabalhos, o que quer que você queira divulgar. Aproveite, esse momento é seu.

João: Muito obrigado Thais, primeiramente eu queria agradecer imensamente de novo. E já agradeci no começo, mas eu acho que é uma honra pra mim tá fazendo parte desse episódio, de verdade! Estou extremamente feliz e agora reconhecendo o meu estado interno e pra isso eu nem precisei do violão (risos). E eu acho que é isso pessoal, então quem quiser é só mandar alguma coisa no DM e tem mais em alguns destaques que eu explico algumas questões com relação ao TEA e atualmente oriento pesquisas nessa temática. Dentro de uma questão fenomenológica que vai um pouco, não vou falar o contrário, mas já é um pouco divergente das questões mais tradicionais como a análise do comportamento e tudo mais. Mas é um pouco disso assim, pessoal, mas encerro aqui a minha fala agradecendo muito e estou à disposição.

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Equipe Introvertendo Escrito por: