Introvertendo 169 – Autodiagnóstico de autismo

Identificar o próprio autismo é um cenário comum para muitos autistas diagnosticados tardiamente na vida adulta não só pelo Brasil, mas no mundo. Mas há outro fenômeno na comunidade: o autodiagnóstico, que consiste em pessoas que se identificam com o autismo afirmando-se autistas antes de um diagnóstico oficial. Por se tratar de um tema complexo e que envolve fatores emocionais e socioeconômicos, tentamos estabelecer uma conversa séria e profunda sobre autodiagnóstico. Participam: Tiago Abreu e Willian Chimura. Arte: Vin Lima.

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Transcrição do episódio

Tiago: Olá pra você que ouve o podcast Introvertendo, que é o principal podcast sobre autismo do Brasil. Meu nome é Tiago Abreu, sou jornalista, diagnosticado com autismo em 2015 e sim, atendendo os pedidos de vocês que pedem isso há mais de dois anos, estamos finalmente falando sobre autodiagnóstico, não é Willian? 

Willian: É isso mesmo Tiago, e eu sou Willian Chimura, faço mestrado em Informática para Educação, pesquiso autismo, também fui diagnosticado com autismo na vida adulta, sei muito bem como é essa trajetória do diagnóstico, que muitas vezes pode ser bem exaustiva e isso muitas vezes leva a essa questão do autodiagnóstico que precisamos certamente discutir mais sobre. 

Tiago: Nosso desafio aqui é analisar a questão do autodiagnóstico, esse fenômeno que está presente na comunidade do autismo e que talvez esteja no nosso Top 5 de temas mais polêmicos, mas que certamente precisa ser discutido com muita seriedade. Se você está chegando ao Introvertendo pela primeira vez, seja muito bem-vinda, seja muito bem-vindo, o nosso podcast discute o autismo no cotidiano e em todas as questões que rondam a nossa comunidade.

Bloco geral de discussão

Tiago: Apesar de ser a primeira vez que nós estamos fazendo um episódio especificamente sobre autodiagnóstico aqui no Introvertendo, nós já falamos sobre isso, paralelamente, em outras ocasiões. Nós temos um vídeo lá no nosso canal do YouTube chamado Autodiagnóstico de Autismo, cujo link, inclusive, está relacionado a este episódio, e também nós já falamos, em alguns momentos ou outros, em alguns conteúdos aqui que nós já publicamos no podcast, mas a gente quer discutir isso agora de uma forma mais profunda, com o referencial teórico. Então, se você quiser se aprofundar nesse tema, você pode consultar o nosso site dentro do Episódio 169, e consultar tudo aquilo que a gente está usando de referência aqui. Um desses materiais é um estudo publicado em 2017, que analisa uma questão muito importante que está diretamente relacionada a esse tema, que é a dificuldade no acesso ao diagnóstico de autismo na vida adulta. O fenômeno do autodiagnóstico está muito relacionado aos autistas adultos, a pessoas foram desassistidas a vida inteira e que, de certa forma, têm contato pela primeira vez com essa temática do autismo, se identificam com autismo e podem levar isso como um autodiagnóstico ou, simplesmente, uma hipótese diagnóstica pra levar pra um profissional. Só que entre você se identificar e você procurar um profissional, existe uma série de questões que estão envolvidas. Então, esse estudo tentou identificar quais são os principais fatores impeditivos ou que atrapalham nesse processo de procura por diagnóstico. E os principais pontos elencados foram ansiedade, custo financeiro, dificuldade de acesso a especialistas, medo de não ser ouvido ou não ser validado, dificuldade em descrever características do autismo, desconfiança em profissionais da saúde, estigmas sobre o autismo, o sistema de saúde ou, por fim, a percepção de que o diagnóstico não tem importância. Entre todos esses pontos, o mais relatado foi o medo e não ser ouvidos, não ser validado, o que pode nos levar de certa forma a pensar que a discussão sobre autodiagnóstico também perpassa um pouco de como é o atendimento, de como é a avaliação de autismo, não só no Brasil, como também no mundo. 

Willian: Realmente, muito interessantes esses resultados desse estudo, Tiago. É claro que se trata apenas de um único estudo, mas, mesmo assim, eu consigo ver bastante quando estou falando com outras pessoas que estão em processo de diagnóstico, ou até mesmo as pessoas que passaram por esse processo, me relatarem muito sobre essa questão de uma insegurança, de um medo de ser invalidado ou de ser menosprezado pelos profissionais de saúde. Atualmente eu conheço muitos profissionais de saúde, eu tenho muitas amigas que são profissionais que comumente estão envolvidas em processos de diagnóstico: psicólogas, psiquiatras, profissionais da educação, enfim. E, pensando nos dois lados, tanto no paciente, que está, muitas vezes, numa posição de angústia, numa posição de sofrimento, de alta ansiedade, mas ao mesmo tempo também considerando o lado do profissional que, como sabemos, falta ainda aqui no Brasil, na formação, aulas sobre transtornos do neurodesenvolvimento, sobre autismo, essa questão, principalmente, do autismo leve, que a gente sabe que é difícil realmente de identificar as atipicidades, ainda mais em um cenário de consultório, que muitas vezes se dá através de consultas de apenas uma hora. Então, eu consigo entender plenamente como esses profissionais da saúde se encontram em situações que realmente é muito difícil identificar qualquer traço de autismo naquele contexto de consulta. E isso pode resultar em uma experiência super frustrante, tanto por parte do profissional que também quer se validar muitas vezes como um profissional, como alguém que entende sobre aquele domínio teórico, que ele está ali fornecendo, quanto pelo lado da pessoa que vivenciou toda aquela vida, todos aqueles anos, que pode resultar em frustrações ao longo da vida, pode ter resultado em término de vínculos que foram importantes pra ele, e ali naquele momento aquele sujeito pode se ver totalmente invalidado, como se aquele sofrimento fosse invalidado. Então, enfim, essa situação toda é, realmente, muito delicada e envolve uma série de variáveis. E eu diria, sim, que é uma das principais que impedem, principalmente as pessoas que passam a se identificar como potencialmente pessoas com o transtorno do espectro autista, de buscar por apoio ou passar por um processo de diagnóstico mais formal. 

Tiago: Você falou sobre essa questão do consultório e eu fiquei pensando na quantidade de informações que podem ser transmitidas pela pessoa que está ali se consultando a um profissional que nunca viu aquela pessoa na vida. Então, é um contexto de ansiedade muito grande, eu imagino, tanto pra pessoa que tá ali se apresentando, foi no meu caso, até eu me lembro muitos anos atrás, mas eu imagino que pro profissional também seja um desafio, lidar com uma pessoa que tem uma trajetória de vida, uma quantidade de coisas que talvez a pessoa nem se lembra mais do que passou. Geralmente essa jornada do autismo na vida adulta é uma jornada com histórico de sofrimento, com histórico de fracasso, nesse contexto de sofrimento. Diante disso, eu percebo que os relatos das próprias pessoas que estão procurando é algo muito importante nesse processo de avaliação, né? Como elas se sentem em relação às características do autismo, como elas encararam isso na infância, etc. Então, é muito comum, pelo menos pra mim e pra alguns integrantes do Introvertendo, não sei o que você acha, Willian. Eu vejo que é muito comum autistas na internet falarem que tudo começou a partir da identificação de dificuldades na vida, procura na Internet, lê sobre autismo, se assusta porque aquilo parece fazer muito sentido, e a pessoa procura um profissional muitas vezes só pra confirmar aquilo que ela já viu tão evidente. Então, você acha que essa auto identificação do autismo é relevante nesse processo? 

Willian: Sem dúvidas, isso é importante. E eu vejo que isso muitas vezes nem acontece pelo próprio indivíduo que seria um indivíduo autista não diagnosticado, mas também pode partir de uma iniciativa de algum familiar, da namorada, do namorado, de uma tia, de alguém do núcleo familiar que conhece bem essa pessoa, acaba descobrindo sobre o autismo, se interessa, vai lendo mais sobre e vai pensando que tal pessoa da família pode ser autista. Mas apesar de ser importante e ser muito boa essa questão autoconhecimento, de entendermos um pouco do porquê de nos comportamos da forma como nos comportamos no dia a dia, estamos passíveis de interpretações equivocadas, interpretações levemente distorcidas sobre o nosso ambiente, a nossa volta e é claro, sobre nós mesmos também. Idealmente, no melhor cenário, este diagnóstico deve ser feito, principalmente, envolvendo profissionais que te não conhecem, não conhecem a pessoa que está diagnosticada pessoalmente, que não tem algum vínculo afetivo com essa pessoa, justamente para conseguir uma análise da forma menos enviesada possível, o que, é claro, é impossível para a própria pessoa que está se avaliando, que se entende como sujeito autista, e que vai atrás dessas informações.

O principal risco que eu vejo nesse processo é, principalmente, quando estamos falando de pessoas que podem ter, sim, dificuldades de socialização, que a gente sabe que é muito característico no autismo, e que podem ter também uma questão de ansiedade, uma questão de depressão, que são comorbidades comuns, por consequência, essa pessoa com esses prejuízos também terá prejuízos semelhantes a outros autistas, comumente na vida adulta, como por exemplo uma tendência ao isolamento social, a questão da depressão, falha nas atividades básicas do dia a dia, falha em conseguir uma faculdade, um trabalho, ou enfim. Porém, não necessariamente, os prejuízos dessa pessoa seriam melhor explicados pelo autismo, apesar dessa pessoa ter prejuízos semelhantes. Então, nesse momento, sim, existe um risco a pessoa ao ver outros autistas produtores de conteúdo ou algum amigo que é autista, essa pessoa se relacionar com esses prejuízos e, por consequência, equivocadamente assumir logo de cara, deduzir logo de cara que se trataria então de um caso de autismo, quando na verdade poderia ser melhor explicado por alguma outra condição. E aí eu acho que eu nem preciso dizer que num cenário como esse, a trajetória desse indivíduo pode ser muito frustrante, principalmente ele já se autodiagnosticou como autista, ele já passou a se enxergar como autista equivocadamente, mas ao consultar um profissional ao longo de um processo de uma investigação psicodiagnóstica mais aprofundada, ele não tem esse mesmo resultado com uma expectativa que ele teria, e como consequência temos um desfecho muito frustrante. 

Tiago: Com certeza. Então nós compreendemos que a questão do autodiagnóstico é uma discussão, que se dá do ponto de vista individual de cada pessoa, em relação a sua trajetória e também se configura de forma coletiva por causa da questão da capacitação dos profissionais, por causa do lugar onde a pessoa vive, o acesso que ela vai ter. Então, eu consigo pensar, por exemplo, que a questão da auto identificação do autismo é muito importante, principalmente para aquelas pessoas que não têm círculo social significativo, por exemplo, e não vai ter pessoas no seu círculo social para poder indicar que é autismo. Então, se a própria pessoa não tiver o contato inicial com o autismo, principalmente se ela não tiver um acompanhamento profissional, vai ser muito difícil ela ter esse acesso ao diagnóstico um pouco mais cedo.

Ao mesmo tempo que o autismo, principalmente do ponto de vista social, se tornou uma identidade também, isso faz com que ser autista em, alguns contextos se torne algo legal, se torne algo divertido, que também pode estimular pessoas, imagino eu, em alguns contextos a quererem ser autistas. 

Willian: É, no cenário ideal, a gente não deveria, de nenhuma forma, ser tão popular essa prática do autodiagnóstico como ela é hoje, se tivéssemos em um cenário em que esses serviços de saúde, de avaliação psicológica fossem amplamente acessíveis para a população, principalmente as pessoas que não têm recursos financeiros, como foi apontado no estudo que você citou aqui no início deste episódio. E em geral nós devemos pensar que há uma tendência de subdiagnóstico, porque aqui no Brasil há pouquíssimas pessoas que realmente tenham acesso a uma avaliação digna. Porém, também não podemos ter a ingenuidade de pensar que todas as pessoas que se proclamam autistas ou se autodiagnosticam com qualquer condição não façam isso equivocadamente em boa parcela das ocasiões. E realmente, Tiago, pode ser um pouco preocupante essa questão do autodiagnóstico, no sentido de que, pelo menos, na minha experiência pessoal até agora, eu não conheço nenhum caso de pessoa que se autodiagnosticou que, ao longo do processo de diagnóstico, não tenha sido convencida de que na verdade ela não se trata de um caso de autismo. Assim como existem muitos falsos negativos, né? Ou seja, aquelas mães, principalmente, pensando naquelas que tenham autismo leve, que só tenham uma atipicidade e a mãe repara, só que todo mundo fala “poxa, não, ele é assim porque ele é mimado, ele é assim porque ele faz tal coisa, ele é assim porque ele gosta”, etc. E no processo de diagnóstico, muitas vezes, casos como esse, são casos de falso negativo. Ou seja, casos que seriam autistas realmente, só que foi dado como negativo para autismo por conta de um despreparo profissional, por conta de um contexto difícil de investigação. 

E sim, isso acontece bastante, isso acontece também, obviamente, em casos de autismo na vida adulta, autismo em mulheres, como a gente sabe, mas também o inverso acontece. Casos de falsos positivos também ocorrem, o que pode acontecer de uma pessoa com muitos prejuízos na questão da socialização, como eu já falei aqui antes, pode ter passado a reinterpretar a sua vida sob a ótica do autismo, sob a explicação que o autismo traz, sobre o conforto que a comunidade traz, porque realmente temos espaços sociais, que são muito acolhedores, a comunidade do autismo, como a gente sabe. E essa pessoa que antes se via sem nenhuma perspectiva de conseguir socializar bem, sem nenhuma perspectiva de conseguir ter bons vínculos, sem nenhuma perspectiva de se encontrar em um grupo social e fazer parte dele. Uma vez que ela se sente parte, seria muito doloroso, muito difícil pra essa pessoa aceitar uma ideia, uma possibilidade de que ela fez uma interpretação equivocada, no primeiro momento. E por mais doloroso que seja, sim, isso acontece. Isso pode acontecer.

Para ilustrar isso, não consigo pensar em um exemplo melhor do que a questão dos signos, que muitas pessoas ainda têm aquela interpretação, por mais que, realmente, muitas pessoas que adotam essa questão do signo para si, não levam tão a sério assim. Mas, em algum nível, elas podem levar. E isso é um nível de distorção, isso é um nível de reinterpretação da nossa história a partir do momento que a gente lê sobre os signos, lê sobre características de algo que faz parte da gente, e que tem esse potencial de passar alterar as nossas crenças e as nossas crenças sobre nós mesmos e por consequência as nossas explicações do porquê de fazermos o que fazemos. E isso, sim, pode acontecer, como por exemplo, no caso de um diagnóstico de autismo. 

Tiago: Muito legal essa explicação, Willian, porque enquanto você falava sobre isso, eu parei pra pensar, quantas pessoas que já ingressaram na comunidade do autismo, não só porque se identificaram com o tema do autismo, mas também se engajaram com o movimento social em torno do autismo, e que não tinham diagnóstico a princípio. Algumas foram diagnosticadas, outras não, nesse processo, e o quanto que até hoje, nós estamos em 2021, as associações de autismo, de uma forma geral, no meu entender, não estão preparadas ainda para lidar com a questão do autodiagnóstico. Nenhuma delas, pelo menos, até onde eu conheço, se vocês conhecerem podem deixar nos comentários. Nenhuma delas tem os seus estatutos, nos seus regimentos, formas de acolher pessoas que estão nessa berlinda, de uma forma mais operacionalizada. Porque a pessoa que chega engajada na comunidade do autismo pode contribuir muito com a discussão do autismo sendo autista ou não, e aí o diagnóstico talvez não se torne tanto uma questão central. Mas se pra vida dessa pessoa é importante ter essa avaliação, eu imagino que as associações de autismo poderiam contribuir nesse sentido.Então, eu gostaria muito de ver, principalmente, nessa discussão do autodiagnóstico, essa contribuição futura. 

Eu acho que quem ouvir o Introvertendo e faz parte de uma associação de autismo, de uma organização, seja local, regional, deve começar a pensar isso um pouco mais, né? Trazer essas pessoas pra perto, porque muitas delas não tem condições pra ter esse acesso ao diagnóstico e tendo essa explicação sobre si, mesmo sendo autista ou não sendo, isso poderia ajudar elas a fazer um ativismo melhor também.

Willian: Perfeitamente, Tiago. E também acho que os profissionais de saúde em geral que estão acostumados a trabalhar com autismo e principalmente aqueles que estão acostumados a trabalhar com os níveis mais severos do autismo, muitas vezes podem, equivocadamente, invalidar a hipótese dessas pessoas que se autodiagnosticam, mas muitas delas passam por essa questão do diagnóstico porque elas não têm outra alternativa, ainda mais um cenário que temos a alteração dos critérios de diagnóstico que foi proposta pela última versão do DSM, justamente, deixa muito clara a necessidade de termos critérios mais sensíveis, porque principalmente os autistas da camada mais leve, estavam passando muito despercebidamente pelos processos de diagnóstico. E aqui eu não falo nem naquele caso ”levíssimo”, a pessoa que consegue “mascarar” bem, mas até mesmo os casos, claramente, aquele caso clássico do autismo leve, que muitas vezes não consegue ainda ser diagnosticado por conta de uma falta de um olhar mais específico sobre este caso. Pensando em como o movimento social do autismo tem ganhado mais força, principalmente, pelos próprios autistas que têm se tornado ativistas e têm levantado a bandeira nos movimentos, eu acho muito interessante, muito inteligente a ideia de associações articularem junto com outros autistas para conseguir prover meios e até informação para os profissionais de saúde de determinada região que compete essas associações, e por consequência melhorar o cenário em geral que temos do diagnóstico de autismo no Brasil, sobretudo as camadas mais leves do autismo, que são mais difíceis, realmente, de serem diagnosticadas. 

Tiago: E para um tema tão complexo como este, a gente tem diferentes ramificações. Seria muito difícil falar sobre todos os pontos, mas eu tenho me preocupado, Willian, sobre uma coisa, e aí é uma opinião mais minha, você tá livre pra discordar também, mas eu tenho visto alguns colegas ativistas, pessoas que eu gosto, pessoas que eu respeito, tá, gente? Não estou aqui criando treta, é importante deixar isso claro, mas pelo menos de alguns meses pra cá, eu tenho visto alguns ativistas levantando a bandeira de que o diagnóstico de autismo no Brasil é um privilégio. Até já gravei um vídeo sobre isso, se vocês assistiram, tá lá no nosso canal do Introvertendo, foi publicado no início do ano de 2021. E eu sou uma pessoa que tende bastante a discordar dessa bandeira do diagnóstico de autismo como privilégio. Eu considero que a palavra privilégio tem sido descaracterizada dentro da nossa sociedade de uma forma geral, banalizada em certo aspecto e de um tempo pra cá eu tenho defendido que considerar o diagnóstico de autismo com privilégio é a mesma coisa do que você apanhar do seu pai alcoólatra e se sentir privilegiado porque você ainda tem um pai. Não faz sentido. Por quê? Porque se você foi diagnosticado com autismo depois dos três anos de idade você perdeu na vida. O bom diagnóstico de autismo, aquele que você consegue nos melhores cenários, é aquele que antecede os três anos. Então, a maioria dos autistas, hoje adultos na comunidade, aqueles que têm o diagnóstico mais precoce possível, conseguiram com catorze, quinze anos. Isso já é muito tarde. Não só em relação ao cenário ideal, mas também em relação aos outros países. Principalmente aqueles que têm discussões sobre autismo há mais tempo. Então, na minha impressão, falar que o diagnóstico de autismo é um privilégio, primeiro, te tira a oportunidade de atacar mais o problema, que é de pensar sobre a questão da capacitação, que é pensar, por exemplo, a questão de que a avaliação de autismo é algo difícil de termos ainda no SUS, e que seria ideal, de uma forma mais disseminada, e ela despolitiza as pessoas. Porque a pessoa que conseguiu o diagnóstico de autismo, que na maioria das vezes ou quase sempre, até no meu caso que foi um diagnóstico “fácil”, foi um diagnóstico que levou mais de um ano pra ser conseguido. Então, você faz com que essas pessoas se despolitizem, porque elas vão ficar revoltadas com você em certo aspecto, porque o diagnóstico delas não foi fácil, porque não foi um privilégio, porque teve um custo, porque elas foram invalidadas nesse processo, querendo ou não, e acaba se centrando mais numa questão moral do que numa questão técnica. Porque o autodiagnóstico é um tema muito difícil pra ser discutido sobre apenas um plano de vista moral. Então, assim, pra gente discutir autodiagnóstico com mais vezes dentro da comunidade do autismo, até sem atacar as pessoas, até tendo um carinho, um respeito pelas pessoas, porque isso envolve também as dores de muita gente, eu penso que a gente tem que identificar as barreiras socioeconômicas que estão impedindo o acesso ao diagnóstico. O Brasil é um país muito diverso, a experiência de uma pessoa com diagnóstico de autismo em São Paulo vai ser muito diferente de alguém lá no interior do Amazonas, por exemplo. A gente pode ser contra o autodiagnóstico ao mesmo tempo que a gente não precisa bater nas pessoas ou xingá-las ou atacá-las por causa disso, porque eu vejo também, às vezes, esses comportamentos na de demonização das pessoas que se identificaram com o autismo e ainda não conseguiram diagnóstico. E, gente, vamos discutir mais sobre essa questão do autismo na saúde pública. Acho que a gente precisa de políticas públicas consistentes pra pensar isso. 

Willian: É, realmente, Tiago, visto pela comunidade esse conflito entre pessoas que ridicularizam, acham um absurdo, invalidam explicitamente pessoas que se autodiagnosticam com autismo por conta de nós termos, realmente, a ciência, nós temos a função do psicólogo, nós temos a função do psiquiatra, dos profissionais da saúde, dos profissionais da educação, que são capacitados, ou deveriam ser, pelo menos, para fazer esse trabalho que realmente requer uma expertise técnica, requer uma sofisticação, requer muito estudo para conseguir identificar e avaliar precisamente um caso para ser considerado ou não autismo. E em base disso, essas pessoas entendem que autodiagnóstico é algo que realmente não deveríamos aceitar de forma nenhuma e que por outro lado há pessoas que se autodiagnosticam e que realmente se tratam de casos de autismo, que apesar de não terem tido uma formação em psicologia ou em medicina, ou em neuropediatria, conseguem, acuradamente, prever sobre o seu próprio caso, prever que se trata de um caso de autismo. Isso, é claro, gera diversos conflitos, principalmente quando estamos falando de um movimento social, um grupo social, no qual os membros pertencentes têm essa característica em comum, que é essa condição que chamamos de autismo. E nesse sentido, eu, como uma pessoa integrante do movimento social, que nós chamaremos pelos direitos das pessoas autistas, o movimento do autismo, entendo que pessoas que estão num nível de autodiagnóstico, devem ter muita cautela e devem sempre considerar a hipótese de que elas estão equivocadas. Mesmo porque sabemos que, idealmente, o processo de diagnóstico de autismo quase nunca envolve um só profissional. É necessário pelo menos dois ou até três. E eu, particularmente, acho muita responsabilidade falar sobre autismo como autista. Por mais que eu tenha o canal agora, aqui estamos no podcast, a pessoa que está nos ouvindo tem um perfil no Instagram, e assim vai. E ok, nós temos essa influência sobre as pessoas, ao mesmo tempo que não falamos e ninguém fala por todos os autistas, ainda assim, quando nos propusemos a criar esses veículos de comunicação, essas redes sociais, nós estamos propagando que está associada ao autismo, ao movimento social do autismo, querendo ou não. Então, eu entendo que há muita responsabilidade aqui, principalmente, por parte das pessoas que são autodiagnosticadas, entenderem que elas precisam, sim, ter uma validação mais rigorosa sobre a sua própria condição antes de se assumirem como membros integrantes dessa comunidade e tomarem postos para propagar mensagens que envolvem questões de inclusão, questões de mercado de trabalho, questões de barreiras, de acessibilidade, enfim, várias discussões muito sérias que precisamos discutir na esfera pública, e nesse sentido eu entendo que em um estado de autodiagnóstico, realmente há de se ter cautela, mesmo porque o desfecho desse processo pode revelar que, na verdade, não se trataria de um caso de autismo. 

Tiago: Inclusive, Willian, a Raquel Del Monde falou aqui no Introvertendo em 2021 uma coisa muito interessante, que uma das maiores dificuldades, ao entender dela, que eu acho que talvez você consiga contribuir também nesse sentido, é que o processo de avaliação do autismo é muito complexo e demorado. Como isso se encaixaria, por exemplo, em consultas no SUS, que às vezes são de no máximo vinte minutos?

Willian: É, eu concordo plenamente. Pensando na minha experiência, por exemplo, no meu processo de psicodiagnóstico, eu me recordo naquela etapa da anamnese que eu queria ao máximo passar informações precisas e acuradas sobre a minha vida, que se possivelmente se relacionasse alguma tipicidade. Então, eu pensava, “poxa, como eu vou fazer isso em algumas sessões de anamnese?” E aqui, estamos falando de algumas sessões. Muitas pessoas não têm acesso nem a uma ou duas sessões para falar exclusivamente sobre autismo. Falando sobre políticas públicas, fica ainda mais difícil. Por exemplo, temos na legislação a garantia de que médicos pelo SUS deveriam aplicar instrumentos de rastreio para o autismo, como por exemplo, o caso do M-Chat e temos isso na legislação, mas que na prática, infelizmente, não acontece. E ainda que isso acontecesse, por mais que um instrumento, como o M-Chat, por exemplo, seja simples de se fazer, pois ele é rápido e fácil, há uma necessidade de ter um certo conhecimento sobre autismo para adequadamente aplicá-lo, o que o profissional nem sempre vai ter. 

Ao longo da minha trajetória, com o canal, como uma pessoa que defende os direitos de pessoas com autismo, eu tenho conversado com muitas famílias, tenho conversado com muitas mães e, muitas vezes, essas mães que vêm mim já têm tantas características documentadas sobre o seu próprio filho que às vezes é possível, em uma consulta, você notar que se trata de um caso muito característico de autismo, suponho eu. Mas novamente, pensando sobre autismo leve, e como a própria Raquel disse, que tem muito mais capacidade para falar sobre isso, vinte minutos no SUS infelizmente, consigo imaginar que não deva ser nem de perto o ideal para uma pessoa que ainda apresenta características muito sutis. E novamente, tudo volta à questão de uma comunidade bem articulada para conseguirmos reivindicar essas demandas e atendimento digno, atendimento de verdade para quem realmente precisa na comunidade do autismo. 

Tiago: Esperamos que essa discussão tenha, de certa forma, contribuído a pensar a questão do autodiagnóstico, que é um debate que vai continuar crescendo na comunidade, tenho certeza. E a gente volta na semana que vem. Até mais.

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