Introvertendo 106 – Saúde Mental na Pandemia

Como manter-se bem durante a pandemia de Covid-19 com as mudanças de atendimento profissional? E como conter a ansiedade se apenas há um repertório limitado de atividades? Pensando nisso, nossos podcasters contam como tem sido as suas estratégias enquanto ocorre este período difícil, na torcida para que você também consiga estar bem na medida do possível.

Participam: Luca Nolasco, Tiago Abreu e Willian Chimura.

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Transcrição do episódio

Tiago: Um olá pra você que escuta o podcast Introvertendo, que é o principal podcast sobre autismo do Brasil e que constantemente está discutindo a questão do Covid-19 dentro da comunidade do autismo. Meu nome é Tiago Abreu, sou jornalista e particularmente interessado que todos que nos ouçam tenham uma saúde mental durante esse processo difícil.

Willian: Eu sou Willian Chimura, eu faço Informática para Educação, pesquiso autismo e com certeza esse período de pandemia alterou muito os meus planos.

Luca: E eu sou o Luca Nolasco, tentando me manter mentalmente bem num ano que já ia ser difícil, pois era o primeiro ano da faculdade.

Tiago: As pessoas têm nos pedido com bastante frequência que nós falemos na questão da pandemia. Então, uma vez por mês, nós fazemos um episódio falando uma questão relacionada a essa pandemia no contexto da comunidade do autismo. Vale lembrar que o Introvertendo é um podcast feito por dez autistas e que conta com assinatura e produção da Superplayer & Co.

Bloco geral de discussão

Tiago: Todo episódio relacionado a pandemia eu sempre começo fazendo um geralzão sobre a situação do Brasil. A partir deste episódio desisto de fazer isso, porque a coisa já saiu completamente do controle a ponto de que não faz mais sentido falar isso. Então vamos direto ao assunto, não é verdade? Na comunidade do autismo nós temos falado bastante sobre como as crianças autistas compreendem e lidam com a pandemia. Isso é bastante comum até em notícias de grandes jornais, mas não necessariamente esse entendimento e essas estratégias acabam funcionando com adultos. Como nós somos um podcast de autistas adultos, eu acho que faz completo sentido focarmos na questão do impacto para essa população de maior idade. E uma das principais discussões em torno da pandemia dentro da nossa comunidade é sobre como ficam as terapias e os acompanhamentos profissionais. Como vocês enxergam isso?

Willian: Certamente, Tiago. Essa questão da pandemia tem impactado muitas crianças e também adultos, claro, autistas em nível de severidade maior que requerem mais apoio e eu tenho visto muita discussão sobre essa questão da interrupção das terapias, principalmente levantando algumas questões pertinentes. Uma delas é no sentido de que se a terapia também não deveria ser considerado como um serviço essencial. Porque quando a gente tá falando sobre autismo, a gente não está falando apenas de um serviço que tudo bem continuar depois. Você está perdendo um tempo de desenvolvimento que pode ser valioso pra pessoa. Sem falar de que a própria interrupção também pode comprometer o tratamento, desenvolvimento de habilidades dessas pessoas que refletem diretamente na qualidade de vida delas. Todo mundo responsável entende as consequências do vírus e não podemos considerar apenas como uma “gripezinha”, mas ao mesmo tempo, quando você tem, por exemplo, decisões como já foram tomadas agora no sentido de abrir academias, manicure e outros estabelecimentos, eu começo a questionar: “Poxa, isso é serviço essencial mas uma terapia não é?”. E outra coisa que eu tenho notado é que pais começam a notar o quanto também é possível os próprios pais serem aplicadores da intervenção em casa com a supervisão dos profissionais, se discute muito mais agora o quão valioso é o treino e a capacitação dos pais para também ajudar essas pessoas com autismo.

Luca: No meu caso, é muito específico, por isso eu não posso generalizar. Eu não pude manter uma continuidade da terapia psicológica por algumas razões e acabou que isso coincidiu exatamente com a quarentena. Por muita sorte, nesse momento de quarentena eu não tô passando por nenhum tipo de estresse grande. Então não tá sendo o período mais difícil da minha vida, nem de longe. Eu sou muito privilegiado por poder dizer que a quarentena tá sendo sim um dos períodos mais tranquilos na minha vida e não na questão de saúde pública. Tenho feito coisas que eu gosto muito e tentar me ocupar e tentar fazer qualquer coisa pra não ficar parado. Então eu tô sempre cozinhando pra minha família, lendo, tô tentando ajudar o Tiago com alguma coisa do podcast. Eu nunca fico parado porque tenho visto que me ajuda muito a ficar bem psicologicamente. Eu não consigo ficar mal se estiver ocupado e no período tem funcionado porque eu não tenho coisas que vão me estressar constantemente pelo menos não tanto quanto se tivesse saindo de casa. Mas ao mesmo tempo eu dei um azar. Eu troquei de remédio enquanto tava na quarentena e isso foi uma questão muito complicada. Eu tenho mudanças de humor drásticas quando eu troco de remédio, fico extremamente depressivo, foi uma questão difícil, mas por sorte passou muito rápido, porque senão teria tornado todo o convívio aqui em casa muito mais difícil do que deveria ser.

Willian: É interessante isso que o Luca tá trazendo porque dá pra pra ver que você tem um certo repertório de possibilidades. Você tem opções muito bem definidas que estão sempre disponíveis de alguma maneira para você interagir com outra pessoa, ter alguma atividade que te engaja. E eu também até que tenho notado isso no meu caso também. Por exemplo, né, sou uma pessoa que gosta de jogar jogos eletrônicos. Eu sou uma pessoa que também sempre gostou bastante de pesquisar e ler artigos e existe uma imensidão de artigos aí pela internet. Então, já que essas duas atividades estão disponíveis pela internet, eu consigo fazer elas bem. E também pela questão de ter o canal no YouTube e também participar deste podcast, eu também sempre tenho pessoas entrando em contato comigo e isso são sempre opções, digamos, assim de interação de alguma maneira e de atividades que são acabam sendo prazerosos de serem feitas e isso com certeza me ajuda. Com certeza contribui pra me manter estável.

Luca: Isso que o Chimura falou é importantíssimo porque um dos fatores mais importantes pra não se sentir tão mal nesse período é exatamente não se isolar e não ser isolado. Obviamente geograficamente, você acaba ficando isolado, mas o advento de videochamadas ou chamadas comuns ajuda muito a manter essa interação.

Tiago: Falar sobre autismo na vida adulta também inclui comorbidades. Nós somos um podcast de dez pessoas, a maior parte de nós não tem somente um CID de autismo e tem comorbidades como depressão e ansiedade. Vocês têm alguma comorbidade neste momento? E como que fica isso na questão da saúde mental ou vocês tão de boa só com autismo mesmo?

Luca: Eu tenho um transtorno depressivo que é difícil de lidar porque a minha tendência é me isolar. Sorte que nesse período da quarentena ainda não tive nenhum episódio, mas algo que persiste muito é meu transtorno de ansiedade e, inclusive, pra tentar aliviar essa ansiedade que se acumula com a falta de atividades propriamente ditas, eu tenho tentado fazer exercícios. Afinal, eu sei que ela vai me consumir o suficiente pra virar um episódio depressivo complexo e ninguém iria querer aqui em casa, incluindo eu.

Tiago: Eu acho muito interessante isso que o Luca falou porque isso me lembra a época que a gente fazia terapia em grupo na universidade e a nossa terapeuta costumava dizer que a gente muitas vezes não gastava energia e éramos muitos sedentários. Num contexto como esse de pandemia eu penso que tem três atividades muito fortes que as pessoas fazem pra conter a ansiedade. Uma delas é comer, inclusive eu engordei bastante. E tem outras duas formas, fazer atividade física ou ter atividade sexual. Atividade sexual é um pouco difícil em alguns contextos e atividade física também é um negócio difícil, porque pra quem mora em apartamento, como é o caso do Luca, fica bastante inviável. Eu ainda tenho a sorte de morar numa casa residencial, que tem um quintal muito grande e eu consigo andar pelo quintal, fazendo caminhada todos os dias, ouvindo outros podcasts. Mas eu percebo que em termos de comorbidade eu tenho uma certa sorte porque eu não tenho  nada além de autismo. Eu tive um CID de depressão em meados de 2017, quando estava dentro da universidade e fiz um tratamento medicamentoso até o final de 2018. Então já estou há mais de um ano um ano e meio sem tomar nenhuma medicação. E as dificuldades sociais do autismo não se manifestam nesse período, porque eu não estou interagindo. Não estou tendo uma rotina na rua, então eu não estou sendo exposto e é exatamente por isso não tenho sentido muito esse peso.

Willian: Vocês falaram algo importante, que é a questão de quadros depressivos ou depressão. A gente sabe que a depressão é ainda mais comum entre pessoas com autismo e claro que a depressão é algo que a gente deve esperar que vai se manifestar com mais intensidade entre a população geral e devemos esperar com certeza mais estudos investigando essas questões da saúde mental com a pandemia. Eu também tenho um histórico de quadros depressivos e é um pouco difícil de responder objetivamente a pergunta que no meu caso a comorbidades, porque ao longo da minha investigação, quando eu busco pela primeira vez por atendimento psicoterapêutico, uma das primeiras hipóteses é que possivelmente se trataria de um transtorno de ansiedade, mas como a gente sabe, não é nada incomum que pessoas com autismo tenham realmente uma ansiedade um pouco mais elevada, que era também o meu caso. Conforme o tempo foi passando, a gente foi entendendo que se tratava realmente de um caso de Síndrome de Asperger, mas ao mesmo tempo o foco da terapia se tornou tão direcionado aos prejuízos do autismo mesmo e nem tanto da ansiedade que, para ser bem honesto, eu não tenho certeza se eu me consideraria como uma pessoa com transtorno de ansiedade como, por exemplo, em comparação a outras pessoas que eu sei que tem esse diagnóstico. Por outro lado, já me senti muitas vezes prejudicado por conta de quebras de expectativas e na pandemia, não foi diferente. Eu tinha todo um planejamento, principalmente para o mês de abril que seria muito intenso para mim e inclusive foi muito estressante todo o planejamento que eu precisei fazer para lidar com a minha rotina que envolveria muitas viagens e demandas do mestrado. Era uma série de coisas que, quando finalmente eu consegui planejar, obviamente, eu tive esses planos impedidos. Eu realmente fico mal. Eu realmente fico em um período que é um pouco difícil de lidar. Passo por alguns dias que realmente são dias que são muito difíceis de cumprir com atividades básicas como comer, por exemplo. Inevitavelmente eu tive que passar por esse período, uma vez que eu entendi que o meu planejamento não poderia ser cumprido. Porém atualmente eu me considero muito melhor. Então, realmente você ter atividades que façam sentido pra você e principalmente, aumentar as opções de possíveis de atividades que você possa ainda desempenhar mesmo nesse período de isolamento é sempre uma boa ideia. A questão que o Tiago trouxe também sobre exercícios e atividade sexual que, no caso, envolve uma série de complexidades, a questão do exercício físico e também a questão de aprender novas coisas e desenvolver novas habilidades, pode ser sempre uma boa ideia porque você pode até mesmo descobrir alguma nova aptidão, aumenta a probabilidade de você estar mais engajado com alguma coisa que vai ser produtiva e por consequência você vai passar menos tempo com pensamentos improdutivos e aumentando a sua ansiedade.

Tiago: Interessante que você falou sobre a questão de abril e agora eu consigo pensar o quanto que eu tenho dificuldade de relacionar algumas coisas diretamente ao autismo, porque passei por uma situação muito parecida com você. Eu tive um estresse muito grande, porque eu fui convidado para alguns eventos, tinha algumas coisas de planejamento do Introvertendo que foram completamente deixadas de lado por conta desse novo cenário e, diferentemente de você, eu senti até um certo alívio, porque eu sou uma pessoa que costuma acumular atividades. E eu precisava desacelerar. Uma questão muito comum quando a gente fala do do isolamento é a procrastinação, que inclusive vocês já tocaram nisso um pouquinho e eu queria que vocês explorassem um pouco mais. Esse fenômeno afeta vocês?

Luca: É o que mais me afeta. Eu tenho alguns trabalhos envolvendo o podcast que eu tô para terminar há alguns meses desde que começou a quarentena e, cara, é muito difícil. Eu acabo procrastinando muito mais agora que não tenho nenhum tipo de responsabilidade com trabalho e não tenho rotina. Então acabo que estou sempre procrastinando demais. Tudo já era um problema antes e agora é algo que me assombra.

Willian: Isso é o que a gente chama de esquiva. Ou seja, literalmente se esquivar, se desviar das atividades que a gente vai considerar como atividades responsáveis e cair na tentação de engajar em outras atividades que seriam atividades improdutivas, porém, prazerosas para gente de alguma maneira. Por exemplo, quando a gente vai para o ambiente da faculdade, a gente não tem muitas opções como a gente tem em casa, por exemplo, de navegar pelo Facebook. Por outro lado, agora pensando no isolamento social, você está em casa e há outras atividades que serão bem mais prazerosas a apenas um clique de distância e não haverá ninguém para te julgar, assim você não vai ter essas variáveis que influenciaram no seu comportamento pra você decidir se você vai continuar manter uma atividade que vai ser considerada produtiva ou se você vai procrastinar. Então uma das coisas úteis é fazer uma análise comportamental sobre mim mesmo e documentar como eu estou investindo o meu tempo ao longo do dia. E a partir do momento que eu tenho isso minimamente documentado, como se fosse um diário mesmo só que um pouco mais específico, considerando também as horas do dia, eu consigo ter uma melhor compreensão do que me faz procrastinar e quais são as atividades que eu claramente estou com uma dificuldade de engajar mais. E a partir disso eu consigo tomar algumas decisões, aliás, até mesmo o próprio fato de observar melhor já me deixa mais propício a ter mais vontade de intervir da próxima vez num próximo dia. Eu aumento a probabilidade do Willian do futuro conseguir cumprir com essa atividade que claramente eu estou procrastinando. É uma técnica que eu desenvolvi ao longo da psicoterapia e que me ajuda até hoje.

Tiago: Eu não tenho tantas skills e tantas habilidades de intervir em situações como o caso do Chimura, e o que eu tenho de procrastinação está muito relacionada ao que se chama de hiperfoco. Por exemplo, estou há 2 anos tentando passar numa prova de inglês e eu não consigo me motivar pra estudar. Uma das formas que eu encontrei de conseguir fazer isso é pedir que as pessoas me façam cobranças, mas por outro lado, quando estou hiperfocado em alguma coisa, eu só consigo perceber que eu consigo ficar livre se eu esgotar o tema. Teve um dia que eu tive uma ideia mirabolante de ficar lendo sobre a história da Universidade Federal de Goiás, que é onde eu estudei. Eu peguei algumas dissertações e algumas teses que falam sobre a formação da universidade e eu não conseguia fazer outra coisa além disso, passei um final de semana inteiro lendo sobre isso. Não era algo de menor necessidade. Eu não tinha nenhum projeto realmente que me obrigaria fazer isso, mas eu não conseguia pensar em outra coisa se eu não completasse aquilo. Então eu gastei um final de semana que eu poderia ter gasto pra terminar um artigo que eu tava escrevendo ou estudar o inglês pra ficar lendo a história da universidade onde eu estudei. Então definitivamente eu ainda preciso desenvolver essas habilidades e essas estratégias para conseguir ser mais produtivo. Agora, uma coisa que a procrastinação também não me afetou tanto nessa pandemia, é o fato de que grande parte das minhas obrigações foram cortadas com a falta de compromissos presenciais. Uma coisa que me trazia muita dificuldade em executar atividades era o fato de ter que me deslocar pra fazer coisas e como hoje isso não existe mais, eu estou procrastinando menos.

Luca: É só um episódio que demonstra a minha procrastinação, foi quando eu tinha que estudar pra provas no final do ano passado. Eu meio que peguei o mangá mais longo que tem pra ler, o One Piece. Li todos os capítulos em alguns dias. Não estudei tanto pela prova quanto devia.

Tiago: Pra finalizar, vocês acham que essa pandemia trouxe algum tipo de autoconhecimento de vocês sobre a própria condição do autismo?

Luca: Eu diria que o que eu conhecia do autismo e das minhas características eu não passei a conhecer mais. Nada foi reforçado com a pandemia. Só aprendi a conviver um pouco melhor com isso.

Willian: Acho que o principal ponto pra mim foi deixar claro como eu sinto falta de interações sociais. O Willian da adolescência gostava muito dessa interação online. Eu fiz muitas amizades que eu mantenho até hoje. Então isso sempre foi algo muito prazeroso pra mim na adolescência, mas não é o tipo de interação que me satisfaz tanto quanto satisfazia antes. Eu comecei a aprender muito mais sobre como interações presenciais podem ser boas. E eu acho que uma evidência disso é justamente eu sentir falta delas agora nesse momento de pandemia.

Tiago: No meu caso, o que eu poderia chamar de autoconhecimento é o fato de ter mais certeza do quão bem faz uma rotina bem construída. Era algo que eu já imaginava antes e agora se revelou de uma forma mais intensa. Quando eu tenho uma rotina mais saudável, menos preenchida de obrigações e que eu consigo realmente focar nas questões mais importantes, eu vivo melhor, eu vivo menos estressado e até durmo melhor. Uma coisa que essa pandemia tá me trazendo é o fato de eu ter horários mais específicos pra deitar e dormir e eu consigo aproveitar melhor o meu sono do que aproveitava antes. Se você tiver alguma história pra compartilhar com a gente escreva e nós leremos aqui na nossa sessão de leituras de emails. Obrigado a você que nos ouve e nos acompanha sempre aqui no Introvertendo.

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