Introvertendo 107 – Autistas em Apps de Relacionamento

Você sabe como autistas, de diferentes orientações sexuais, interagem em aplicativos de relacionamento como Tinder, Happn e OkCupid ou até mesmo em apps de sexo, como Grindr e Hornet? Este é o episódio! Luca Nolasco, Marcos Carnielo Neto e Tiago Abreu contam todas as suas experiências ao lado da podcaster AnaLu Oliveira que, apesar de não ser autista, namora um, em um papo descontraído e recheado de amor em pleno Dia dos Namorados. Arte: Vin Lima

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Transcrição do episódio

Luca: Seja bem-vindo a mais um episódio do podcast Introvertendo. Hoje quem apresenta sou eu, Luca Nolasco. O tema que eu apresento é autistas em aplicativos de relacionamento. Eu vou tentar fazer com que o Tiago, desta vez, abra um pouco a boca dele sobre relacionamentos, porque ele nunca foi muito aberto com isso.

Tiago: (Risos) De fato, de fato, Meu nome é Tiago Abreu pela segunda vez na história do Introvertendo eu não estou apresentando e estou me livrando desse fardo e eu queria dizer que esse é o primeiro dia dos namorados da minha vida em que eu estou em um relacionamento, olha só!

Marcos: Olá, meu nome é Marcos e eu, ao contrário dele, vou continuar sendo um lobo solitário pelo resto da eternidade. Já aceitei esse fato.

Tiago: Eu dizia isso até ter um relacionamento.

Marcos: Não, mas no meu caso é certo que eu não vou encontrar ninguém.

Ana: Oi gente, eu sou a AnaLu Oliveira, tenho um podcast chamado Loka dos Áudios, eu sou publicitária, mestra em Antropologia Social pela UFG e hoje aqui, tal qual o Luca no episódio 81, estou aqui apenas cumprindo o papel de namorada do Murilo.

Luca: (Risos)

Ana: Murilo é cientista da computação, meu namorado desde julho de 2019, foi diagnosticado com Síndrome de Asperger em fevereiro, mas todo o processo de diagnóstico dele começou mais ou menos na mesma época que a gente começou a se relacionar.

Luca: O Introvertendo é um podcast feito por 10 autistas que conta com a assinatura da Superplayer & Co.

Bloco geral de discussão

Luca: Aqui no no podcast nós já falamos sobre aplicativos de namoro e conversa muitas vezes, mas a gente nunca falou muito em detalhes sobre as nossas experiências amorosas ou até de amizade neles. Por que vocês começaram a usar? qual é a vantagem de usar um aplicativo de namoro pra vocês?

Marcos: Bom, no meu caso eu acho que os apps oferecem uma alternativa boa para quem é aspie, porque a gente não tem muito desenvolvida aquela habilidade social de chegar pessoalmente. Muitas vezes a gente não se sente seguros o suficiente pra conhecer novas pessoas pessoalmente, então os aplicativos na internet oferecem uma opção pra quem tem poucas habilidades sociais de conhecer pessoas novas e encontrar pessoas com interesses parecidos e depois marcar de ver pessoalmente.

Ana: Já eu, enquanto mulher e uma pessoa que tava saindo de um relacionamento abusivo, os aplicativos pra mim foram uma forma de treinar o meu cérebro pro meu novo estado civil. Foi muito bom, acho que até pra colocar umas habilidades em jogo. Eu vou pagar aqui de louca dos signos. Eu sou libriana, e as pessoas do meu signo tem fama de ter muitos contatinhos e tudo mais. E aí foi com os aplicativos que eu comecei a desenvolver habilidades de conquista e paquera. Nem tudo foi sucesso na na minha trajetória aí, mas foi importante pra mim nesse processo necessário.

Tiago: Antes de falar especificamente sobre as vantagens dos aplicativos, eu considero muito importante como nós autistas adultos aqui do Introvertendo, pontuar que a gente não tem uma discussão muito forte sobre sexualidade dentro da comunidade do autismo, até porque a gente não tem muitas evidências (e isso falando de ciência) com relação a relacionamentos de autismo na vida adulta. E quando eu falo sobre essas particularidades que envolvem autistas, eu falo de características que, de certa forma, ainda não são contextualizadas com esse cenário de relacionamentos e de vida amorosa, mas que certamente são questões muito importantes que a gente precisa pensar. Estamos em 2020 e precisamos conversar muito sobre sexualidade no autismo, espero que até 2030 a gente já tenha um cenário bem diferente. Sensibilidade sensorial, uma coordenação motora fina complicada, as poucas habilidades sociais e a dificuldade de linguagem, enfim, são várias características quando a gente considera para autistas adultos, como nós, que tem uma mínima autonomia. Imagina aqueles que têm deficiência intelectual e que muitas vezes não são orientados sexualmente de forma correta. Então, definitivamente discutir sexualidade no autismo é fundamental e vamos fazer isso aqui hoje. Eu preciso também trazer uma questão muito importante que eu tava conversando com alguns amigos tempos atrás. Muitos autistas têm dificuldade de iniciar ou ter uma vida sexual ativo. Conheço alguns casos de autistas com 30 anos ou mais que nunca tiveram uma vida sexual ou iniciaram suas relações a partir de serviços contratados, o que de certa forma é um tipo de violência pro próprio indivíduo e dentro da sociedade que a gente vive, então é algo muito triste e preocupante, esperamos que algum dia essa realidade mude. Agora, falando sobre um ponto de vista pessoal, eu acho que a grande vantagem dos aplicativos é que eles tem uma gama de opções e de formas de você se relacionar com outras pessoas. Tem pra todos os gostos. Se você quer um namoro sério, vai ter gente querendo. Se você quiser apenas transar, você vai encontrar. Então há várias opções e todo mundo certamente quer se divertir.

Marcos: Todo mundo quer transar com todo mundo, a menos que a pessoa seja assexual. O objetivo de vida biológico é sair transando e pimbando com tudo o que se move pra passar os genes para frente. É um instinto evolutivo nas entidades sexuais.

Luca: Eu nunca usei aplicativo de namoro com o objetivo de transar, mas todas as minhas transas foram de amizades que surgiram em aplicativos de namoro, então eu acho que o Marcos está certo? Eu não sei dizer (risos).

Marcos: (Risos)

Ana: Ele é o poeta da nossa geração! (risos). Acho que, de certa forma, o Marcos tem razão quando ele fala que tem uma questão biológica. Mas isso não é única coisa que move as pessoas também nos aplicativos, porque a gente sabe que, na sociedade que vivemos, o sexo não é só um instinto. Ele também é um mecanismo de poder. Mulheres, pessoas LGBT, autistas e, quando você vai fazer os recortes, o sexo vai virando uma outra coisa e pode ser uma coisa bastante ruim.

Luca: Já aproveitando o fio da AnaLu, como eu sou uma pessoa que não pode deixar os outros serem felizes, pra vocês tiveram um lado negativo ou desvantagens de usar aplicativos de relacionamento? Evidentemente tiveram, mas quais foram?

Tiago: A concorrência, né.

Marcos: A desvantagem é que, ao mesmo tempo em que há essa facilidade de conhecer pessoas, faz com que todo mundo fique descartável na internet, o que acaba afetando bastante a nossa autoestima. E muitas vezes a gente é descartado mesmo sem nenhum motivo aparente, porque é muito fácil você encontrar pessoas novas através de apps e, como um amigo meu diz, a gente acabou virando um mercado de carne, algo bem superficial.

Luca: A desvantagem pra mim é basicamente o outro lado de uma mesma moeda que torna também a vantagem dos aplicativos de namoro pra mim, que é não conversar presencialmente. Embora seja muito bom porque aí eu não preciso necessariamente olhar nos olhos da pessoa pra conversar e posso responder quando eu quiser, eu também não sei exatamente quais são as reações dos pessoas quando eu tô conversando com elas. Aí isso pra mim é uma desvantagem muito grande, porque eu nunca sei se o que eu tô falando é engraçado mesmo, se é divertido mesmo, se a pessoa realmente quer conversar comigo ou só tá falando por obrigação.

Ana: As desvantagens que eu vejo são justamente pela possibilidade da pessoa ser quem ela quiser. Principalmente se for uma pessoa muito escrota. É fácil, como o Marcos falou, é fácil despertar as pessoas, mas ao mesmo tempo também é muito fácil você ser quem você quiser. Se passar por um um cara legal e ele ser um pai que não paga pensão alimentícia, por exemplo, baseado em fatos reais.

Tiago: (Risos)

Ana: Teve um cara, por exemplo, até falei que num episódio que eu fiz lá no Loka dos Áudios sobre dates de Tinder, que o cara perguntou o que eu gostava de fazer. Eu falei: “Ah, eu gosto de ler, de dançar, tomar uma cerveja”, aquela coisa normal. Eu perguntei pra ele e ele falou que gostava de atirar. E eu fiquei assim: “Atirar, como assim?”. E ele: “Vou pra chácara no final de semana com meus amigos, a gente vai atirando os animais”. Gente, eu sou devota de São Francisco de Assis, eu sou uma mulher negra, pobre, o que eu vou fazer com um cara que tem acesso a armas, pelo amor de Deus? Ainda faz isso como hobby. Aí eu desfiz o match, achei o cara em todas as redes sociais para não ter risco dele me encontrar. Enfim, virei minha página. Esse homem acabou pra mim.

Tiago: Como diria a Luka, agora você tá em outra.

Ana: Agora eu tô! (risos) Exatamente!

Luca: Já falei isso? (risos)

Ana: Não, é a cantora (risos).

Luca: Ah tá.

Tiago: É a música lá que ela fala assim: “Virei a página / Agora eu tô em outra / Tô nem aí / Tô nem aí”.

Ana: Exatamente (risos).

Luca: Meu Deus, eu tenho medo das suas referências musicais.

Ana: Já aconteceu também de eu estar num papo super legal e de repente a pessoa desfez o match comigo e eu, antes, tava pensando assim: “Pô, tô arrasando aqui, mais um que caiu na lábia libriana”…

Tiago: E, de certa forma, depois você fica se sentindo um lixo, pensando: “Onde eu errei? Será que eu sou uma pessoa tão ruim?”. E aí você fica se sentindo mal, se julgando de uma forma geral, é realmente algo bastante complicado.

Marcos: Hoje em dia eu não deixo mais isso afetar minha autoestima, mas eu já tive tanta experiência com isso que acaba que teve uma época que eu tava me sentindo bastante mal até eu perceber que isso não é necessariamente um programa pro pessoal, mas na verdade é um problema geral das pessoas que usam o aplicativos, não algo relacionado a mim. E também em cada lugar tem o seu próprio padrão de preferência, tem os tipos específicos e às vezes você pode não necessariamente se encaixar naquilo. E a questão da Síndrome de Asperger também dificulta bastante até mesmo na internet, porque muitas pessoas nos consideram diferentes demais pra pra se ter relacionamentos. Mas o bom é que pelo menos sempre tem alguém diferente, mesmo sendo neurotípicos, que às vezes se podem se encaixar com aspies, então nada é impossível, só é mais difícil do que o normal. Para neurotípicos já pode ser bem complicado. Então um aspie tem que ter mais paciência quando for flertar e namorar porque é mais complicado pra gente.

Luca: Eu sei que todo mundo tem aventuras diferentes nesses aplicativos, mas tem alguma experiência de vocês que foi notória? Quais foram as suas experiências neles?

Tiago: Sobre isso, eu vou deixar o Marcos falar primeiro.

Marcos: Olha, Tiago, eu posso falar muito das minhas experiências, mas é um fracasso atrás do outro, só tem desgraça que eu acumulei ao longo da vida e eu próprio sou a própria desgraça romântica. Então eu vou falar do quê?

Ana: Vamos levantar esse astral, amigo, pelo amor de Deus! Você não é uma desgraça, para com isso! (risos)

Marcos: Tem diferença entre ser pessimista e ser realista. A diferença é que quando você é realista a realidade é uma desgraça, então você tem que aceitar os fatos da vida.

Tiago: (Risos)

Ana: Marcos, não! (risos)

Luca: O realista é um pessimista que já desistiu, né, pelo visto.

Ana: Não. Para de reforçar isso no Marcos, Luca, pelo amor de Deus! (risos)

Luca: Os aplicativos deixam aberta a possibilidade de você escolher o gênero com quem quer conversar.

Ana: Sim.

Luca: Vocês geralmente usam só para conversar com um gênero específico ou conversava com qualquer pessoa?

Tiago: Ah, eu tenho uma longa história com relação a isso. Eu comecei a usar o Tinder pela primeira vez em 2015 ou 2016, já tem muitos anos.

Luca: Foi 2016, finalzinho, por culpa minha.

Tiago: Não, eu acho que eu comecei a usar o aplicativo antes de conhecer você, deve ter um pouco mais tempo. Só que eu não usava de forma frequente. De uma forma geral por muito tempo, eu deixei só mulheres aí eu lembro que o Marcos me sugeriu a incluir homens. E eu acho que é a primeira vez que eu tô falando sobre isso aqui no no Introvertendo. Porque primeiro é uma questão social. Ficava pensando assim: “Ah, eu vou lá e coloco e as pessoas vão ver que eu tô lá e vão falar assim: Olha, ele não é hetero”. E aí o Marcos falou que era bobagem minha, que só quem tá interessado provavelmente ia ver. E aí, em 2018, eu comecei a colocar. Eu já contei aqui no Introvertendo que lá no inclusive, no episódio 2 – Terapia do amor que eu passei por um caso que eu tava conversando com a mulher e ela na verdade pretendia colocar chifres no marido. Ele estava na Europa e ela tava conversando comigo. Descobrir isso depois de verificar as redes sociais dela. E conversar com mulheres sempre foi mais difícil, então uma coisa que eu gostaria de destacar são as diferenças também entre gêneros. Eu acho que o Luca também consegue falar um pouco disso, porque o Luca também já usou os aplicativos tanto pra mulheres quanto para homens e as mulheres tendem muito menos a dar match comigo, mulheres raramente iniciam conversas porque existe toda uma questão também de machismo, aquela coisa de que o homem flerta. Então chegou uma hora que já quase não conseguia contato com mulheres e só conversava mesmo com homens no Tinder, porque era muito mais fácil e prático. Eu sou uma pessoa muito seletiva. Meus amigos brigavam muito comigo. Mas pra que que eu vou dar like em alguém que eu não me interesso só pra dar um match e depois eu não vou conversar com essa pessoa? Pra mim isso não fazia sentido. Os homens, justamente por essa questão também de normas sociais e sexualidade, são mais diretos. É muito mais fácil. Se você for uma pessoa tímida, provavelmente você vai receber a mensagem. Se você for uma pessoa com iniciativa, isso vai ser completamente recíproco. Mas aí quando a gente fala sobre relacionamentos não-heterossexuais, também tem uma questão muito importante que eu preciso pontuar. Existem muitos aplicativos que pertencem à comunidade gay como Hornet e Grindr, que são aplicativos geralmente mais voltados às relações sexuais. Então eu percebo que homens não-heterossexuais em geral têm uma variedade de opções muito maiores do que mulheres não heterossexuais. Eu, particularmente desconheço, por exemplo, o aplicativo que lésbicas usem. Embora em relações heterossexuais me pareça muito difícil conseguir relacionamentos pelo Tinder. Eu nunca consegui ter nenhum encontro que realmente fosse longe nesse sentido. E o Marcos falou uma coisa sobre o julgamento em relação aos autistas que eu queria também comentar. Houve um momento na minha vida, depois de muitos anos com o diagnóstico, que eu comecei a avaliar a hipótese de contar pras pessoas que eu estava começando a me relacionar que eu era autista. Eu lembro que a primeira vez que eu contei pra alguém que eu era autista foi uma conversa com um cara no início de 2018. E a reação dele foi bem desagradável. Ele me perguntou assim de imediato: “Você é agressivo?”. E eu estranhei. Aí ele: “Não, porque meu ex-namorado tinha depressão, nunca agiu de forma agressiva comigo mas eu tinha medo”. E aí contei algumas vezes, tive boas reações e algumas vezes reações negativas, mas eu percebi que quando eu não tinha ainda saído com a pessoa e apresentava a questão do autismo, muita gente tinha receio e não queria mais sair comigo. Ao longo dos anos, eu acabei descobrindo que isso é muito comum com pessoas com deficiência, que é a questão do capacitismo. Eu percebi que estrategicamente era melhor contar sobre o autismo depois. Eu quase tive um namoro no início de 2019 e a informação de que eu era autista deixou um cara inseguro. Porque eu lembro que eu tive essa conversa sobre autismo, ele reagiu super bem, ele era super legal, mas quando chegava a questão do assunto mais sexual, eu percebi que ele tinha muito medo de conversar sobre isso. Eu fui aprendendo muito nesse processo e tive muitas dificuldades socialização. Tive muitos encontros que não deram certo, mas ao longo do tempo eu fui pegando o ritmo das coisas e eu acho que tem muita coisa pra contar ainda nesse episódio.

Ana: Uhu, revelações (risos). Acho que uma das situações mais bizarras que eu vivi no Tinder foi reencontrar um ficante de 2007. Eu ia na casa dele, conhecia a família dele e ele terminou comigo pelo falecido MSN do nada e nunca mais falou comigo. Me via na rua e fazia de conta que não me conhecia. Em 2018, eu estava no Tinder e ele estava lá. Eu dei like só de zoeira, até falei pros meus amigos, e deu match imediato. E a gente sabe que, quando dá match assim, é porque a primeira pessoa deu like. E aí a gente começou a conversar e ele conversou comigo como se não me conhecesse.

Tiago: Eita.

Ana: E aí todo mundo disse: “Não, ele deve ter tido algum problema, fez uma lobotomia, perdeu a memória”, porque eu não fiz intervenção cirúrgica pra pessoa não me reconhecer. Aí eu fiquei com tanta raiva, mas tanta raiva, que esse cara não lembrava de mim, e eu decidi que eu ia ser bem fria mesmo, fria e calculista como Jesus mandou.

Tiago: (Risos)

Marcos: (Risos)

Ana: Aí eu marquei um encontro, cheguei lá e ele não me reconheceu. Me mantive fria, mas por dentro eu queria meter a mão na cara dele. E aí ele falando: “Nossa, que bom te conhecer, você é tão bonita”, e jogando todo aquele charme vagabundo mesmo, sabe? Eu fui tão calculista que eu me revelei na hora que ele tava tomando um suco. Aí eu falei assim: “Você não lembra mesmo de mim, fulano?” Aí na hora que eu falei, ele me deu uma engasgada. Perguntou assim: “De onde a gente se conhece?”. Eu respondi: “A gente ficou por três meses em 2007, você tava montando sua loja, como é que está sua mãe?”. Aí ele: “Você conhece minha mãe?”. Falei: “Ela tava loira”. Aí ele começou a ficar sem chão, foi mudando e tentando reverter a situação pra me desviar. Toda hora ele falava: “Ah, mas o importante é que a gente tá aqui agora”. Eu falei: “Claro, a gente tá aqui agora do mesmo jeito que a gente tava em 2007”. Gente, eu tava muito calculista. Ele ainda tava tentando ficar comigo e aí eu falei: “Vamos jogar limpo. Você vai querer me beijar mesmo? Como é que vai ser? Porque assim, eu tô ficando cansada e eu queria saber qual vai ser a sua iniciativa”. Aí ele: “Parece que você tá um pouco chateada por eu não lembrar de você”. Falei: “Que isso cara, não tô. Você foi tão insignificante pra mim que nem na lista dos meus traumas que eu levo pra terapia toda semana você tá. Pode ficar tranquilo”. Aí ele: “Não, acho que vou pra casa porque eu tô meio cansado. Aí eu: “É verdade, né. Deve ser difícil. O empresário tem tantas coisas na mente que ele não consegue guardar a imagem das mulheres com quem ele se relacionou em 10 anos”. Ele ficou super sem graça e o pior é que o universo não brinca em serviço. Depois disso, toda semana que eu fui no Centro da cidade eu trombei com ele. E aí ele fala comigo!

Tiago: (Risos) Nossa, você foi super não autista nisso. Jamais conseguiria fazer algo do tipo.

Luca: Quando vocês usavam (não sei se vocês ainda usam)…

Tiago: O Marcos ainda usa com certeza, não nessa pandemia.

Luca: Eu uso porque eu uso pra fazer amizade. Mas o que vocês buscam nisso? Amizade, namoro, sexo, o que que é que que cê buscam e o que vocês conseguem?

Marcos: No meu caso era procurando um relacionamento e conhecer pessoas novas mesmo. Mas depois de inúmeras experiências acumuladas ruins, você acaba desistindo que relacionamentos são complicados demais, então o sexo é mais fácil. Não necessariamente que eu procuro só isso, mas eu já não me importo, liguei o foda-se. Me tornei totalmente niilista quanto a relacionamentos. Então pra mim tanto faz hoje em dia.

Ana: Que maneira bonita de falar que entregou as pontas, hein Marcos?

Tiago: Eu me relaciono com o Marcos no sentido de, como alguém que, assim como ele, enfrentou várias questões que não são exclusivamente só de relacionamentos e também uma questão de sexualidade, a sua vida é muito recheada de tabus. Então em grande parte, talvez até nos primeiros anos que eu comecei a usar o aplicativo, eu não sabia o que exatamente eu queria fazer ali. Até que eu fui começando a sair e aí eu tive as minhas fases. Tinha uma época que eu tava mais afim de um relacionamento propriamente dito e obviamente eu quebrava a cara. Porque uma coisa que eu aprendi é que os melhores relacionamentos vem quando você não quer ou não espera ter um relacionamento. E eu tive muitos momentos que eu só queria transar e muita gente queria se relacionar comigo e eu não queria. Então a vida é recheada desses encontros e desencontros. Um dia você está chorando e outra hora é você que faz alguém chorar.

Luca: Poético…

Ana: Hoje aqui só tem poetas, hein, Marcos e Tiago os poetas da geração (risos). No meu caso, baixei o Happn, e trombei com um cara com uma foto no Memorial da América Latina, que é um lugar que eu morro de vontade de conhecer. Achei interessante esse rapaz. Aí tava lá uma foto fazendo um L de Lula livre, foto com cachorro (eu amo animais), parece que esse cara é interessante. Dei match e o resto foi consequência disso, um belo relacionamento que eu mantenho até os dias atuais, mas eu realmente não tinha intenção mesmo de ter um namorado.

Luca: Tem uma uma área aqui que eu acabo não tendo muita experiência que é flertar. Quando flertavam comigo eu também não sabia como reagir. Isso pra vocês acaba sendo um problema como era pra mim ou não?

Marcos: Olha, o problema do flerte é pessoalmente. Não é nem questão de internet porque relacionamentos são puramente sociais. São o ato mais social e o mais íntimo que a pessoa vai chegar a ter e eu acho que por isso, pra um aspie, é uma montanha maior que o Everest. Nenhum aspie é bom em ler sinais não verbais das pessoas e alguns são ruins até mesmo em ler sinais verbais das pessoas. A nossa dificuldade social atrapalha a gente muito na hora de flertar, na hora de se relacionar e de expressar o que a gente sente. A gente sempre fica naquela dúvida de que se a pessoa gosta ou não da gente, porque a gente não lê isso de forma simples e direta. E eu acho que também junta o fato de que a maioria da gente sofreu bullying e desprezo desde pequeno, a gente cria a ideia de que a maioria das pessoas não tá interessada, sempre fica essa questão de insegurança da mente. Até porque relacionamentos são difíceis até entre neurotípicos, porque pessoas são complicadas. Quando dois seres complicados se juntam, a complexidade chega a ser um problema até pra neurotípicos que já têm isso intuitivamente, então é algo bem mais difícil de ser superado.

Ana: Sim, eu concordo plenamente e falando como uma pessoa que paquerou um autista, eu não tava recebendo esse sinal que o Marcos falou, sabe. Eu não tava vendo se realmente ele tava interessado em mim. Eu falava umas coisas assim que dava uns ganchos, soltava alguma indiretinha e o Murilo não falava nada. Quando o Murilo falou pra mim sobre a suspeita, eu li muitas coisas de como se relacionar com o homem autista. E aí uma das coisas que parecem um consenso é que você sempre precisa deixar claro pro autista o que você quer. E quando eu comecei a ser mais aberta, que era uma coisa que que pra mim era muito difícil em outros relacionamentos (porque eu sempre fui a favor de ser extremamente aberta e isso sempre era usado contra mim) e com ele não foi um problema.

Tiago: Partindo pra uma questão de relacionamentos não heteros, relações entre homens geralmente tendem a ser muito mais sexuais. Às vezes a pessoa tá com vontade de transar e manda aquela indiretinha só pra fazer a coisa acontecer. E muitas vezes eu não pegava. Muita gente deixou de sair comigo, deixou de conversar e eu só sacava isso muito depois. Eu não consigo entender muito bem, sabe. Eu acho que se a pessoa quer fala logo, resolve, é muito mais prático. Não consigo processar essas coisas de uma maneira tão rápida e tão natural. O Luca tem alguma história também nesse sentido, né?

Luca: Sim, cara. Eu nunca consegui me dar muito bem com a questão de flertes. E já tive histórias muito esquisitas de pessoas pedindo pra ver meu pé, pessoas elogiando coisas assim bem escabrosas mas…

Tiago: Mas pedir pra ver o pé é muito pouco. Não vou nem comentar o resto.

Marcos: Um corpão gostoso desse né, eu acho que deve tá cheio de gente de olho e quer saber se o seu corpo já foi…

Tiago: Manda uma foto do seu esôfago pra mim! (risos)

Ana: Manda aquela imagem gostosa da endoscopia. (risos)

Luca: A última endoscopia que você fez, hein! E no fim das contas, eu vi que todas as amizades que eu consegui fazer e até questões mais voltadas ao sexual giravam em torno do fato de que nunca tive um flerte pelo menos. Em outros episódios do podcast, eu falei exatamente como eu conheci a minha atual namorada, Mariana, que também é participante do podcast. E ela também já foi entrevistada e falou como me conheceu, que foi por meio de um aplicativo de namoro. Então agora eu vou fazer uma jogada de de marketing aqui e se você quiser conhecer a história de como este que vos fala começou um relacionamento, eu sugiro você escutar o episódio… cê sabe qual é, Tiago?

Tiago: 47.

Luca: Eu eu odeio o fato de você conhecer tudo de cabeça.

Ana: Nossa, eu senti uma pontada de invejinha agora.

Luca: (Risos) Não, não, era brincadeira mesmo. Então eu sugiro que vocês curtam o episódio 47 porque lá a história é contada em detalhes. Então pra não monopolizar, eu vou perguntar o Tiago sobre como começou o namoro dele e qual é a influência que aplicativo de namoro teve nesse processo.

Tiago: O meu relacionamento é uma saga. O meu namorado é o Vinicios, que inclusive é o designer do nosso podcast. Eu tinha um conhecimento prévio de quem ele era muitos anos antes. Ele foi meu calouro no ensino médio. No Instituto Federal de Goiás, onde nós estudamos, eu era da turma de 2010 e ele era da turma de 2011, mas a gente nunca tinha se falado. Eu via ele distantemente e eu tenho uma memória muito curiosa em relação a ele de 2012. Eu lembro que eu tava com alguns colegas da minha turma num pavilhão assim, um prédio, e ele tava lá embaixo andando com um colega dele de turma. E meus colegas comentaram: “Ouvi falar que o sujeito tal é gay”, fazendo piadinha. Eu estava perto assim e nunca esqueci. Ocorreu que, em 2019, eu vi ele no Tinder. Obviamente, dei aquela curtida por curiosidade e ele correspondeu o like. Mas a conversa num tava indo muito longe. Ele tava muito ocupado do trabalho e eu também trabalhando bastante. Eu vi que ele não estava muito engajado na conversa e eu pensei: Quando uma pessoa não está engajada na conversa, eu tenho que incluir algum aspecto que faça a pessoa se interessar. Eu não lancei o assunto de que eu sabia quem ele era antes, porque ia falar muito estranho. Mas aí eu lancei aquela: “Eu acho que eu te conheço de algum lugar. Você estudou no IFG?”. Ele: “Sim”. Depois que eu joguei a informação de que a gente estudou no IF, acabamos trocando o WhatsApp, mas a conversa acabou morrendo. Eu não colocava muita fé. Eu pensei assim: “Vida que segue”. Mas por uma coincidência muito grande, teve um dia depois de ter achado que não ia dar certo que eu tava jogando Pokemon GO no fim de tarde na universidade. Juntou um grupo de amigos num lugar e eu vi uma pessoa que parecia ser ele. E eu falei assim: “Não é possível que o cara tá aqui perto de mim”. E ele obviamente não percebeu que era eu, porque a gente nunca tinha conversado diretamente. A primeira coisa que eu pensei foi: “Se ele tá aqui na minha frente, então é um bom momento pra aproveitar e talvez reviver essa conversa que tinha morrido”. E aí mandei uma mensagem pra ele no WhatsApp e ele só viu a mensagem depois que eu tinha ido embora, mas ele respondeu. Falou que era ele mesmo que tava jogando e aí a gente já tinha um pretexto em comum pra poder reativar essa conversa que era jogar Pokemon. E aí o jogo virou de verdade mesmo dias depois, quando ele me chamou no WhatsApp numa noite de domingo e eu nem lembro exatamente qual foi o motivo. Mas eu sei que a gente ficou até quatro horas da madrugada conversando sobre o nosso passado no Instituto Federal de Goiás. E eu me peguei pensando assim: “Eu fiquei até quatro horas da manhã conversando com alguém, isso nunca tinha acontecido comigo há muitos anos”. Foi algo muito especial pra mim e a gente começou a sair com bastante frequência, se via na universidade e as coisas foram naturalmente acontecendo ao longo desse tempo. Passou um mês em que se via três quatro vezes por semana sem pressão, sempre tinha uma conexão muito agradável. Aí, com quase dois meses, ele me convidou pro aniversário dele. Na hora de ir embora, na hora de despedir, a gente foi se cumprimentar e ele beijou e aí saiu. E aí na semana seguinte a gente oficializou o relacionamento. Ele é uma pessoa sensacional, que tem um baita senso de humor, sempre teve um respeito pela minha condição, me apoia em tudo, nós estamos nos relacionando a mais de sete meses, a gente faz muita coisa junto, nunca teve uma treta nem uma discussão acalorada. Ele é uma pessoa assim extremamente equilibrada. Ele já consegue, por exemplo, captar quando eu estou esgotado socialmente e aí fala: “Vamos pegar descendo”. É uma expressão muito não autista. Ele sabe exatamente qual é o meu limite em termos de socialização, sabe aquilo que me agrada e aquilo que me cansa. Eu penso que um relacionamento bom é um relacionamento que me dá segurança e calma. Não tô falando que é um relacionamento frio, mas também não estou falando que é o relacionamento que você precisa manter acesa a chama da paixão. É um relacionamento em que você não se sente pressionado em nenhum aspecto, mas ao mesmo tempo você se sente estimulado a dar essa resposta e a outra pessoa faz isso ao mesmo tempo que você não precisa cobrar. Então acho que é isso que eu tenho com ele que eu nunca tive com ninguém nesse contexto. A gente tá bem pra caramba. Eu penso que se um relacionamento sobrevive bem a pandemia, é porque ele é para durar. Então eu estou feliz como poucos períodos da minha vida. Eu estou numa das melhores fases da minha vida.

Ana: Ai que bonitinho!

Luca: É bem fofo e reconfortante de ouvir.

Ana: Ele é muito legal. O Tiago é um cônjuge que explora o outro, mas agora eu tô até sem graça de falar isso, porque ai que fofo, gente!

Luca: Nos conhecemos pessoalmente e eu não tive a oportunidade de conversar muito porque tava muito barulho e tudo mais. Então eu queria falar mais com ele em outros momentos. Agora eu venho aquela parte da TV aberta das manchetes sensacionalistas. Qual é o segredo de um bom relacionamento?

Tiago: Eu ia zoar falando que o segredo pra mágica acontecer é um sexo quente (risos).

Marcos: Pra mim, o segredo de um relacionamento bem sucedido é o diálogo direto. A pessoa expressar o que ela sente de verdade, sem medo de repercussão e entender o outro, porque diferenças vão existir entre qualquer casal, não importa o quão parecido elas acham que são. Eu acho que isso é uma vantagem que os aspies têm. Isso faz com que a gente se comunique melhor num relacionamento.

Tiago: Ou seja, Ana, se você continuar o seu relacionamento com o Murilo dessa forma, vocês vão ficar juntos o resto da vida.

Ana: Amei!

Marcos: Nem tudo sobre a síndrome é ruim pra um relacionamento. Aspies também são bem leais e quando eles começam a gostar de uma pessoa, eles gostam de verdade. Então isso é outro ponto positivo.

Tiago: Ana, muito obrigado pela sua participação aqui no Introvertendo, foi sensacional. Obrigada gente, foi muito bom participar, fiquei muito feliz. Hoje é uma data que é muito clichê, mas é uma data que eu gosto bastante. Tô muito feliz de poder comemorar essa data com um cara tão legal como Murilo e ter participado desse episódio.

Luca: Agora eu só tenho a agradecer muitíssimo a vocês três por terem tanto dado tempo de vocês e falando coisas tão íntimas. Até o próximo episódio!

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Equipe Introvertendo Escrito por: