Introvertendo 182 – Precisamos Falar Sobre Autistas que não Transam

Frequentemente, uma parte dos autistas queixa-se nas redes sociais por não conseguir ter sexo e relacionamentos. Quem são estes autistas? Carol Cardoso, Michael Ulian e Tiago Abreu recebem o ativista, designer e bonequeiro Fábio Sousa, o tio .faso, para discutir sobre aplicativos de relacionamento, solidão, capacitismo, machismo, prostituição e outras questões que rondam a ausência de sexo para alguns autistas. Arte: Vin Lima.

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Transcrição do episódio

Tiago: Um olá pra você que ouve o podcast Introvertendo, que é o principal podcast sobre autismo do Brasil, feito por autistas e que oficialmente está de volta depois de um mês de férias. Meu nome é Tiago Abreu, sou jornalista, host deste podcast e hoje, apesar do título, o tema é tão sério que eu não vou fazer piada em nenhum trocadilho.

Carol: Eu sou Carol Cardoso, tenho 24 anos e fui diagnosticada com autismo em 2018.

Michael: Eu sou o Michael, o Gaivota, e eu continuo seguindo o caminho do mago.

Fábio: Aquele que fica com a mão no cajado…

Tiago: (Risos)

Michael: (Risos) Boa referência.

Tiago: E como vocês ouviram, nós temos um convidado que, inclusive, já apareceu no Introvertendo em 2020, o Fábio, vulgo tio .faso. Então, se apresenta aí pra gente.

Fábio: Olá, gente bonita. Aqui quem fala é o tio .faso e ora bolas, eu sou autista e criador da página Se eu Falar não sai direito.

Tiago: Nós estamos iniciando uma série aqui no Introvertendo, de tempos em tempos, vai sair algum episódio, cujo o título é “precisamos falar sobre”. Eu sei que essa expressão é bem ruim, toda vez que alguém fala “precisamos falar sobre” algum assunto, é um assunto óbvio. Mas aqui no Introvertendo, a gente tá usando esse subtítulo pra poder falar sobre temas relevantes que a comunidade do autismo, muitas vezes, não discute. E hoje, nós vamos falar sobre os autistas que não transam. Vale lembrar que o Introvertendo é um podcast feito por autistas cuja produção é da Superplayer & Co.

Bloco geral de discussão

Tiago: Quando eu propus esse tema com o pessoal do podcast, surgiu muita dúvida de quem seria esses autistas que não transam. E eu acho que talvez é muito importante deixar isso bem esclarecido, porque são vários autistas que não transam, na verdade. Mas a gente tá falando de uma parcela bem específica. Primeiro, nós não estamos falando de autistas que são assexuais, ou seja, que não tem, muitas vezes, interesse em relacionamentos, ou até tem interesse em sexo. Nós não estamos falando de autistas que não tem interesse em transar. Nós não estamos falando sobre alguns autistas ditos severos e toda a discussão que se tem sobre sexualidade e sexo nesse âmbito do autismo, porque isso dá uma outra discussão e envolve outros temas complexos. E de quem a gente tá falando, então, na prática? Nós, geralmente, estamos falando sobre autistas, que são homens geralmente heterossexuais, cis, que tem poucas habilidades sociais, que são virgens ou até não são, mas eles só conseguem relações sexuais com profissionais do sexo ou quando tentam desenvolver relações ou conhecer novas pessoas, não chegam nem ao ponto de muitas vezes ter um match numa numa rede social como o Tinder. E por que que, geralmente, esse recorte que a gente tá falando são homens? Mulheres não têm dificuldade? Tem, sim, com certeza. E a gente pode envolver uma discussão nesse sentido. Mas isso não é tão comum, por exemplo, com a comunidade gay, porque existe todo um ecossistema voltado pro sexo, com aplicativos. E há uma questão dentro da sociedade de que o homem inicia as interações e etc. E isso acaba, de certa forma, aumentando a probabilidade de mulheres autistas terem mais relações do que homens autistas. E a gente pode até problematizar isso ou questionar se isso é um fato ou não, eu tô aqui conjecturando isso. Então, a gente vê que essa discussão sobre autistas que não transam acaba variando conforme os grupos. Aqui, a gente tá falando sobre os homens, porque até onde eu consigo entender, é um público muito numeroso, se a gente acompanhar, por exemplo, grupos no Facebook ou no WhatsApp, semanalmente eu vejo homens autistas falando que não conseguem sexo ou que são virgens, ou que só tem relações com profissionais do sexo. Então, essa queixa é bem grande, bem frequente, e eu não vejo a comunidade do autismo discutir isso de forma franca.

Carol: Eu acho que é importante fazer esse recorte, justamente porque existe uma discussão muito interessante que é sobre a invisibilização da sexualidade feminina. Então, um dos fatores para que seja mais evidente essa dificuldade entre os homens é porque existe também uma cobrança social muito forte pela expressão da sexualidade masculina. E isso reverbera muito nisso que o Tiago falou, que se convenciona que são os homens que precisam iniciar esse contato e que quando as pessoas têm uma dificuldade de interação social muito acentuada e elas não conseguem, eles não conseguem iniciar esse contato, acaba ficando muito mais difícil pra eles. E eu acho que isso, por si só, já justifica o fato da gente fazer esse recorte. Mas eu acho que eu quero trazer um outro ponto sobre o machismo em si. Geralmente é uma coisa que as pessoas discutem e que parece que é um campo que deve ser discutido simplesmente unicamente por mulheres, mas o machismo é um tema pertinente a todo mundo. Então, é um problema da sociedade, logo toda a sociedade deveria discutir isso. É como se existisse uma responsabilidade unicamente das mulheres de discutirem isso. E a gente não vê muito palco para que se discuta questões masculinas relacionadas ao machismo. Então, eu acho que esse espaço aqui é justamente pra gente dar início a esse tipo de discussão no meio do autismo, assim, eu vejo que é muito relevante. Porque já existe uma invisibilização da nossa sexualidade como autistas e a gente acaba nem prestando atenção no fato de que muitos autistas podem querer expressar sua sexualidade de alguma forma e não conseguem, por inúmeros fatores que a gente vai falar nesse episódio.

Fábio: Quando a gente pensa nessa coisa do machismo como algo que só prejudica as mulheres, esqueçamos uma parcela muito importante, como a Carol mencionou, dos homens, porque quando você é um homem típico, há toda uma cobrança de ser aquele macho alfa, que pega todas as menininhas e tudo mais. E quando você não é esse tipo de homem, você é escorraçado, você é chamado de gay, que é homem frágil, beta. Então, como o autista não vem com esse guia social para poder conviver na sociedade, o homem autista só tem como referência imediata o que ele vê. E o que ele vê é a reprodução do machismo. E a reprodução do machismo fala que ele por não conseguir transar, por não ter uma namorada, não ter nada, ele é menos homem. Então, a gente acaba observando nos grupos isso, que o machismo causa nos homens autistas um sério problema de autoestima, em que eles se sentem menos homens por nunca terem transado ou se relacionado com alguém. Isso acaba gerando depressão, que pode gerar coisas piores, como, por exemplo, suicídio ou o que tá no lado oposto, que é transformar aquele homem que não consegue se relacionar em um homem que tem raiva de mulheres. E quando o homem tem raiva de mulheres, ele vai vê-las como inimigas. E o inimigo você combate, o inimigo, você trava guerra. O inimigo, você acaba matando. E fechando o ciclo, ó: machismo que entra no feminicídio, em ataques, como dos incéis, por exemplo, que é uma comunidade todinha voltada pra falar que o sexo é um direito do homem. E quando você bebe essa fonte e você é um autista, aquilo passa a ser uma verdade. Então, você talvez se torne um perigo para as outras.

Tiago: A gente tá falando aqui sobre a questão do machismo, mas eu também acho que existe uma uma relação também com aquilo que a gente chama de capacitismo. E até quem não sabe o que é capacitismo, ouve lá o episódio 150, que foi o episódio que nós discutimos especificamente sobre isso, mas eu entendo que o capacitismo no contexto das relações afetivas e sexuais no meio da deficiência, é muito evidente. A gente tem dentro da nossa sociedade várias formas de você flertar e conseguir relações. Hoje em dia, até onde eu entendo, as formas mais comuns são aplicativos, a gente já falou aqui do Tinder, existe também o Happn, também tem o OK Cupid e também tem, como eu falei, os próprios apps da, da comunidade gay como Grindr e etc. Então, você já tem vários aplicativos, onde você pode conhecer novas pessoas. E também tem o encontro presencial, em festas, bares, em espaços sociais, de uma forma geral. Quando as pessoas estão interagindo nesses espaços coletivos, a gente já tem um ambiente com muitas variáveis, com muita comunicação não-verbal, isso já complica pros autistas. Dentro dos aplicativos, a gente tem outras variáveis operando. Você ter um bom perfil, de alguma forma chamar atenção das pessoas, ter habilidades pra conversar ali no texto por texto. E a gente tem uma discussão recente, por exemplo, que em aplicativos como Tinder, a grande maioria das pessoas que têm contas nesses aplicativos não conseguem muitos matchs, principalmente, em relações heterossexuais. No sentido de que só uma “nata”, digamos assim, de pessoas nesses aplicativos costumam se sair bem. E aí, eu acho que os autistas, definitivamente, não vão estar nessa minoria. Eu não sei se vocês têm experiências com aplicativos, mas vocês percebem esse ambiente excludente, de alguma forma?

Carol: Eu tô chocada, porque agora faz todo o sentido. É por isso que eu não consigo um match no Tinder. Meu Deus (risos).

Tiago: (Risos)

Michael: Inclusive, pra reforçar essa questão que o Tiago falou da questão da mudança de comunidades, quando você pega o exemplo de um homem que tá no Tinder, por exemplo, que tá com ambos os sexos com a intenção de dar match, geralmente é muito mais comum que você tenha dezenas de matches com outros homens e alguns, se não tiver nenhum com mulheres. Então, tipo assim, isso fica bem óbvio quando você tem esse ângulo de comparação.

Tiago: Sim, inclusive eu falei isso no episódio 107 – Autistas em apps de relacionamento, é a minha experiência isso que você acabou de falar assim, Michael, porque é realmente bem complicado nesse sentido. Aí a gente tem esse cenário, assim, do que eu entendo de que, primeiro, existem autistas que nem o match vão conseguir (risos). A Carol falando que não consegue ter um match (risos).

Michael: (Risos)

Carol: (Risos)

Tiago: Tem autistas que não vão conseguir nem um match, isso é uma realidade. Tem autistas que conseguem o match e aí a gente tem um outro cenário, que é um cenário que, inclusive, eu já vivi, que é o momento que você fala que você é autista, que você tem uma deficiência. E, evidentemente, a tua deficiência é um motivo para que a pessoa se afaste de você, que ela desfaça o match ou que ela não queira nada contigo. OK, eu entendo que as pessoas têm liberdade de escolherem com quem elas querem ficar, mas nesse contexto tá muito evidente de que a deficiência é um impeditivo pras pessoas quererem manter uma certa relação de você. E isso é preconceito, evidentemente. Então, a gente tem já essa exclusão dentro do aplicativo. Dentro do encontro presencial, a coisa fica mais complexa. Então, imagina: passar por todas essas etapas e terminar em uma relação sexual ou em algum caso, até que se dê ainda melhor em um relacionamento, é muito difícil. Você precisa ter muitas habilidades. Já é difícil para as pessoas não autistas, imagina autistas.

Fábio: Eu tava até quietinho nesse momento aqui, que vocês falam de aplicativos de relacionamento, eu tava quieto e eu sei que esse aqui é um assunto muito sério pra ser tratado. Eu nunca usei nenhum aplicativo desse. O meu aplicativo de paquera sempre foi o Facebook (risos).

Tiago: (Risos)

Michael: (Risos)

Carol: (Risos)

Fábio: Mas… (risos). Se existem autistas treponildos, eu acho que eu sou desses. Eu sempre dei muita sorte na parte de relacionamentos via Facebook, no caso, sem nunca ter usado em nenhum aplicativo de encontro feito pra isso, justamente porque eu acho que eu passei a vida inteira, a juventude inteira tentando, estudando revistas de moda feminina. Eu errei tanto antes dos 18 anos, que quando eu comecei a, de fato, encontrar com outras mulheres e tudo mais, eu descobri que o meu papo colava. Então eu sei muito bem como fazer pra poder ir atrás de alguém. Mas eu não sei explicar isso. E como eu sou um autista com pouco tempo de diagnóstico, então eu não tive “oportunidade” de sofrer capacitismo por eu ser autista. Mas, o que eu já vi por aí de outros deficientes, que é justamente isso que o Tiago falou. A pessoa pode ter o papo mais maravilhoso do planeta, a partir do momento que ele fala que ele é um deficiente, a coisa muda, sabe? Então, se fala: “ah, nossa, você é uma pessoa muito legal”. Aí, cê fala: “sou cadeirante, eu sou surdo, eu sou cego”, automaticamente a pessoa que tava interessada em você acaba pensando com “dó, tadinho”. “Será que essa pessoa vai servir pra mim? Será se eu vou conseguir transar? Será que essa pessoa vai servir de alguma forma como um companheiro, uma companheira?”. E no final, você percebe que para qualquer deficiente, não só os autistas, o capacitismo será a maior barreira para um relacionamento com uma pessoa que não é deficiente. Talvez se eu soubesse que eu era autista na época que eu só usava o Facebook, essas coisas, talvez, hoje não estaria casado e com filho. Então, essa é uma noção real do que eu tenho. Porque as pessoas, às vezes, me veem: “nossa, que negão grandão, bonitão”, sei que lá. Aí quando eu falo tô na fila preferencial porque eu sou autista, eu fico com 1 metro e 20 de altura e 12 anos de idade, sabe? As pessoas mudam com a palavra. Então, o capacitismo é algo muito, mas muito pesado. E eu acho que para os homens autistas, a mistura de capacitismo mais o machismo, que vai esperando o que ele tem que ser, um homem que vá à luta, só piora a situação. Você tá quase gabaritando o bingo das impossibilidades de ter um encontro romântico. E isso é muito, mas muito pesado.

Carol: Isso que o Fábio falou me lembra uma coisa que eu sempre converso com uma amiga minha, que é que as pessoas, de um modo geral, parece que elas estão mais preocupadas em ter uma performance. Então, sobre sexo por exemplo, as pessoas estão mais preocupadas em passar a ideia de que elas têm uma boa vida sexual e que isso é uma coisa que elas conseguem desempenhar muito bem na vida delas. E que por as pessoas não conversarem abertamente sobre isso, a gente sempre quer passar uma impressão de que tá tudo certo. Quando a gente se depara com uma pessoa que não está dentro do padrão aceitável que as pessoas idealizam como desejável, essa questão da performance é um pouco quebrada. Porque, por exemplo, se a prioridade é a gente ter uma performance, a gente não vai querer fazer essa performance com uma pessoa que tá fora do padrão. Porque a partir do momento que a gente tem uma relação próxima com alguma pessoa que é alvo de algum preconceito, automaticamente essa pessoa também vai começar a ser alvo de alvo de algum tipo de preconceito, de alguma forma, seja por ela se relacionar com alguém que tem uma deficiência, por exemplo. Muitas pessoas têm um monte de ideias super erradas que, tipo: “nossa, que legal, você deve ser um herói por se relacionar com uma pessoa com deficiência”. Ou tipo: “a pessoa não deve conseguir ficar com ninguém, por isso que ela tá com essa pessoa com deficiência”, sabe? Então, isso é muito complicado. E essa questão da imagem eu acho que fica muito forte também porque a gente sempre está falando aquilo do tipo: “ah, autismo não tem cara”. Mas assim: existem autistas que não conseguem, entre aspas, assim, muitas aspas por favor. Eu não quero ser mal interpretada. Mas assim, tem muitos autistas que têm um comportamento que claramente fica muito evidente pras pessoas que essa pessoa não é neurotípica. Isso acontece mesmo quando a gente fala de autismo leve, sabe? Eu tô falando dessa camada e a gente tem dificuldades muito diferentes. Existem autistas que, por exemplo, conseguem conversar sobre isso, conseguem flertar e etc, mas tem questões sensoriais absurdas e que não conseguem avançar numa relação por causa disso. E tem autistas que simplesmente não entendem nada dessa comunicação, de flerte. Porque como o Tiago já falou, exige muitas habilidades que as pessoas neurotípicas não percebem.

Tiago: Inclusive, Carol, só te interrompendo, então, sobre isso, uma coisa que eu não sei se eu até cheguei a comentar contigo, mas é bom compartilhar aqui no podcast. É que eu conheço um autista e até não vou dar detalhes pra que ninguém identifique quem ele seja. Mas eu já conheci um autista, por exemplo, que ele usava frequentemente o Tinder, em alguns casos ele até conseguia matches. Ele tinha um repertório muito bom de assuntos, principalmente, sobre cinema e música. Então, ele gostava muito de cinema, muito de música, sabia de tudo sobre filmes. E ele me dividiu uma vez uma história de quando ele saiu com uma menina no Tinder. E aí, quando ele voltou pra casa dele, ele foi bloqueado em todas as redes sociais por ela. A hipótese que eu tenho, conhecendo ele, é que é muito evidente que ele é autista. Ele tem muitos comportamentos repetitivos. De todos os autistas ditos leves que eu conheço, ele é o que tem isso mais evidente e pra ele isso é muito natural. Então, as pessoas percebem que ele tem alguma coisa. Durante a vida dele, ele foi julgado várias vezes, tinha gente que dizia que ele tinha alguma deficiência intelectual e etc. E o que que acontece? Ele tinha todo esse objetivo de construir relações. E aí, até um dia que ele chegou e disse pra mim que ele teve uma relação sexual e foi com uma prostituta, que foi a única relação que ele tinha conseguido ali até aquele momento. Nessa época ele já tinha uns 27 anos, eu acho, mais ou menos. E eu fiquei muito pensativo sobre isso, porque eu não vou fazer um julgamento moral sobre a figura da profissional do sexo, porque isso aí é uma outra discussão e acho que não cabe aqui. Eu acho que as pessoas que tem vontade de ter relações com profissionais vão procurar e etc, existe um mercado nesse sentido. Só que eu, particularmente, acho lamentável que uma pessoa não tenha outras opções para além da questão dos profissionais do sexo. A questão do profissional do sexo, quando é uma escolha, beleza. Mas quando não é uma escolha? Quando é a única fonte de ter relações sexuais? Tem até uma discussão disso dentro do âmbito da deficiência, que no contexto, por exemplo, das deficiências intelectuais, existe até serviços especializados, porque são pessoas que se parte do pressuposto de que nunca vão ter uma relação a longo prazo. E eu acho que os autistas que desejam ter relações sexuais com as pessoas com as pessoas que eles conhecem, com as que eles desenvolvem um vínculo, um afeto, e eles só tem a opção na vida de ter relações com profissionais, é uma coisa que fica um pouco mais triste assim, nesse sentido. Não sei o que vocês acham.

Fábio: Eu vou falar (risos). Porque nunca fiz sexo com profissionais, né? Mas uma coisa que você está falando, Tiago, e a Carol também falou, que eu fiquei pensando, é que a gente aqui tá martelando muito na coisa da conjunção carnal do sexo, e eu acho que talvez isso falte pra pros homens autistas, que é entender que o sexo é um detalhe do relacionamento. Então, se a gente tem uma deficiência que nos complica a socialização, é claro que a gente não vai ter sexo. Porque todo flerte, todo o relacionamento amoroso, todo namoro é uma convivência, é uma troca, é uma amizade com benefícios. Então, quando a gente parte direto pro sexo pago, é triste, porque a gente, literalmente, tá abrindo mão dos 98% do que faz o relacionamento humano funcionar. Porque, de alguma forma, a gente já percebeu nossa dificuldade para interagir socialmente e ter um parceiro ou uma parceira amorosa. Só que nós temos necessidades fisiológicas. Então é mais fácil pagar para satisfazer o corpo, só que a nossa “alma” vai tá sempre na seca, ela vai tá sempre precisando e a gente nunca vai conseguir ter esse relacionamento.

Tiago: É, eu acho que a gente só tem que reforçar que a questão do vínculo afetivo não necessariamente todo mundo também vai querer, né? Às vezes a pessoa só vai querer mesmo transar ali, cumprir as suas funções fisiológicas e toda essa parte afetiva, que pra você é importante, pra mim também é importante, eu imagino que pra muitos autistas é importante, não necessariamente é um pré-requisito pra todo mundo. Mas para aqueles que querem ter isso e não conseguem, realmente é uma questão bastante complicada.

Michael: Eu queria acrescentar ainda, porque tem a questão, é algo um pouco mais específico, mas tem os casos em que essa intenção é nem tanto pelo ato em si, mas pela serotonina que veio junto. Porque convenhamos que essa é uma forma extremamente fácil, abre aspas, de deixar a cabecinha feliz. Ou seja, mesmo que você não tenha interesse no ato em si, que acaba entrando no meu caso. No meu caso específico, isso acaba me dando um monte de problemas porque por mais que eu não tenha intenção de fazer, eu aprendi desde relativamente bem novo, que esse é um jeito muito fácil de você garantir uma dosezinha alta de serotonina, ficar felizinho rápido, e o que acontece? Por mais que eu sei que isso é uma forma eficiente, não é algo que eu quero fazer (risos). Isso me leva a um ciclo de que, geralmente, eu interajo com pessoas, porque no meu caso pornografia não funciona, eu preciso pelo menos ter interação com outra pessoa pra ir, pra funcionar, pra serotonina, eu preciso ter interação com uma pessoa de verdade. Isso leva a um ciclo de que geralmente eu começo a conversar com uma pessoa ou com outra, vai avançando, até que, finalmente, eu chego naquela carga de serotonina que eu tava precisando e eu me toco, de repente, que eu não quero continuar com aquilo, definitivamente, não quero levar isso pro mundo real e consumar o ato porque definitivamente é algo que eu não tô afim de fazer por um monte de motivos. Não acho que cabe tentar explicar exatamente porque eu não tenho interesse de ir fazer mesmo, mas o ponto é que eu não tenho. Então isso já me causou muita confusão. Tipo, na melhor das hipóteses eu consigo conversar com a pessoa, ela entende que eu quero só deixar nisso. Na pior das hipóteses, fica uma pessoa muito puta ou eu simplesmente como eu tenho muita pouca noção social, eu não sei completamente das intenções da outra pessoa, não peguei. Quando eu percebi as intenções dessas pessoas já tava meio tarde demais e quando decidi voltar para trás, ou não dava ou as consequências de fazer isso acabaram ser piores do que se eu simplesmente tivesse ido e continuado. Foi assim, inclusive que eu consegui sofrer abuso quando tinha uns 14 anos, 15 anos de idade, então não é algo muito divertido.

Fábio: Deixa eu só complementar aqui, essa parte. Eu não sei quanto a vocês, mas eu sou hipersexual. Então, isso quer dizer que eu tenho um probleminha (risos). É que eu sou extremamente treponildo. Então, eu sou uma pessoa que precisa de muito sexo, muita serotonina. A minha sorte, entre aspas, é que eu conheço outros hipersexuais, e eu percebi que eu sou bem calminho perto deles. E é justamente o fato de eu precisar de um contato mais emocional que eu me acabava na pornografia e não me acabava nas ruas, que nem aconteceu com a maioria do pessoal. E o fato de estar tomando medicação agora é que eu fico uma pessoa estável na parte sexual, bem calminho, zerado, nulo (risos), com as bolinhas guardadas. Então, fica muito mais fácil não ter o sofrimento de que eu preciso de muita estimulação para me sentir bem. Então, eu consigo me focar mais na conversa. E é assim, eu não sei lá fora, com o pessoal que é não autista, mas a nossa comunidade, a gente percebe que cada um é de um jeito. Que nem o Michael falou, que às vezes o que a gente quer, o que a gente faz, vai ter umas consequências horrorosas em nossa vida. Eu fiquei 6 anos num relacionamento que era psicologicamente abusivo, porque eu gostava da pessoa, só que toda vez que eu queria tentar fazer sexo com ela, que era a coisa de uma vez por mês, era tanta culpa psicológica que ela embutia em mim, que quando acontecia o ato, de fato, acontecia, eu sentia culpa de tá fazendo aquilo, sabe? Tipo, que ela falava: “ah, você só me quer pra isso”. Eu ficava: “nossa, eu namoro com você e tipo, quero transar com você, eu não posso? É culpa minha?”. Para nós, autistas, o sexo e o relacionamento amoroso é uma coisa extremamente complicada de vários aspectos e que pode dar vários problemas, que a gente nem tem ideia do que pode acontecer. Cada um é de um jeito, né? Cada ontem uma configuração, né? E eu acho que eu não deixei claro isso, porque o Tiago me corrigiu, porque tem pessoas que realmente só querem transar. Eu já tentei isso, só transar por transar, e foi a minha pior experiência que eu tive na vida, porque foi uma experiência traumática. Então, por isso que eu acho que eu nunca usaria um Tinder da vida pra transar.

Tiago: Diante desse cenário que a gente consolidou aqui, aí vem a grande pergunta: O que fazer diante disso? Porque eu vejo que primeiro, a comunidade do autismo ignora o problema ou quando ela percebe o problema, ela não dá soluções eficazes. Eu acho que tem algumas alternativas. Sentar e chorar, falar pros autistas “vocês que lutem” não me parece ser uma coisa boa, não me parece algo desejável, embora grande parte da sociedade talvez possa fazer isso. Eu também consigo pensar, por exemplo, na série Amor no Espectro. Eu acho que a série Amor no Espectro traz uma coisa muito importante que talvez a gente poderia transportar pra esse discussão, que lá a gente tem duas profissionais e tem um, um programa de habilidades sociais para encontros, flertes, etc, que inclusive até onde eu tava lendo até um tempo atrás é um programa baseado em evidências. E a gente não tem nada parecido com isso no Brasil. Então, eu fico pensando: será que seria legal ensinar essas habilidades do flerte para autistas? Talvez isso resolveria parte do problema. E também conversar um pouco mais sobre educação sexual? Queria saber a opinião de vocês sobre isso.

Fábio: Muitos de nós iam se beneficiar com um programa que, tipo, ajuda não a treinar pessoa, mas eu acho que seria algo que juntasse tipo assim: “vocês são autistas, né? Então, a gente vai ajudar vocês a se comunicarem e quem sabe, arrumar um parceiro, uma parceira neste programa”. Porque por mais que a gente tenha aula, na hora do vamos ver diante de uma pessoa não autista, a gente ia ficar todo durinho, sabe? Tipo o Charlie Chaplin tentando mostrar, fazer gracejos. É tudo muito mecânico, porque a gente não tem essa habilidade in natura dentro do nosso corpo. E outra coisa, educação sexual, pra nós, autistas, ela tem cunho diferente, porque os corpos de pessoas atípicas funcionam de forma diferente de um corpo não autista. Em qual sentido? Eu não sei direito o processo biológico, eu posso também estar falando besteira, mas é muito comum você ouvir de autistas que às vezes um toque pode ser extremamente prazeroso ou extremamente doloroso, às vezes um toque não faz nada na pessoa, a sua zona erógena é outro lugar. Então, educação sexual para nós é importante para saber o que nos dá prazer, o que não nos dá prazer, porque ajuda a ter problemas na hora H. Às vezes, ter uma terapia pra poder dessensibilizar, tudo mais. Outra coisa é que a questão sexual ajuda muitas pessoas a entenderem e talvez evitarem abusos, né? Porque a gente é presa muito fácil por ser autista. É só você pensar as estatísticas de abuso sexual no autismo, que é muito maior do que a população geral. Então, eu acho que a educação sexual pra nós não tem um cunho que vai ajudar a gente a arrumar um parceirão, uma parceira. Ele é mais um kit de sobrevivência e de autoconhecimento. Já aquela coisinha que teve na série, talvez seja muito interessante, ter essa mediação. Pessoas que nos ajudem a nos relacionar com outras pessoas parecidas conosco, porque a gente fala a mesma língua. Tem aquela pesquisa que fala que quando você um autista e fala com neurotípico, há ruído na comunicação. Quando você coloca neurotípico com neurotípico, não tem ruído na comunicação e quando você coloca autista com autista, também não tem ruído na comunicação. Então, talvez a ponte do sucesso pra nós é alguém intermediando um relacionamento autista/autista porque a gente fala a mesma língua.

Tiago: Esse é o chamado problema da dupla empatia, que você descreveu. Eu tenho uma certa discordância com a discussão dessa hipótese, mas isso fica pra outro episódio (risos). Eu não acho que esse cenário seja exatamente isso.

Fábio: Eu vou concordar com você, porque as relações de conversa e socialização entre nós autistas nas redes sociais, às vezes degringolam pro inferno muito fácil com uma pessoa não autista não vai ser (risos). Mas, sim, a gente entende mais fácil. É aquela coisa assim, de pelo menos entender o funcionamento. Porque, por exemplo, eu penso hoje, que se eu deixasse a minha esposa, eu ia tentar me relacionar com outra autista. Pra mim, pesa um pouco o fato de ter que explicar meu funcionamento. Eu adoraria que viesse uma pessoa que já entende mais ou menos o riscado e só quer me conhecer, não quer aprender como é que conviver com uma pessoa deficiente. Isso pra mim pesa muito no relacionamento. Tanto que hoje com a minha esposa a coisa funciona tão bem porque ela é extremamente curiosa, interessada em entender como a gente funciona.

Carol: Primeiro eu queria falar sobre uma coisa que o Fábio falou mais cedo, que é essa questão do treino de habilidades sociais pra gente. A impressão que dá é que a responsabilidade para ter sucesso nas relações amorosas recai unicamente sobre a gente. Então, é só a gente, são só os autistas que precisam aprender a se relacionar. E é justamente isso que causa o que tu falou, que parece que a gente tá sempre tendo que se explicar e as pessoas parecem que não se esforçam muito pra entender, até porque a gente não vê a nossa realidade sendo dialogada entre o público geral, sabe? Eu acho que é uma discussão muito concentrada entre os autistas e a gente tenta justamente fazer as pessoas terem noção de que a gente existe e que não necessariamente a gente precisa se relacionar só com autistas pra dar certo. Isso só acontece hoje porque as pessoas nem consideram a possibilidade de se relacionar com alguém com deficiência, porque elas nunca aprenderam a enxergar a gente como pessoas desejáveis. Tanto no âmbito de ser, ou seja, é tão horrível ser uma pessoa com deficiência, já é tão horrível ser isso, que eu não vou querer nem me relacionar com uma pessoa assim, porque eu não quero ser parte disso, já que é tão ruim. E aí, tipo assim, quando a gente fala da nossa dificuldade de comunicação, a gente parece que sempre se esquece que comunicação não se faz com um indivíduo só. Então, por que é que é só a gente que tem que aprender a se comunicar? Por que que a gente tem que sempre se dobrar às regras de como se deve flertar, de como se deve iniciar uma conversa de cunho amoroso ou sexual? Então, assim, as pessoas, às vezes, são muito inflexíveis quanto a isso. Eu acho que isso também faz parte do problema que a gente tá discutindo aqui, das pessoas não conseguirem ter relação sexual, porque… Porque sim.

Fábio: Ignorem tudo o que eu disse ouçam o que a Carol falou no final. Carol para presidente.

Tiago: (Risos)

Carol: (Risos) Não, não, eu tô falando dando segmento ao que tu falou. Acho que o que tu falou foi muito necessário. Tu falou uma coisa que é hoje, eu tô falando o que poderia ser, sabe? A gente pode viver num mundo, a gente pode pensar num mundo em que a gente não seja obrigado a se relacionar só com autistas pra dar certo, ou outras pessoas com deficiência, sabe?

Tiago: Ou seja, a gente pode trabalhar com um cenário de que a gente pode estimular dentro da comunidade do autismo, que autistas desenvolvam essas habilidades em conversas, que aprendam, mas ao mesmo tempo da gente começar também a questionar o porquê que só autistas precisam se adaptar dentro da sociedade, isso não só em relação a questão do sexo, dos relacionamentos amorosos, mas em tudo, né? A gente tá sempre discutindo isso em comunidade. Isso com certeza é bastante relevante, é um ponto aqui pra gente pensar. E você que ouve o Introvertendo e que talvez se identificou, não se identificou com esse tema, compartilha pra gente a sua história, envie uma mensagem pra gente nas redes sociais, esperamos que essa discussão estimule uma conversa mais séria sobre isso na comunidade do autismo, porque com certeza tem vários autistas aí querendo ter tanto relações amorosas e sexuais. E a gente volta semana que vem com um novo episódio do Introvertendo. Um abraço.

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Equipe Introvertendo Escrito por: