Introvertendo 170 – Hiperfoco

Um dos maiores assuntos entre autistas é o hiperfoco. Pode ser o interesse em objetos extremamente específicos ou assuntos gerais de interesse, geralmente envolvem um grande prazer, mas em alguns contextos, também sofrimento e prejuízo. Pensando nisso, relacionamos nossa história de vida com nossos temas de hiperfoco, as estratégias que criamos para aproveitar as potencialidades em torno desse interesse, e comentamos questionamentos polêmicos, como a existência ou não de hiperfoco em pessoas. Participam: Luca Nolasco, Paulo Alarcón, Tiago Abreu e Willian Chimura. Arte: Vin Lima.

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Transcrição do episódio

Tiago: Olá pra você que ouve o podcast Introvertendo, que é o principal podcast sobre autismo do Brasil. Meu nome é Tiago Abreu, sou jornalista, deste podcast, diagnosticado com autismo em 2015, e hiperfocado em áudio.

Willian: Olá, eu sou o Willian Chimura, faço mestrado em Informática na Educação, também sou autista e diria que tenho hiperfoco em autismo e análise do comportamento por um bom tempo.

Luca: Olá, eu sou o Luca Nolasco, curso biomedicina na UFG e, constantemente tenho hiperfoco em escutar artistas diferentes

Paulo: Olá, sou o Paulo Alarcón, diagnosticado em 2018 e com alguma frequência mudo um pouco meus hiperfocos, mas o mais recorrente é a tecnologia.

Tiago: E como vocês viram, o nosso tema de hoje é hiperfoco, um assunto bastante frequente nas discussões sobre autismo, que a gente nunca fez um episódio especificamente para definir hiperfoco, para pensar o hiperfoco. Então, chegou esse grande momento. O Introvertendo é um podcast feito por autistas, com produção da Superplayer & Co.

Bloco geral de discussão

Tiago: Quem conhece o introvertendo há muito tempo, sabe que a gente tem um episódio relativamente antigo, que é o episódio 54 – Conhecimento Inútil, que nós falamos um pouquinho ali sobre hiperfoco, mas não de um ponto de vista conceitual, mais robusto. Então, eu lanço esse desafio pro Willian, defina aí o que é hiperfoco pra gente.

Willian: Certo, Tiago, eu posso fazer uma definição aqui de hiperfoco, que, consensualmente, vamos usar aqui nesse episódio de podcast, mas é claro que como qualquer termo que vai ser estudado e avaliado e usado na academia e pela literatura científica, muitas vezes é necessário anos e anos e anos de discurso e de debate para cunhar algum termo. E esse termo hiperfoco, ele é um termo mais popular na verdade. Ele é um termo comumente usado entre os próprios autistas, entre as pessoas que convivem com os autistas do que realmente na literatura científica. Mas ele tem as suas origens claramente relacionadas ao critério de diagnóstico do autismo, tomando como exemplo o manual de diagnóstico DSM-5, que é o manual que a gente geralmente fala quando estamos falando do modelo mais recente, mais atualizado para se entender o autismo, com certeza há uma relação aí bem clara entre o que a gente chama de hiperfoco com o critério do domínio B ali do DSM se refere a interesses restritos e atividades restritas, repetitivas, e muitas vezes com frequência ou intensidade nada usual em comparação a maioria das pessoas. Ah, uma coisa interessante a se dizer sobre o hiperfoco é que pelo menos seguindo os critérios do DSM, a gente entende que esse fenômeno não é observável em todos os autistas, na verdade, ele é algo opcional. Ou seja, não é porque uma pessoa não tem nitidamente um repertório mais restrito ou muito focada em uma determinada atividade, em um determinado tópico, que significa que essa pessoa não se trataria de uma pessoa autista. Ou seja, entendemos que há, sim, autistas que podem ter interesses mais variados, distribuídos e de intensidade ou frequência não tão atípicos assim. Apesar de que na prática, comumente encontramos sim autistas e eu acho até que virou uma questão parte da cultura entre as pessoas que têm o diagnóstico e que gostam de trocar experiências e tal, até mesmo nesse episódio a gente começa já falando sobre os nossos hiperfocos. Então, ficou algo muito característico mesmo entre os autistas, mesmo que o DSM não lista como um critério obrigatório para o diagnóstico. Ah, e não estamos falando aqui de ciência exata, no sentido de que é difícil de quantificar, às vezes, o que seria uma intensidade não usual. Porém, no caso do autismo, comumente, quando se trata de um uma atividade, um interesse, ou de hiperfoco de alguém, isso costuma ser explícito. Ou seja, todas as pessoas ao redor dessa pessoa concordam ali que é algum interesse, alguma atividade ali, que esse autista preza é certamente bem intensa mesmo, é bem frequente, ele só fala daquilo, ele só pensa naquilo, enfim. E esse interesse, esse hiperfoco, ele pode ser voltado tanto para objetos, quanto tópicos de interesse ou atividades. Então, comumente aqui, citando, por exemplo, um dos estudos que tentou avaliar essa questão do hiperfoco, dos interesses restritos entre os autistas, nós vemos aqui que comumente os autistas podem colecionar muitos itens de uma categoria específica, como, por exemplo, carrinhos, cartões postais, selos, ferramentas, lentes de câmera, no meu caso, pedras semipreciosas, moedas de um centavo, tampinhas metálicas de garrafa de vidro, pode também se manifestar na música. É claro que a gente sabe que tipicamente as pessoas também gostam de ouvir uma determinada música várias vezes. Elas não ouvem apenas uma vez, principalmente se você gosta da música, mas no caso do autismo pode ser que esse ouvir a música se torne de uma forma um pouco mais ritualizada, partes específicas da música podem ser de interesse maior, o que não costuma ser tão típico quando vai observar as outras pessoas, a maioria delas, pelo menos. E também, frequentemente, vemos autistas que possuem uma grande quantidade de conhecimento sobre alguns tópicos específicos. Então, fatos históricos, datas, bandas e até mesmo o próprio autismo, que no meu caso, eu diria que seria um dos meus hiperfocos, pois desde que fui diagnosticado, eu não consigo me lembrar, um dia, que eu não falei sobre autismo, que eu não pensei sobre isso, que eu não li algo sobre autismo, enfim. Tá, acho que agora ficou mais ou menos definido aí, então, o que a gente quer dizer com o hiperfoco aqui nesse episódio.

Tiago: Como você disse, Willian, o hiperfoco é uma questão praticamente cultural dentro da comunidade do autismo e eu acho isso muito bom no sentido de que, como autistas são pessoas que têm um círculo social muito baixo no geral, quando elas estão na comunidade se interagindo e elas encontram pessoas que podem ter os mesmos hiperfocos, é uma conversa longa, é uma conversa duradoura e que pode ser uma amizade aí muito bem desenvolvida dependendo do contexto. Então, eu queria lançar essa bola pra todos vocês, assim, pensando desse ponto de vista, quais são os pontos positivos do hiperfoco?

Paulo: O hiperfoco costuma ser o ponto onde eu encontro a intersecção entre os meus interesses e de outras pessoas. É muito comum eu ficar alheio às conversas que não são do meu interesse em um ambiente social e ficar quieto, normalmente fico viajando em pensamentos. E aí a alguma pessoa fala um assunto que dá um gatilho, eu desembesto a falar sobre sobre um assunto que é realmente do meu interesse. Outra coisa bem proveitosa do hiperfoco é quando a gente consegue usar ele pra fazer produtivo também. Pode ser, por exemplo, numa escola, uma matéria que é do seu interesse ou, de repente, uma pesquisa que é importante pro trabalho, quando você consegue usar esse hiperfoco de forma produtiva, é muito bom.

Luca: Eu acho que o hiperfoco pode sim e é algo bom na maioria das vezes, quando ele não interfere nas atividades que são essenciais pro indivíduo. A partir do momento que ele passa a interferir no quanto que a pessoa dorme, interferir como que a pessoa trabalha, ou simplesmente estuda, passa a interferir nas atividades que são essenciais pra vida dela, aí eu já acho que o hiperfoco é algo que vem em detrimento de sua praticidade, porque enquanto é um meio em que a pessoa autista se diverte, se entretém e se vê muito bem enquanto tá pesquisando, tá jogando, tá fazendo o que te interessa, a partir do momento que passa a afetar você ou outras pessoas em sua volta de maneira negativa, toda a praticidade que envolve elas já não não vale mais a pena.

Tiago: É interessante você falar desse jeito, Luca, porque o hiperfoco pra mim é um desses vários temas relacionados ao autismo em que há uma ambiguidade, uma ambiguidade no sentido de que ela pode ser boa, ela pode ser ruim e tudo depende do contexto da pessoa que tá ali interagindo, se envolvendo com isso. Embora a própria definição de hiperfoco seja algo rígido, intenso, de forma que, talvez, na maioria das vezes, a forma como você se relaciona com esse hiperfoco, é de uma forma prejudicial. Mas ao mesmo tempo a gente ressignifica isso dentro da comunidade como algo bom, então é algo que me dá um certo ponto de interrogação na cabeça. E ao mesmo tempo o hiperfoco tem sido ressignificado de uma forma que eu acho que a gente pode até questionar em certa medida de que quando o hiperfoco ele vira uma atividade profissional, todo mundo bate palma, acha legal. Mas quando o hiperfoco é simplesmente algo lúdico, algo divertido, as pessoas também podem condenar. Então, se o hiperfoco não faz mal a pessoa no sentido de um dano à saúde ou alguma coisa que vai colocar em perigo, não acho que hiperfoco seja um problema, se ele não for produtivo no sentido financeiro da coisa. Qual é a sua opinião, Willian?

Willian: É uma discussão bem interessante, Tiago, mesmo porque o autismo, o nome da condição, ela é cunhada nas discussões das ciências da saúde, principalmente, visando uma condição nesse sentido de algo que é deficitário, algo que traz prejuízo, algo que precisa algo que precisa de tratamento. Então nos critérios de diagnóstico, é sempre pensando na verdade em características das quais aquele indivíduo apresenta que compromete o funcionamento dele de alguma maneira nos seus ambiente na escola, no trabalho, em casa, enfim. Então, pensando em manual de diagnóstico, realmente a gente vai ver mais as definições e todos esses critérios pensando em prejuízos, pensando em características associadas a algo negativo, vamos dizer assim. Por outro lado, autistas são pessoas, é claro, tanto é que se fala muito nas discussões sociais sobre o autismo de como isso às vezes infelizmente é ignorado, às vezes os autistas são desumanizados. E você cai naquela caixinha, de predefinições, enquanto, na verdade, por outro lado, o autista, assim como ser humano, ele tem todas suas potencialidades, ele pode desenvolver, criar coisas, ele pode ter relacionamentos, interagir de formas únicas com alguém de tal maneira a ser muito prazeroso, ser muito agradável pra outras pessoas também. Então essa questão do hiperfoco a gente vê ela muito relacionada a esse critério de diagnóstico que por consequência são associados a prejuízos. Porém, por outro lado, a gente sabe no dia a dia que essa característica também está muito associada a coisas boas, até mesmo valorizadas, comumente, na sociedade. Não necessariamente entre a comunidade do autismo e tal, mas até mesmo em um ambiente corriqueiro de uma empresa que exige que o seu funcionário, por exemplo, se mantenha focado em determinado projeto, com um nível de comprometimento acima da média e etc. E isso, às vezes, o autista, ele pode apresentar esse nível de comprometimento, de intensidade e, por consequência, adquirindo um novo patamar de expertise naquilo que ele realmente é interessado em comparação a média das pessoas. E essas características são mais associadas a resultados positivos e daí a comunidade autista, principalmente, tem ressignificado esse fenômeno que a gente tem chamado popularmente de hiperfoco, para algo que eu diria até que na maioria das vezes, algo bom. E não seriamente algo ruim, apesar de que a gente também sabe que quem é autista sabe que o hiperfoco realmente pode causar prejuízos também em diversos contextos, em diversos períodos da nossa vida.

Tiago: Como o Willian já explicou um pouquinho antes, nem todo autista tem hiperfoco e isso pode se manifestar de formas diferentes em relação às pessoas, então se você quiser mais informações sobre hiperfoco também, tá lá no nosso site no post deste episódio e, inclusive, também recomendamos o episódio 92 – Camuflagem no Autismo, que foi feito no mês das mulheres de 2020, em que elas falam também um pouco da relação delas com o hiperfoco, que pode ser diferente, aqui, de nós, homens, que estamos discutindo neste episódio. E eu queria saber de vocês como é que o hiperfoco se modificou ou se ele se manteve da mesma forma ao longo da vida de vocês.

Paulo: O hiperfoco, ao longo da minha vida, foi sendo diversificado e adaptado também. Eu fui fazer faculdades e me empenhei mais em trabalhos que eram ligados às coisas que eu mais gostava. Você diversificar o hiperfoco é uma forma bem comum de tratar isso pra você não ter tantos déficits na hora de tentar se encaixar no mercado de trabalho, numa área de estudo, por exemplo.

Luca: A variação do hiperfoco durante toda a minha vida se deu de uma maneira um pouco peculiar. Não sei se com outras pessoas autistas que têm problemas com hiperfoco também foi assim. Mas, no meu caso, eu percebo que até o meio da minha adolescência, até os 17, 16 anos, eu tinha muita dificuldade de me relacionar com outras pessoas, porque simplesmente os assuntos que eles gostavam não eram os assuntos que eu gostava, portanto, eu não via muito sentido em tentar conversar sobre algo que eu não gosto. E nessa, eu acabei procurando grupos de que eu gostava, acabei procurando grupos de jogos que eu gostava pra tentar me encaixar melhor com as pessoas. Hoje em dia, é algo que eu conscientemente tento mudar e sempre me abrir para assuntos diferentes que eu posso gostar ou não, mas descobrir assuntos novos. Porque eu vejo que, durante toda a minha adolescência, Este foi um dos principais motivos que fez com que eu não conseguisse manter muitas relações com as pessoas, tanto relações duradouras ou simplesmente começar uma relação de amizade com as pessoas. Então, hoje em dia eu vejo que não é algo que me impacta tanto, mas já me impactou muito.

Paulo: Uma outra coisa curiosa que aconteceu comigo no meu hiperfoco, é que ele atua em tópicos, onde em certos períodos, eu ganho interesse extremo em alguma coisa. E, enquanto, depois de um tempo, ele vai se modificando para um outro assunto. Então, recentemente, eu tive um interesse por RPG enquanto em meados do ano passado, eu passei por um por um período que eu estava mais focado em paleontologia, onde eu comprei um livro sobre dinossauros e até fiz umas aquisições de fragmentos de fósseis.

Luca: Um pequeno exemplo de como o meu hiperfoco funciona é que, como eu percebi que, se eu ficar obstinado por algo e ficar só falando sobre isso, as pessoas tendem a não gostar muito, eu passo a consumir as coisas que eu gosto sozinho de madrugada ou de noite e não não fico falando muito assim pras pessoas. Geralmente só posto no Twitter falando sozinho. O meu foco da vez foi ouvir o musicista Itamar Assumpção. Eu instalei semana passada (um pouco antes de redescobrir esse artista) um aplicativo no celular que monitora as músicas que eu escuto, quantas vezes escutei elas, quantas horas eu escutei, quais diz assim. Antes de eu redescobrir o artista, eu tinha escutado 12 vezes músicas do Radiohead, umas 8 do Milton Nascimento. Bom, agora continua aí esses números, mas o do Itamar Assumpção são 75 vezes. E eu tô escutando só nos últimos dois dias. E provavelmente eu vou escutar até enjoar. E aí, daqui uns três anos eu vou voltar a escutar de novo.

Tiago: Isso me lembra quando eu ouvi “Goodbye Yellow Brick Road” do Elton John 94 vezes, eu acho, durante quatro dias consecutivos (risos).

Willian: É, eu pensando sobre a minha própria vida, eu acho que eu dividiria ela em alguns períodos de hiperfoco. Como eu já disse aqui antes nesse episódio, eu tive um bom período… não sei exatamente se foi nessa ordem, mas os primeiros hiperfocos que eu diria ter tido, foi com pedras semipreciosas, principalmente, porque o meu pai é ourives. Então, tinha muita informação sobre elas, gostava muito de ficar vendo as pedras contra a luz, colocando elas em diferentes superfícies pra ver os efeitos da luz passando por elas e coisas assim, levava considerável tempo nisso. E depois a questão de colecionar moedas especificamente de um centavo e depois tampinhas metálicas de garrafas de vidro. Então, esses são objetos que eu tive nos primeiros anos de vida, até os 5, 6 anos de vida. Certamente tive um bom interesse aí, um interesse nada usual, eu diria, com esses objetos. Em seguida, acho que não é novidade, na verdade, que eu sempre fui bem fascinado, assim, por interfaces digitais. Então, tudo que era eletrônico, que de alguma forma trazia ali alguma tela, uma interface, alguma coisa, um letreiro, enfim, qualquer coisa que seja, eu tava ali fissurado tentando entender como funcionava e tentando interagir com elas. Algo que que sempre me fascinou foi os videogames em geral. Então, eu fui criado, na cultura da minha casa, os videogames estavam sempre acessíveis. E desde pequeno, eu sempre joguei, sempre gostei muito de videogames. Foi toda a minha adolescência. Também, logo que eu vi o computador pela primeira vez, eu lembro que uma das coisas que eu mais pedia de aniversário, de Natal, de Ano Novo pra minha família, era sempre um computador. Eu tinha, sei lá, 7 anos de idade, 6 anos de idade, eu tava pedindo um computador, não fazia a mínima ideia de como funcionava, mas eu só sabia que eu queria um computador, por algum motivo. E passou o tempo. No final da minha adolescência, eu pude ingressar no curso técnico de informática, foi aí, então, que eu consegui tornar esse hiperfoco produtivo. Então, nesse meu caso, acabou sendo algo que me beneficiou socialmente, porque essa questão de ser bom com tecnologia, com exatas, algoritmos, softwares, enfim, por conta do mercado de trabalho ser muito aquecido nesse sentido, foi algo que acabou sendo valorizado. E é justamente isso se relaciona com uma das falas do Tiago que ele disse que a gente sabe que nem sempre o hiperfoco vai ser sobre algum tópico com algum objeto, com alguma atividade que é valorizada socialmente. Então, alguns autistas com o hiperfoco nesse sentido podem acabar tendo muito mais sofrimento e prejuízo enfrentando preconceito em relação a outros tipos de hiperfoco que não são bem aceitos na sociedade, que foi o meu caso. Com a tecnologia, eu passei a gostar de ficar no curso técnico. Na escola técnica, então todo o tempo que eu podia passar por lá, eu ficava. E foi lá, inclusive, que coincidentemente eu desenvolvi muito das minhas habilidades sociais, principalmente porque  para desenvolver softwares você precisa colaborar com outras pessoas, outras pessoas envolvidas no mesmo projeto. Então, isso acabou sendo ali um ambiente muito rico pra conseguir desenvolver as minhas habilidades. E, até então, pensei que eu estava bem definido na minha vida, que eu iria programar para sempre, era isso, que a coisa mais interessante que existe era a programação, algoritmos, desenvolvimento de software, ciências da computação, mas daí veio o diagnóstico de autismo. E aí depois do diagnóstico os meus interesses mudaram abruptamente. Eu não conseguia mais não pesquisar sobre autismo. Eu fiquei muito focado em entender como isso se relacionava a mim. E pouco a pouco fui conhecendo outras famílias. Fui conseguindo enxergar o que havia em comum entre eu e outras pessoas que têm a mesma condição. Em seguida eu notei que eu era muito mais restrito ao autismo e a condição em si, entender a condição e explicar para outras pessoas. E logo em seguida, na verdade, eu fui passando a me interessar muito mais por intervenção, por tratamento de como a gente ajuda, até o momento que eu vi que coincidentemente a mesma ciência que a gente usa para fazer design de jogos dos melhores jogos, é a mesma ciência que embasa as intervenções educacionais para o autismo. E foi essa entrada de conexão de repertório. E desde então, tenho estudado muito sobre essa questão da educação e cada vez mais tenho me flexibilizado, na verdade. Eu também estudei vários outros tópicos que envolvem educação e psicologia também que não necessariamente são diretamente relacionadas com o autismo e eu vejo que eu vou permeando assim os meus interesses bem adjacentes, digamos assim, ao núcleo que eu diria do meu foco.

Tiago: A minha história com o hiperfoco é bastante curiosa, porque eu só consigo ter uma percepção aprofundada hoje sobre quais são os meus hiperfocos depois de muitos anos convivendo na comunidade do autismo e repensando sobre a minha vida. Eu lembro que, por exemplo, quando eu era criança, eu gostava muito de ouvir rádio e ouvir músicas junto com a minha mãe. Mas não era só ouvir rádio, ouvir músicas. Eu tinha uma forma completamente diferente de ouvir música. Eu fazia gravações usando fitas cassete, eu abria fitas e ficava mexendo elas de lugar, pegava uma fita de 45 minutos e colocava dentro de um pacote de 60, pegava uma de 60 e mexia com uma de 90 e embolava essas coisas. Eu tinha um interesse tecnológico por essas mídias também, em certa medida. Até que mais ou menos ali na na pré-adolescência, eu ganhei meu primeiro computador e comecei a fazer gravações digitais, fazia edição de vídeo, essa coisa do multimídia sempre me atraía muito. O multimídia me levou a fazer curso técnico de informática, assim como o Willian, só que diferentemente do Willian eu era um péssimo programador. Eu acabei escapando dessa área, vi que não era pra mim e eu acabei me conectando a outro interesse que eu tinha muito forte quando era criança, que era escrever. Só que a minha escrita era um pouco diferente, no sentido de que eu amava as aulas de literatura, eu amava criar histórias, mas as histórias que eu criava partiam do pressuposto de coisas reais. Eu não tinha muita facilidade em criar coisas muito abstratas, no geral. E esse interesse do áudio, da música com essas coisas da escrita me levou pro Jornalismo onde eu trabalhei principalmente com o jornalismo cultural. Inclusive em 2021 eu faço 10 anos de atividade no jornalismo. Então estou comemorando uma década de trabalho nisso. E esse interesse em áudio acabou amadurecendo e se transformando, no Introvertendo também, em certa medida. O Introvertendo é um fruto do hiperfoco de muita gente. O Paulo e a Thaís são fãs de podcast, o Luca é muito fã de podcast. Eu e o Luca nos conhecemos por causa de um grupo de um outro podcast. Então, o hiperfoco une nossas vidas também em certa medida. Esse é o lado bom do hiperfoco. E quando eu recebo o diagnóstico do autismo, eu também tenho essa mudança de direção de interesses, como o próprio Willian comentou, porque aí eu uso o meu interesse em áudio, eu uso a minha formação jornalística, meu interesse por texto para desbravar o autismo. E em certa medida, a habilidade de escrita também me levou ao interesse acadêmico. Então, acho que tudo vai conectando a gente.

Luca: Eu ia ser o espertão que ia falar: “ah, o introvertendo é um fruto do hiperfoco do Tiago, mas aí você já falou antes de mim”.

Paulo: Também o que eu fiz ao longo da minha vida foi tentar direcionar o hiperfoco. Tudo começou com tecnologia, eu queria fazer robótica, então depois de alguns percalços da vida, eu comecei a me focar mais em programação, consegui um trabalho. E programação é uma área muito ampla, desenvolvimento de software é uma área muito ampla. E eu percebi que que eu comecei a pegar gosto pela parte de qualidade de software, testes. E aí comecei a estudar cada vez mais sobre essas áreas, até montar uma carreira nessa área. Aí, no processo todo, eu fiz mestrado, atualmente tô começando o doutorado e de forma geral tudo isso foi muito bom pra montar uma carreira profissional. Você conseguir, às vezes, até afunilar um pouco o seu hiperfoco em uma área de estudos quando você tem um objetivo profissional é algo bastante útil.

Tiago: O Introvertendo também comenta as coisas da comunidade do autismo e eu queria aproveitar esse episódio de hiperfoco para explicar uma “polêmica” que eu me envolvi usando o perfil do Introvertendo no início deste ano. No início deste ano eu fui responder algumas perguntas e respostas ali no Instagram, usando aquela ferramenta dos stories de perguntas e respostas. E alguém me perguntou a seguinte questão: é comum ter hiperfoco em pessoas? E aí eu respondi autisticamente falando que era impreciso, no mínimo, falar sobre hiperfoco em pessoas. E alguns autistas ficaram com raiva, ficaram chateados, falando que eu estava invalidando experiências de outros autistas. E eu só queria contar umas coisas dos bastidores. Depois, a pessoa me mandou mensagem falando que ela não estava falando exatamente sobre pessoas, mas sim sobre tópicos relacionados a pessoas, como por exemplo, biografia de músicos, e etc. Mas já que algumas pessoas na comunidade do autismo tem entrado nessa discussão de que existe hiperfoco em pessoas sim, eu queria trazer um ponto de vista sobre isso mais preciso pra gente entender um pouco dessa polêmica. Em primeiro lugar, eu queria dizer que a experiência de apego ou de interação excessiva é uma experiência real, tão real que eu experimentei a minha vida inteira. Isso eu estou em comum acordo com meus colegas autistas que falam em hiperfoco em pessoas. O que eu tentei explicar desde sempre é que isso não pode ser chamado de hiperfoco. Porque se a gente usa a definição de hiperfoco a partir do DSM-5, que é a referência que muitos autistas usam, a gente vai entender de que hiperfoco tá dentro do tópico de comportamentos repetitivos, que são mais direcionados a objetos. Mas o DSM também fala sobre assuntos, então se você gosta de um artista, de uma banda, de um autor e etc, isso é um interesse em um tópico específico. Então, essa sensação, essa percepção, essa interação, ela é real. Só que ela não tá no tópico de comportamentos repetitivos, ela tá no tópico de dificuldade de interação social, que é o núcleo A. Então, isso que as pessoas chamam de hiperfoco em pessoas não é hiperfoco. É uma característica da dificuldade de interação social do autismo. Quando a gente fala da dificuldade em manter amizades, a gente não envolve só um desinteresse, ou porque o autista é desligado. Às vezes o autista é muito ligado naquela interação que ele sufoca as pessoas. Então, isso que a gente chama de hiperfoco é, na verdade, dificuldade de interação social. Mas se você é autista, que me ouve e que talvez pode ter ficado chateado quando viu o stories lá, o que eu estou querendo dizer é: sim, a sua experiência real, a sua experiência é verdadeira, ela só não pode de hiperfoco no sentido literal da palavra. Ou alguém discorda de mim aqui e quer entrar num debate? (risos).

Luca: Não, eu não discordo. Eu quando eu tinha visto o tópico de hiperfoco em pessoas, eu tinha interpretado mais pro lado que eu me identifico, que é, eu querer sempre conhecer o máximo de pessoas da maneira mais otimizada possível, de maneira que elas simpatizem comigo o mais fácil e rapidamente possível. Então, só que isso não seria focado em uma única pessoa e nem sei se seria exatamente o hiperfoco ou simplesmente uma dificuldade social que eu tentei tornar como desafio.

Tiago: Interessante isso que você fala, Luca, porque você, pelo menos entre as pessoas do Introvertendo, pra mim, você é uma das pessoas que mais tem contatos sociais entre todo mundo. É claro que a maior parte deles são virtuais, etc. Ah, eu acho que o Willian compete com você, porque o Willian também tem muitas interações e eu percebo que vocês dois criaram estratégias para lidar com isso, mas isso é outro assunto. Então, a gente vai discutir isso em um futuro episódio. E pra finalizar essa questão do hiperfoco, queria que você que ouve o Introvertendo falasse nas nossas redes sociais, ou no nosso email, ou por onde você quiser, quais são os seus hiperfocos, quais são os seus interesses e de que forma isso se relaciona a sua vida, o seu dia a dia, a sua interação quanto autista. E a gente volta semana que vem pra discutir mais um assunto relacionado ao autismo. Um abraço pra você.

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Equipe Introvertendo Escrito por: