Introvertendo 105 – Alienação Parental e Abandono Afetivo

Discutir o autismo pressupõe incluir, também, a família. Mas como fica a vida de filhos, independentemente de serem autistas ou não, se os pais estão conflitando entre si ou deixam de oferecer afeto para a própria criança? Pensando no bem-estar de filhos que serão futuros adultos, Yara Delgado recebe Geuvana Nogueira, pedagoga e autista, para um papo sobre o papel dos pais em relação aos seus pequenos.

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Transcrição do episódio

Yara: Um olá para você que escuta o podcast Introvertendo, o principal podcast sobre autismo do Brasil. Eu sou Yara Delgado e serei host neste episódio. Sou programadora, mãe de cinco filhos, um deles também autista leve e fui diagnosticada com autismo em 2018.

Geuvana: Olá. Boa noite, boa tarde ou bom dia pra quem tá ouvindo. Eu me chamo Geuvana, sou professora, sou pedagoga. Sou técnica da Secretaria Municipal de Educação de Campo Grande, Mato Grosso do Sul. Eu tenho dois filhos, sou casada, sempre fui doidinha e fui diagnosticada com autismo há três anos.

Yara: Hoje vamos falar sobre alienação parental e abandono afetivo. Vale lembrar que o Introvertendo é um podcast feito por dez artistas e que conta com a assinatura da Superplayer & Co.

Bloco de discussão

Yara: Geuvana já participou de outro episódio conosco, o episódio 49 – Mães Autistas, que também é um episódio bem interessante. Creio que pra começar é legal a gente abordar o significado de alienação parental. Pode definir para nós o que é isso?

Geuvana: Primeiro essa sessão, ela foi elaborada pelo psiquiatra norte-americano Richard Gardner na década de oitenta. Quando foi abordado por ele, era a Síndrome da Alienação Parental, que até hoje tem dentro da psiquiatria. Quando chegou ao Brasil, foi modificada para alienação parental. O Brasil é um dos poucos países que tem uma lei sobre o tema, de 2010, diz que “considera ato de alienação parental a interferência na formação psicológica da criança ou do adolescente — promovida ou induzida por pai ou mãe, pelos avós ou pelos que tenham a criança ou adolescente sob a sua autoridade, guarda ou vigilância — para que repudie quem cause prejuízo ao estabelecimento ou à manutenção de vínculos com os pais”.

Yara: Eu entendi que alienação parental é um tipo de abuso psicológico. A pessoa que cuida dessa criança ou adolescente cria uma alienação em relação a outra pessoa da família, geralmente o outro genitor. É muito comum em casos de divórcio, né?

Geuvana: É. Geralmente a alienação parental ocorre de uma forma muito sutil, e geralmente tem alguns casos que até dentro da própria família, não necessariamente do pai ou da mãe estarem desvinculados um do outro. Ela pode ocorrer pelo avô, pelo tio, enquanto a mãe e o pai ainda estão casados, mas a grande forma no Brasil é de pais separados. Ou seja, quando um pai ou uma mãe, um membro da família, vai criando uma forma negativa da imagem do outro. É um processo psíquico, em muitos casos é imperceptível e ele deixa marcas de desenvolvimento total ou global da criança ou do adolescente pra sempre.

Yara: É tipo uma lavagem cerebral?

Geuvana: Isso. Mas quanto menor a criança, mais ela vai ter dentro dela uma mágoa que ela não vai saber o porquê quando crescer. Vai moldando parte do caráter emocional dessa criança, é psíquico. A criança às vezes tá com 13 anos, é um adolescente e não sabe porque tem raiva de tudo, que briga na escola… Porque lá no começo da vida dela, quando o pai, a mãe separaram, houve alienação parental de um deles. É como se a criança fosse um joguete na mão dos dois, de um deles um contra o outro. Só que quando você faz isso é a criança que sai mais prejudicada. Ela vai recolocar esse sentimento contra outras pessoas e não vai saber o porquê ela vai criar uma agressividade contra a mãe no futuro. Depois, essa agressividade vai passar por uma professora ou para uma futura namorada. Não vai dar certo os relacionamentos porque lá no começo da vida dela houve alienação parental de um dos pais contra ela, porque quando um pai e uma mãe faz isso, eles não fazem contra o cônjuge que eles se separaram, eles fazem contra a vida dessa criança, o desenvolvimento dessa criança.

Yara: E o diagnóstico disso deve ser bastante difícil. Porque conforme você falou, a própria criança não sabe colocar isso pro médico. Como que vai chegar nesse diagnóstico? Tem que ser uma um profissional muito preparado pra lidar com isso.

Geuvana: Com certeza. Nós não temos profissionais qualificados para estarem com a criança e também a cuidar dessa criança, quando a criança é colocada, o profissional deve estar habilitado para trabalhar com ela. Não é qualquer um. Não é qualquer psicólogo ou psiquiatra que vai trabalhar com essa criança. É muito tênue o tipo de armação que um pai ou uma mãe fazem um contra o outro e como é de longa escala, é muito difícil de ser avaliado. Então você precisa de um profissional habilitado pra tá com essa criança e o Brasil não tem profissionais para isso.

Yara: Tenho certeza que esse tipo de conduta pode criar uma série de problemas emocionais pro futuro. Você mesma já falou um pouquinho, mas poderia falar um pouco mais sobre isso?

Geuvana: Supondo que você é minha mãe, e você cuida da parte médica, de alteração de endereço e sobre escola. E você omite dados pra seu ex-cônjuge, ou ele omite. Vamos supor que ela omite que a criança está com problema gastrointestinal e não pode comer o tal do sorvete, e a criança vai passar o final de semana com ele. Aí essa criança vai e o pai dá sorvete e aí acaba passando mal e vai ser internada por culpa não desse pai, mas sim por culpa daquele que omitiu um fato que era importante. Ou mentir sobre. Por exemplo, a criança vê a mãe mentindo pro pai. A criança está ali gravando que, para aquele lá, não deve satisfação, ela tem que mentir. A criança tá acreditando naquilo, “meu pai é mau”, “minha mãe é má”. “Eles não me amam”, entendeu? E isso vai fluindo dentro da criança . São coisas bem pequenas e são pontuais. Quando você mina a criança de ela se sentir segura, ela vai crescer com uma insegurança tão grande que no futuro ela não vai confiar em ninguém. Ela vai ser aquela pessoa que vai desconfiar de tudo e de todos. Como é como será o futuro dessa pessoa se ela não confia em ninguém e acredita que todo mundo vai te abandonar e só quem te ama é a sua genitora ou seu genitor? Isso a longo prazo é muito ruim para a formação psíquica da criança e aí ela não vai saber o porquê que ela não tem amigos, que ela não não consegue fixar num emprego, o relacionamento dela afetivo não dá certo, porque tudo isso vai estar minando a vida dessa criança. 

Yara: Olha a responsabilidade que nós, como pais, temos de zelar pela vida emocional dos nossos filhos. Eu sou divorciada e é interessante que, após o divórcio ser aceito, a princípio foi bem complicado, mas depois que o divórcio foi aceito, a gente passou a se dar super bem assim. Lógico, é uma relação reservada, mas com relação aos filhos, eu sempre pensei assim: eu cresci sem o meu pai. Não quero que o mesmo aconteça com os meus filhos, então o que que eu vou fazer? Eu vou estimular para que eles tenham respeito pelo pai deles. Eu vou estimular para que eles tenham uma excelente imagem do pai dele. Ainda que ele seja falho, eu vou procurar frisar o que é bom. Se você destrói a imagem desse pai, esse filho pode seguir uma imagem destruída desse pai e acabar se tornando algo que não não era adequado para ele se tornar. Eu sempre me preocupei bastante com essa questão, então acho que, quando nós nos divorciamos, saber separar as coisas e saber proteger a criança é muito importante. Eu queria falar também agora sobre a questão do abandono afetivo, que consiste na omissão de cuidado, na criação em relação à companhia da criança, uma assistência moral, uma assistência social e psíquica que o pai e a mãe devem dar ao filho e isso, inclusive, é lei, nossa obrigação. Outra definição do abandono afetivo é quando um dos pais da criança ou ambos, não cumpre esse dever de garantir a prioridade da criança a uma convivência, minar um cuidado em termos emocionais, em termos de higiene, em termos de alimentação. Eu fui criada desde os meus dois anos pela minha avó. Eu acabei perdendo muito o contato tanto com meu pai quanto com a minha mãe. O curioso é que, no caso do meu pai, foi uma escolha que ele fez, ele se separou da minha mãe, se mudou para Minas Gerais e formou uma outra família. Ele acabou se tornando muito ausente por conta disso. Ele aparecia na casa da minha avó mais ou menos a cada 5 anos. Era sempre quando ele tinha algum problema pra resolver. Agora de mais ou menos há um ano e meio pra cá que ele começou a entrar mais em contato comigo. Eu amo meu pai, tá tudo bem em relação a isso, eu acho que ele foi irresponsável. No entanto, eu não tenho mágoa, mas também não consigo ter uma proximidade porque parece que eu me sinto deslocada, não sei como me comportar direito, não sei também até onde o autismo entra nessa questão de ficar deslocado. Agora por parte da minha mãe foi muito diferente. Ela tinha problemas de saúde e eu desconfio que ela também era autista leve. Eu nunca vou ter como confirmar, pois ela faleceu e nem chegou a ver nenhum dos netos dela. A questão é que a minha mãe não me criou porque ela não conseguia me criar. É engraçado que eu era criança e eu consegui enxergar isso. Ela tinha alguma dificuldade que ela era adulta, mas em parte era como se ela ainda fosse criança. Ela precisava de muita ajuda. Eu fico muito agradecida ao marido que ela teve porque foi uma pessoa muito paciente com ela, cuidou dela. Inclusive, quando ela faleceu ele que tomou a frente de tudo, fez tudo do jeitinho que ela queria. Tenho certeza que ele amou muito a minha mãe. Ela aparecia na casa da minha avó, mais ou menos a cada quatro a seis meses e ficava uns dois dias com a gente. Nesses dois dias, ela era super carinhosa e eu tinha uma ligação muito forte com ela. Não sei explicar. Ela foi exatamente o vínculo e a imagem que eu consegui guardar pra mim do que é o amor, porque a minha avó era uma pessoa bastante dura, voltada ao sustento da casa, era uma aposentada cuidando de dois netos sozinha como se fossem filhos dela. Então eu via a minha vó sempre muito sobrecarregada, aquele semblante duro. Agora eu consegui enxergar claramente que a minha mãe sofria muito. Ela queria que eu morasse com ela, quando eu ia na casa dela, ela me levava pra todas as amigas. Ela sentiu um orgulho enorme de mim. Então é curioso porque eu fiquei afastada tanto do meu pai quanto da minha mãe e eu sinto que houve o abandono afetivo da parte do meu pai e eu não sinto que houve abandono afetivo da parte da minha mãe, mesmo ela tendo provido tão pouco pra mim em termos materiais, dos cuidados de alimentação, vestuário, essa coisa básica assim, mas ela tinha um carinho. Quando eu ia na casa dela, ela fazia a melhor comida, aquilo que ela tinha certeza que eu ia gostar. Não culpo ninguém. Acho que cada um faz a suas escolhas na vida. Eu acredito que o meu pai também deve se arrepender de algumas coisas.

Geuvana: Eu vejo por dois lados, um é o teu lado de filha. Só que, se ele morasse perto, e tivesse todas as contradições, você entende? E se ele tivesse perto de ti, mas falando da tua mãe? Aí viria ser uma alienação parental. Ele se separou, se apartou, pra ele poder ter uma vida e vocês terem uma vida, porque não ia ter uma vida. Na prática, o que eu vi muito isso assim na escola, com crianças de seis anos, eu fazia roda e conversava com as crianças todos os dias. Algumas eram filhos de casais separados, alguns tinham pai em casa, então eu vou dar uma uma exemplificação do que acontecia com essas crianças. Havia alienação parental de um pai contra mãe. Comigo ele se abriam todos, mas em casa eles não conseguiam falar. Então eles conseguiam conversar em roda, porque foi um trabalho feito desde o começo do ano, quando chega na metade do ano eles tão se sentindo em casa e aquela turma se torna a família dele. Então nós tínhamos casos que era preferível ele não manter em relacionamento com a mãe mas mantém através da criança. Teu pai fez visto. E as crianças sofriam muito. Aí não tínhamos abandono completo de incapaz. E tinha o abandono afetivo total que o pai da criança, ainda por cima, morava no mesmo bairro com outra família e não queria nem saber daquela primeira família. A criança passava fome, frio, tinha uma porção de problemas. Tinha outro lá que o pai foi embora e não ficou com a mãe e a mãe trabalhando em três empregos pra sustentar os três filhos. O pai foi embora, mas os filhos felizes o tempo inteiro, bagunceiros, eram crianças absolutamente normais. Já esse outro que o pai fez o abandono completo na mesma rua, era uma criança triste. Vivia doente, vivia com problemas lá na escola. Então nós nossos conseguimos observar na prática o que é a alienação parental e o abandono afetivo, fazem um estrago terrível com essa criança. O abandono completo que o pai não tem nenhum contato é menos maléfico do que aquele que o pai tem em contato ou então aquele que a mãe só vai lá receber pensão, aquele pai não quer saber daquela criança e a mãe tem que obrigar a Justiça para que ele tenha um contato com a criança. Eu sinto um pouco de aversão no sentido de forçar alguém a estar junto. Uma coisa é você ter um filho, outra coisa é você desenvolver amor por ele.

Yara: A gente sabe que o ideal é que as pessoas sejam conscientes, então é bem complicado mesmo. Eu entendo que você quer dizer, embora eu consigo entender o lado de quem coloca na Justiça, eu também consigo entender que isso pode gerar riscos pra criança. O advogado que assessora tem que ter bastante discernimento para enxergar com que tipo de pessoa tá lidando.

Geuvana: Porque nós temos também o abandono dentro da própria casa, quando você tem uma mãe ausente ou o pai ausente aparentemente presente. Ela tá sofrendo tanto quanto aquela que foi abandonada completamente. Talvez o outro que foi abandonado e não tem expectativa nenhuma seja melhor emocionalmente do que aquele que tá dentro duma casa e a mãe ou o pai está abandonando ele todos os dias. Um lar é constituído por pessoas que se amam. Quando esse amor não existe pra ser dada aquela sua prole, a prole vai crescendo desestruturada, independente se são com os avó, tios e tias, mãe com mãe, pai com o pai ou uma família, pai e mãe… A sociedade brasileira deve começar a mudar o pensamento do que é afetividade.

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Equipe Introvertendo Escrito por: